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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (14)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V, Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

As orelhas do Bueno

"Eu el-rei faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presentes os insultos, que no Brasil cometem os escravos fugidos, a que vulgarmente chamão calhambolas (SIC), passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos; e sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem: - hei por bem que a todos os negros, que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F, que para este efeito haverá nas câmaras; e se quando for executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandado do juiz de fora, ou de ordinário de terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia".

Joaquim Felício dos Santos (Memórias do Distrito Diamantino)

O quilombo foi por todo o século XVIII o grande espantalho da colonização portuguesa.

Vinte ou trinta desses redutos negros, com as suas paliçadas d'árvores, as suas choças de sapé, com os seus zumbis e a sua organização, se levantaram contra o bacalhau e o tronco.

Na roça de cana ou na lavagem de ouro, o negro madraceava. Cansado do samba ou amolentado pelo sol, esmorecia na labuta rude da terra. Um pulso rijo zurzia rijo as cinco pontas de couro cru do bacalhau. O negro fugia; homiziava-se no mato, comendo palmito. No fim de uma semana, reaparecia exausto, roto, escalavrado, laçado como uma besta pela ferocidade mameluca do primeiro capitão-de-mato. Então começava a parte mais dolorosa da odisséia negra: o tronco lustroso, o bacalhau cortante, o sangue pingando e a caneca de salmoura nos lanhos.

Quando o negro saía desse inferno, o seu primeiro ímpeto era fugir outra vez, desaparecer, esconder-se dessa ferocidade branca. E fugia mesmo. Desaparecia misteriosamente, levando uma renda de cicatrizes no lombo e um ódio intenso na alma.

Para onde foi? Para o quilombo. O quilombo era o seu último reduto de esperança. Livre do chicote do feitor e do laço do capitão-de-mato, entre malungos e parceiros que também sofreram, o negro tornava-se então o maior inimigo do branco. A sua docilidade de nagô ou a sua humildade de congo transformavam-se num ódio feroz e sanguinário de bárbaro. Era o quilombola, isto é, uma fera armada de faca ou foice, que vingava toda uma raça.

Na casinha de taipa e palha encontravam, amarrada a um moirão, nua, arranhada, violentada, cheia de equimoses, uma rapariga branca. Quem violou? Foi o quilombola.

Na estrada, sobre o pó, jazia um homem branco, com o crânio fendido e o bornal saqueado. Quem matou? Foi o quilombola.

E assim a sua fama cresce com o terror, que também servia para amedrontar todas as crianças de 1750.

- Durma, se não vem o quilombola! E a criancinha, espavorida, sufocava os soluços no travesseirinho de crochê.

Às vezes, na porta grossa da casa de sítio, um punho batia grosso.

- Quem é?

Era quase sempre um negro grande e espadaúdo, com uma calça de zuarte e uma camisa de baeta batendo a fralda sobre a enorme faca de mato:

- Abra, quero de comê!

E a porta abria-se humilde e medrosa e o negro entrava revolvendo as arcas, roubando ou quebrando tudo.

Depois, fugia. Onde estava? No quilombo. Era lá o seu recanto, o seu reduto.

No século XVIII, os quilombos multiplicaram-se: houve o quilombo dos Palmares em Alagoas e o célebre quilombo de Porto Calvo em Pernambuco, que enegreceu por mais de sessenta anos a tranqüilidade pernambucana e que só o heroismo e a tenacidade dos paulistas conseguiram derrubar.

***

Em 1756 Minas sofria o terror dos quilombolas. Vilas saqueadas, mulheres violadas, corpos esfaqueados pelas estradas, eram os acontecimentos quase diários. A capitania governada por José Antonio Freire de Andrade, conde de Bobadela, vivia num sobressalto contínuo, sob a ameaça negra.

Enquanto isso, Campo Grande, quilombo de mais de dez mil almas, crescia assustadoramente, com as suas choças, as suas paliçadas, as suas hortas, os seus coqueiros e a sua tenacidade negra, erguendo-se formidável contra o branco mineiro.

Em 1776, Campo Grande era uma força, era a atalaia negra levantada dentro da América. O negro então não se contenta mais em não ser dominado - quer dominar.

E o ataque geral dos quilombos mineiros contra o governo da Capitania é marcado para uma quinta-feira de Endoenças, enquanto o povo rezava. O plano era formidável: um ataque geral ao povo desprevenido; tomada do governo da Capitania; o massacre geral dos brancos e uma nação negra surgindo dentro da América Portuguesa.

No dia marcado, porém, o governo, prevenido, manda fechar as igrejas; armam-se os homens válidos e o levante fracassa.

A vingança negra, entretanto, não esmorece.

Freire de Andrade, indeciso, vacila.

- É necessário destruir o negro! - dizia ele, apertando o punho de madrepérola de seu espadim.

E o mineiro baixava a cabeça, varado.

Ninguém se arriscava a arremeter com um troço de mosquetes, expondo a pele diante da lança afiada do quilombola. Duas expedições de quinhentos homens já tinham lá ficado, atravessadas pelas facas de mato dos quilombolas de Ambrosio, e os que escaparam foram aparecendo aos poucos, lívidos, quase nus, com o corpo cheio de lanhos...

E Campo Grande crescia assustadoramente.

Famílias mineiras já fugiam às pressas, em banguês, em machos, com canastras e trouxas. Os ataques multiplicam-se e o governador, impotente, vacila.

Um dia, um homem pede para falar ao governador. Era grande e musculoso e sob a pele amorenada percebia-se o sangue espanhol, sacudido ela impetuosidade guarani. Trazia um bernéu de cacheira preta forrado de esparregão vermelho, espada longa de tigela e sombrero largo de feltro paulistano, sombreando dois olhos metálicos.

- O que quer?

- Falar ao governador.

Bobadela mira, através dos quevedos de chumbo, o semblante do desconhecido:

- Sou eu mesmo. E vossa senhoria, quem é?

- Bartolomeu Bueno.

- Que novas traz?

- Derrubar Campo Grande!

- Por quem?

- Por mim e meus homens.

Bobadela sorriu, sacudindo com as pontas dos dedos o rapé dos folhos de sua camisa de Holanda:

- É mineiro?

- Sou paulista.

Dois dias depois, seiscentos homens de arcabuz e lança, comandados por Bueno, marchavam na manhã fria, entre repiques de sino, rumo a Campo Grande.

E passavam os dias sobre Minas assustada e devota. Enquanto isso, rompendo mato rumo a Campo Grande, que se erguia nas suas trincheiras de tronco, marchavam os arcabuzes paulistas. Na frente, enrolado em seu bernéu, lampejando sua espada espanhola, Bueno ia sozinho. No silêncio da mata, os arcabuzes estouram. A fumaça sufoca, homens vestidos de couro varejam entre cipós.

E dentre as ervas altas, num alarido rouco, brandindo lanças, faiscando facas, aperrando escoetas; nus, de calças de zuarte ou embrulhados nas cores vivas dos panos da Costa, surgem os quilombolas de Campo Grande. Outra descarga soa forte: vinte negros da frente batem no chão com o rosto estraçalhado pelo chumbo grosso.

Bueno, na frente, abre cabeças a golpes de espada, e sob as lanças negras 12 dos seus homens mordem a erva com os intestinos à mostra e os crânios fendidos. A turba negra cresce, berrando, uivando aos pulos, lampejando facas, brandindo lanças e envolvendo a coluna heróica...

***

- Um homem quer falar a Vossa Mercê.

Bobadela, que escrevia entre duas serpentinas de prata, pousa a pena de ganso sobre um calhamaço:

- Traz missiva ou recado?

- Missiva não traz e recado não tem.

O governador aperta os cordões do seu chambre de pano de Londres, conserta os folhos da sua camisa de Holanda:

- Mande entrar.

Um homem grande, de barba emaranhada e terrosa, bate as botas esbeiradas na alcatifa árabe da câmara. No sombrero largo, que pousa sobre uma arca espanhola, abrem-se esburacados furos de bala, na testa pende-lhe um pano ensangüentado e no seu bernéu comprido a lama sobe até a gola.

- Quem é - pergunta Bobadela, recuando um pouco na sua cadeira de sola.

- Bartholomeu Bueno.

Um terror varou de um lance Bobadela. Viu a tropa rechaçada, o negro vencedor, Bueno na fuga e o quilombola invadindo as vilas para o massacre. Mais lívido sob a luz das velas, perguntou então:

- Fugiu?

Um clarão de orgulho faiscou nos olhos metálicos de Bueno:

- Lembre-se Vossa Mercê que sou paulista!

- E Campo Grande?

- Arrasado.

- E os negros? - perguntou ainda num resto de dúvida.

Bueno, de um repelão, abriu as abas do bernéu e, desafivelando bruscamente o cinto, atirou sobre a alcatifa verde uma embira longa, enfiando num colar de três voltas, comprido, escuro como um troféu macabro, três mil e duzentos pares de orelhas, pretas, unidas, arrancadas e cortadas, sangrando ainda sangue de quilombola.

- Estão aí os negros!

Tinha terminado o terror quilombola.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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