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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (16)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Os perros de dom Mosquera

Mão no punho de uma longa espada de tigela, mosquete às costas, a forqueta empunhada e boldrié de chumbo grosso a tiracolo, dom Pablo de Mosquera entrou batendo as altas botas de couro cru nas lajes da casa de engenho.

Era um homem alto, moreno, de olhos duros de milhafre faiscando sob os pelos espessos das sobrancelhas pretas como a sua barba hirsuta e agreste tufante sobre o gibão de canequim cor de lama. Trazia calças de belbute da mesma cor e largo sombrero, negro onde uma pena escarlate punha uma nota viva de cor.

Vinha de péssimo humor. Batera em vão toda a mataria espessa em busca de caça. Desde as cinco da manhã, de mosquete ao ombro, rompera entre cipós, seguido do alarido contínuo e rouco dos seus vinte e três cães, à busca de paca ou servo. E, numa violência incontida que lhe fazia mais duro o seu perfil de abutre, atirou o seu sombrero de feltro paulistano sobre um baú de Moscóvia.

Naquelas terras americanas, para onde tinha vindo atraído pela fama do ouro, só tinha encontrado, a princípio, o mato espesso, o réptil venenoso e a seta do bugre. Viera da península num brigue francês que carregava pau-brasil nas costas de Pernambuco. Depois fora a aventura incerta da cobiça européia na conquista do ouro americano: um ano em Vila Rica, peneirando ouro entre o tumulto do ganho, dois anos em Tijuco, catando pedras no fundo das águas claras dos rios.

Mais tarde, numa rixa violenta, mata a tiro de pistola um contratador da Coroa, foge depois num macho com dois baús de Moscóvia e quinhentas moedas de ouro na sua bolsa de couro vermelho, para as bandas de Piratininga e, entre Itanhaém e Peruíbe, compra uma farta data de terras, onde constrói casa de taipa, monjolo de pau, cerrado e poço.

Dois anos depois, podia ver com delícia, todas as tardes, debruçado no poial de pedra da sotéia, ondular para além do cerrado o verde fresco de sua farta plantação de cana e ao pé das perobeiras, em fila pontudas como fusos, as cinqüenta ocas alinhadas de sua escravaria carijó.

- Buena caza? - perguntou uma voz grossa que vinha da cozinha negra de fumaça.

Mosquera, que empunhava um látego longo de couro de anta, estalou com furor a ponta sobre a copa do sombrero jogado:

- Mala. Ni pajaro ni féra!

Lá fora, no ar luminoso, rente às ocas alinhadas em taba, passavam cocares coloridos dos índios mansos, e no silêncio da tarde tropical, o latido esfomeado dos lebréus soava como marteladas em latão.

Mosquera bateu as palmas num bater rijo. Um índio carijó de cabelos longos e seminu apareceu no fundo da sala.

- La comida de los perros! Listo!

O índio, imóvel, não falava.

Ante a mudez medrosa e aparvalhada do carijó, Mosquera irritou-se:

- La comida de los perros, estúpido! - berrou, violento.

O índio, então, na sua mistura guarani-português, gaguejou apavorado que não se aprontara o angu de caça da matilha.

A face dura de Mosquera contraiu-se numa crispação que a cólera empalidecia:

- No tiene la comida de los perros, hije de perro!

E brandia o chicote de couro cru diante da face parada do índio, que o pavor imobilizara o olhar. Mas um sorriso mau enrugara a face do espanhol.

- Entonces voy a dar la comida!

O índio, que se esgueirara para o terreiro, corria de leve para as bandas das ocas. Foi então que surgiu no patamar da casa, de mosquete empunhado e a grenha eriçada batida pelo vento leve da tarde, d. Pablo de Mendonza Avellar y Mosquera.

- Pare! - rugiu ele para o bugre, que corria. No meio do terreiro varrido, o bugre estacou ante a violência da ordem. Mosquera caminhava duro, de arma empunhada. Depois fincou n chão batido a forqueta de fero, onde meteu, numa pancada seca, o cano grosso do mosquete. O índio, num momento, ainda tentou fugir, mas um tiro de carga dupla estourou rijamente, levantando vôos de rolas e ecoando longe nas quebradas. O carijó caiu duro com o ventre estraçalhado pelo chumbo grosso.

- Ahora hay de comer!

Em seguida, soprou três vezes a buzina de corno; três vezes o som longo da buzina de caça ecoou longamente na serenidade da tarde, chamando os cães que corriam longe.

Depois foi um ladrar e um roncar furioso e contínuo, de cães em volta do cadáver do índio estirado num lago vermelho, enquanto os mais vorazes disputavam a dente as vísceras ensangüentadas e ainda quentes.

Pesado, boçal e de mosquete ao ombro, recolheu então Mosquera num andar bovino.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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