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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Profissões
Atividades que vão desaparecendo (4)

Com o tempo, diversas atividades acabam ou são substituídas por outras
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Texto publicado nas edições impressa e eletrônica do jornal santista A Tribuna, em 13 de março de 2006:
 


POUCAS PROFISSÕES RESISTEM AO TEMPO - As ruas asfaltadas anunciam a Valter Ramos que sua profissão está agonizando. Após passar mais de 40 anos cravando paralelepípedos nas vias santistas, o calceteiro faz parte hoje de um grupo de servidores municipais cujo ofício, além de desconhecido para a maioria da população, está ameaçado pelo avanço tecnológico. Outras profissões estão desaparecendo, como é o caso dos moleiros, marteleteiros e guarda-ferramentas, ocupações que nem sequer possuem registro no Ministério do Trabalho
Foto: Raimundo Rosa, publicada com a matéria

Segunda-feira, 13 de Março de 2006, 07:16
SERVIÇO PÚBLICO
Profissões resistem ao tempo na Prefeitura

Hoje, trabalhadores como os calceteiros ainda são necessários ao Município

Luiz Fernando Yamashiro
Da Reportagem

As ruas asfaltadas da Cidade parecem anunciar a Valter Ramos que sua profissão agoniza. Após passar mais de 40 anos cravando paralelepípedos nas vias santistas, o calceteiro faz parte hoje de um grupo de servidores municipais cujo ofício, além de desconhecido para a maioria da população, está ameaçado pelo avanço tecnológico.

Juntam-se a Ramos no quadro da Prefeitura moleiros, marteleteiros e guarda-ferramentas, ocupações que nem sequer possuem registro no Ministério do Trabalho.

"Digamos que a Administração Pública seja o último refúgio desses trabalhadores", explica o chefe do Departamento de Vias Públicas (Devip) da Prefeitura, Luiz Antonio Rosas. Ele afirma que, para o setor de obras, profissionais como o calceteiro ainda são imprescindíveis ao Município. "Há lugares, como vielas em morros, em que é impossível o acesso de máquinas. E aí não tem jeito, só o trabalho manual resolve", explica.

Do alto de seus 67 anos, Valter Ramos vê com tristeza o ocaso da profissão que exerce desde os 25. Saudoso, lembra de suas passagens pela Prodesan e pela antiga Companhia Docas de Santos, época em que participou do calçamento de vias importantes, como a Avenida Francisco Glicério.

Nos dias atuais, o trabalho é cada vez mais escasso. Lentamente, os calos vão abandonando as mãos cansadas. E pelas ruas da Cidade, praticamente não há vestígios do ofício exercido por tanto anos. "A última rua que fiz foi a Silva Jardim, faz muito tempo. Mas já está toda asfaltada", conta.

Prestes a deixar a atividade, o velho calceteiro revela uma certa frustração ao analisar a transformação da cidade que ajudou a moldar. Para ele, as ruas de hoje nunca serão tão agradáveis e funcionais como as de ontem, porque o asfalto conserva o calor e não evita as enchentes. "Antes podia chover que a terra absorvia tudo. Porque terra é que nem gente, tem vida".

 

Trabalho quase não existe na iniciativa privada

 

Futuro incerto - Sempre que diz a alguém o nome de sua profissão, o canteiro Firmino Santana precisa explicar no que consiste seu trabalho. "E tenho que falar que não tem nada a ver com jardim, que é o que todo mundo pensa", diverte-se.
Aos 46 anos, Santana é um dos seis canteiros que a Administração Municipal mantém em seu quadro para perfurar, cortar e destruir pedras e rochedos. A atividade é necessária para adequar terrenos a futuras construções ou prevenir deslizamentos nos morros.

A três anos de conseguir sua aposentadoria, o canteiro também acredita que sua profissão tem poucas chances de sobreviver à ação do tempo. "As firmas não contratam mais a gente. Só pegam serviço grande e usam dinamite para explodir as pedras. Não sei como vai ser daqui para a frente".


Valter Ramos tem 40 anos de trabalho no calçamento de ruas da Cidade,
função cada vez mais escassa com o uso do asfalto
Foto: Raimundo Rosa, publicada com a matéria

Segunda-feira, 13 de Março de 2006, 07:17
Cargos sequer têm registro no Ministério do Trabalho

O anonimato dos profissionais que atuam no Devip se confirma nas estatísticas do Ministério do Trabalho. Na listagem de trabalhadores registrados por ocupação - feita com base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2004 - não há qualquer menção sobre canteiros ou calceteiros.

As profissões com o menor número de registros são produtores agrícolas na cultura de plantas fibrosas (41), produtores de especiarias e de plantas medicinais (52) e filósofos (60). A campeã da lista é a função de supervisor administrativo, com mais de 313 mil profissionais.

Nos arquivos da Gelre Consultoria de Recursos Humanos, que promove o recrutamento de pessoal para o mercado de trabalho em Santos, também não há registro de empresas que estejam contratando esse tipo de trabalhador.

Quadro variado - Mas as curiosidades profissionais não estão restritas ao setor de obras do Município. Entre os estatutários, há, por exemplo, um pescador, que, conforme explicação da Secretaria de Comunicação, foi designado para capturar espécimes para o Aquário Municipal. E na relação de profissionais ligados à Secretaria de Cultura, pode-se encontrar o singular cargo de inspetor de orquestra.

"É a pessoa que cuida da agenda dos músicos, coordena a equipe, ajeita os instrumentos", explica o titular da função, Aroldo Alves de Brito. Exercendo a atividade desde 1980, o inspetor diz que o trabalho só lhe trouxe benefícios. "Aprendi muita coisa. Até a montar partitura, mesmo sem ter estudado música", conta.

O fato de a profissão ser desconhecida, garante Brito, não o incomoda. "Não me importo de ter que explicar o que é. Acho até bom. Se fosse pedreiro, por exemplo, não conversaria tanto sobre o meu trabalho".

 Texto divulgado em 3 de outubro de 2007:

A ciranda fatal das profissões

Aureo Emanuel Pasqualeto Figueiredo (*)

Todo cais é uma saudade de pedra
Fernando Pessoa

Uma pequena nota fúnebre, triste e humilde entre tantas outras, passaria facilmente despercebida, já que não conheci a pessoa, mas um item chamou-me a atenção. Anunciava o falecimento de Severino de tal, 57 anos, calceteiro...

Não, essa profissão não tem nada a ver com costuras e calças, como alguém desavisado pode supor. Até o software que uso para escrever, estranha e reclama, afinal trata-se de atividade artesanal, pesada e exaustiva, o que dá arrepios à alta tecnologia.

Calceteiro, enfim, é o artífice que assenta os paralelepípedos nas ruas compondo-os em panos regulares e simétricos. Ocupa-se, de forma singela, do chamado calçamento, técnica ancestral do que hoje é o estado da arte da ciência chamada pavimentação.

Imagino tantos severinos, anônimos e humildes, morte e vida em sua faina de estirar linhas, antecipando os segredos de caimentos das superfícies, deixando a cargo das linhas retesadas intuir as razões de declive, para que, mesmo mínimos, venham a ser reconhecidos e obedecidos pelas águas pluviais, tangidas pela gravidade.

Pessoas simples, quase sempre com poucas ou nenhuma letra, agachados sobre os leitos carroçáveis em construção ou reparo, fecundando-os com seu suor e habilidade.

Regularizar a base, distribuir o colchão de areia, tomar cada paralelepípedo nas mãos, sentir seu peso e forma, girando-o no ar algumas vezes num movimento suave, quase um malabarismo, aceitá-lo ou rejeitá-lo, colocá-lo no chão batendo com sua marreta até chegar à posição definitiva, onde ficará quem sabe por quantos anos, quiçá séculos.

Todo o cuidado para garantir a amarração das juntas, nessa quase alvenaria, depois preencher os vãos com areia, compactar toda a superfície, dando-lhe travamento e condições de trabalho conjunto.

Nenhum charme, nenhum glamour há nisso? Trata-se apenas de um serviço pesado, de resultado grosseiro? Claro que não! Basta lembrar os arcos concêntricos das ruas de Paris e Roma, verdadeiros mosaicos embelezando o chão.

Ou então o familiar mosaico português alegrando nossas calçadas, com as pedrinhas alternando-se em ondas em preto e branco à guisa de mar e areia surpreendentemente regulares. Também nos jardins da praia, conformando os peixes, siris, polvos e tantas figuras que íamos descobrindo ao passear nas alamedas, tão queridos quanto o insólito casal de leões que toda criança santista já montou.

Nas calçadas, como as pedras são menores, muitos desses operários adquirem um curioso hábito de ficar permanentemente tamborilando seus martelos nas pequenas pedras, mantendo o ritmo, enquanto com a outra mão vão rapidamente escolhendo as peças e encaixando-as nos moldes.

A existência do calceteiro está diretamente ligada à do canteiro. Esta outra categoria de artesãos, defronte a uma pedra bruta, de grande porte, perscruta seus veios e com certeiros golpes ou com seus fogachos explosivos vão fracionando-as e conformando-as de acordo com as necessidades.

Entre tantas aplicações, lousas que ajudaram muitos a aprender, vai à pedra, menino, ou lápides que emprestam sua dignidade eterna ao repouso final, sit tibi terra levis, vale!

Porque canteiros? Porque com seu marrão fazem os cantos, os bizotes, afeiçoando os blocos em arcos e poliedros. Vão daí as abóbadas de construções antigas, pontes, túneis, catedrais, monumentais esculturas a resistir ao tempo e intempéries. São as chamadas obras de cantaria, como os primeiros trechos do cais do Porto de Santos.

Mas, se em nossas ruas, docas e pátios industriais ainda remanescem os calçamentos em paralelepípedos, isso se deve, em parte, à limitada capacidade de suporte de nosso subsolo, exigindo freqüentes reparos para renivelamento.

Quando ao passar dos anos adquirem uma razoável consolidação, estabilizando-se os recalques, são sepultados sob camadas de asfalto, afinal os veículos exigem pistas de superfície contínua, sem as juntas que causam trepidação. As melhorias agradam a todos, principalmente aos eleitores.

A tecnologia avançou muito, aperfeiçoando os concretos asfálticos e de cimento para os pavimentos, que são realizados com alto índice de mecanização, resultando em superfícies uniformes de alta qualidade.

Em contradição, aí reside a grande perda pelo avanço do conhecimento e da inovação. Morrendo os severinos, calceteiros e canteiros, suas artes e segredos de pedra vão-se embora com eles. Com certeza, deixam saudades em muitos, tantos aos que ficaram quanto aos que partiram.

(*) Aureo Emanuel Pasqualeto Figueiredo, 54, é engenheiro mecânico e civil, mestre em Engenharia pela Escola Politécnica da USP e diretor de Pós Graduação, Pesquisa e Extensão da Universidade Santa Cecília.

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