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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (L)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

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História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

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Capítulo 2 – A literatura de identidade portuária

2.5 O porto multinacional

A face internacional do Macuco e dos trabalhadores do porto é um tema recorrente em Navios Iluminados. Trabalhadores de todos os cantos do mundo, viajantes clandestinos e mulheres de sotaque "estrangeirado" aparecem por todo o livro. Há os portugueses, como Manuel Milagre, já adaptados à cidade e "amigos da companhia". Há os espanhóis ligados ao sindicato. E as prostitutas de várias nacionalidade que recebiam marinheiros, taifeiros, foguistas:

E lá se iam, ruidosas, contentes, levando cada uma o seu par. Algumas, de pronúncia estrangeirada, não satisfeitas, distribuíam pelos que ficavam cartões com o nome e o endereço. (NI, 19)

Já no Parisien Bar, repleto de operários e marítimos fumando e jogando bilhar e dominó, havia a Madame Jannette, mantenedora do local, uma mulher gorda e pesada que controlava o espaço a partir de sua cadeira alta defronte da registradora. Ela se comunicava "trocando língua" e preferindo dinheiro "estrangeiro".

Embora a trama de Navios Iluminados se passe entre o final de 1926 e os primeiros anos da década seguinte, pode-se usar o censo municipal de 1913 para se obter uma idéia do tamanho do contingente imigrante na cidade. Naquele ano viviam em Santos 39.802 estrangeiros, número que equivalia a 44,7% da população total do município. Os portugueses formavam a maior colônia, com 23.055 pessoas, seguidos pelos espanhóis (8.343), italianos (1.852), ingleses (683), turcos (572), japoneses (358) e alemães (344), sem contar norte-americanos, austríacos, franceses, holandeses e russos, entre outros [143].

No capítulo 7 de Navios Iluminados, quando o protagonista José Severino de Jesus começa a trabalhar na estiva, a chamada do chefe da turma 65 revela a face internacional dos trabalhadores do porto: o espanhol Domingos Peniche, o açoriano Antônio Canadas, o imigrante pernambucano Aurélio Perigo, o italiano Pascoal Fiori, o japonês Ushiko Giuske, o austríaco Paulo Friedericks, o russo Nicolau Witambosk, o "bresente" de Jorge Kifuri, o alemão Otto Reinam, além de Severino e outros brasileiros.

Junto com a convivência internacional, as brincadeiras preconceituosas e gracejos de boca em boca entre as duas fileiras de trabalhadores, a que vinha carregada do navio e a que voltava de mãos vazias do armazém: "Portuga unha de fome", "Cabeça chata", "Mussolini dos infernos, por que não vai pra tua terra?", "Olha a catinga do negro", "Amarelo de olho torto, afirma as pernas", "Boca de bagre", "Chupa peito", "Feijoada". O Macuco, naqueles anos, era um bairro multinacional.

Gitahy escreveu sobre a convivência entre trabalhadores de diversas nacionalidades:

Como foi visto, vários grupos da classe operária experimentando diferentes situações com respeito ao mercado e ao processo de trabalho, vindos de diferentes experiências culturais e sociais – vida de agricultora numa vila de Portugal ou das Ilhas do Atlântico, escravidão no Brasil, outros contextos sociais europeus e asiáticos, gente com as mais acidentadas histórias de vida – foram capazes de construir juntos uma comunidade cujo núcleo eram os trabalhadores do porto (...).

O trabalhador do porto vivia perto do local de trabalho e seu ritmo de trabalho, no mínimo irregular, permitia a ele ir e vir de casa para o porto mais de uma vez ao dia [144].

Ao tratar do cotidiano operário em Santos entre 1930 e 1954, Rodrigo Rodrigues Tavares mostra como se formavam os bairros-nação, categoria na qual a identidade do trabalhador era definida por sua origem nacional [145].

Concentravam-se espanhóis e italianos no Campo Grande, portugueses no morro do São Bento e japoneses na Ponta da Praia (estes mais isolados), muitos dos quais atuavam em atividades ligadas ao comércio.

Mas enquanto o Relatório da Comissão Executiva da Coligação Operária de Santos sobre o pleito de 1928 registrava 200 tecelões e 300 metalúrgicos na cidade; os trabalhadores em café (profissões já ligadas ao porto) somavam 3.400 pessoas e os trabalhadores do porto, por sua vez, eram 4.000, grande parte concentrada nos bairros portuários Paquetá e Macuco que, naquele tempo, compreendia as áreas também dos atuais Estuário e Aparecida:

A situação no cais era completamente diferente daquela vivenciada pelo primeiro grupo disperso pelos espaços do comércio urbano. A diferença se fazia tanto pela concentração de milhares de portuários no mesmo espaço, como pela distância entre patrão e empregado.

Se alguns empregados do comércio e da construção civil acreditavam que, um dia, poderiam chegar a patrões, seria impossível convencer os doqueiros ou os estivadores que eles chegariam a proprietários da Companhia Docas de Santos. O convívio no local de trabalho com o patrão não ocorria no porto [146].

A concentração de trabalhadores nos bairros portuários desfaz a categoria bairros-nação: "as identidades nacionais se sobrepunham no porto". A sobreposição das identidades nacionais garante ao espaço portuário uma variação de tipos maior que a dos bairros operários, sem contar o cosmopolitismo dos passageiros e marinheiros, as prostitutas de diversas nacionalidades.

Ambientação que talvez tenha mais proximidades com Hamburgo, Liverpool, Nova York e, no Brasil, com Rio de Janeiro, que com a próxima e industrializada São Paulo, cuja configuração é complementar ao complexo portuário de escoamento da produção cafeeira e importação de insumos para o parque industrial [147].

As condições específicas de trabalho nos portos também favorecem a internacionalização da cultura portuária. A autora resgata como na virada do século XIX para o XX são implementados os portos modernos:

Ao mesmo tempo, na maioria dos portos do mundo, floresce uma política de contratação de mão-de-obra que desembocou na criação de um sistema ocasional de trabalho, ainda não completamente eliminado em muitos portos atuais.

Este sistema apareceu historicamente como a resposta dada pelos empregadores às constantes flutuações de carga e descarga de mercadorias nos portos. O traço básico do sistema é uma extrema flexibilidade na contratação dos trabalhadores. Diariamente e até duas vezes no dia, uma multidão de candidatos aglomerava-se nos portões dos portos para conseguir trabalho para o dia ou até por algumas horas.

Este sistema de contratação conhecido como free call (Inglaterra), shape up (Estados Unidos) ou "parede" (Brasil), levou à criação e manutenção de um exército permanente de reserva na área do porto, ao qual os empregadores recorrem nos momentos de pico do movimento do porto [148].

A multiplicidade de origens e destinos das cargas também favorecem à formação de um espaço internacional, como podemos ver nesta passagem do início do romance na qual Severino, ainda desempregado, passeio pelo cais santista:

Severino [...] saiu, sem pressa, calmamente, tomando a direção do cais, onde as horas passavam rápidas, distraído com uma porção de coisas nunca vistas por ele. A chegada dos navios que lentamente atracavam, às vezes depois de manobras custosas.

A labuta sem fim de lhes encher e esvaziar os ventres. Desembarcavam-se trigo da Argentina, vinhos de França e Portugal, mármore da Itália, carvão da Inglaterra, aço e ferro da Alemanha, maquinismo dos Estados Unidos, cimento e bacalhau da Noruega, óleo da Holanda, sedas e porcelanas do Japão, adubos da Bélgica, massa para papel da Suécia, enxofre do Chile, juta e chá da Índia.

Embarcavam-se café, laranja, banana, algodão, fumo, carne.

Um formigueiro de homens suados, barulho de guindastes, locomotivas arfando, vozes, gritos, apitos. Um dia dos diabos, que azoava a atraía Severino. (NI, 17)

Enfim, as passagens acima, tanto as ficcionais como as de estudos, confirmam um imaginário de uma cidade provisória [149], de comércio, de transbordo de cargas e sotaques, de migrantes e viajantes, de oportunidades e porões, de idas e vindas, como indicam o poema acima de Roldão Mendes Rosa ou os versos a seguir de Alberto Martins:

cais

onde as coisas ancoram

onde as coisas demoram

algum tempo

antes de partir [150]