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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Primeira e última chácara da Barra

Da época da Independência do Brasil

Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):


A última CHÁCARA DA BARRA, contemporânea da Independência - Aspecto da "casa grande"
Legenda e imagem publicadas com a matéria

A última chácara da Barra, contemporânea da Independência

A velha "Chácara dos Dois Rios", chamada ultimamente "das Pescadinhas", é uma das boas reminiscências sociais de Santos. Foi a primeira chácara da Barra (N.E.: antigo nome da atual praia do Boqueirão), anterior à de "Embaré", do Comm. Ferreira da Silva, que foi pai do Visconde daquele nome.

No princípio do século passado era ponto de caçada, pois ficava no centro de uma região de banhados, abundante de aves aquáticas de toda ordem, garças, socós, narcejas, saracuras, marrecos, mergulhões, maçaricos, patos bravos, e da cidade, que ficava ao outro lado da ilha, vinham famílias veranear e praticar a caça e mesmo a pesca.

Em 1865, adquiriu-a a veneranda sra. d. Carolina Mariana dos Santos, dos Galvão Bueno, de São Paulo, viúva do conselheiro comm. Antonio Martins dos Santos, continuando a tradição da velha chácara, hospedando as famílias amigas que a procuravam e promovendo recepções.

Mais tarde, o progresso invadiu aquela parte da ilha, a cidade estendia-se para o mar, refrigerando-se em suas brisas puras. As velhas chácaras santistas foram desaparecendo, começando pela "de Embaré" e "da Marquesa", no lado da Ponta da Praia.

A última a desaparecer, daquelas antigas, foi a dos "Dois Rios", ou "das Pescadinhas". Aqui a vemos, em nossa gravura, com seu aspecto de 1880, pitoresca, com suas palmeiras e pinheiros alinhados em toda a frente, escondendo o pomar e o bosque que ficavam ao fundo. Hoje, em seu lugar, abrem-se a Rua da Paz e a Avenida Washington Luiz. Vai chegando a idade dos "apartamentos", apologia material do século (N.E.: século XX).

É da "Idade Média" da famosa chácara santista, a passagem que, a seguir, relatamos, outr'ora conhecida dos velhos santistas:

Foi em agosto de 1874. A chácara de d. Carolina regurgitava da melhor sociedade local; os Ferreira da Silva, os Proost de Sousa, os Rocha Leite, os Menezes Forjaz, os Pereira dos Santos, os Gama Cochrane, os Xavier da Silveira, os Botelho de Carvalho, os Martins Rodrigues, os Ablas, os Nébias, os Bittencourt, os Carneiro Bastos, os Carvalho de Silva, os Araújo Vianna, os Andrada e Silva, os Azurém Costa, os Vergueiro e tantos mais.

Amaro Pinto da Trindade, o celebrado maestro e compositor, dirigia a sua orquestra de salão, e deliciava os presentes com suas valsas, última novidade para Santos, com suas polcas e as velhas mazurcas finas ou saltitantes shottishs, mantendo em movimento os convidados.

Xavier da Silveira, o Silveirinha, orador famoso, figura obrigatória das festas locais, lá estava, centralizando as atenções de velhos e moços, requestado por todas as casadoiras.

Amaro Pinto mantinha verdadeira veneração pelo moço conterrâneo, por seu talento, por sua altivez, por sua cultura, por sua voz e por sua presença. Tudo em Xavier da Silveira enlevava-o, como enlevava uma sociedade inteira, em Santos e fora dela. Pediu-lhe que cantasse uma das suas valsas-serenatas. Xavier da Siveira cantou-a em meio do salão, e tudo em redor petrificou-se, embebido na melodia e na doçura da sua voz. Amaro Pinto beijou-o comovido. Era o seu grande, o seu melhor amigo, a sua maior admiração na vida.

Depois dele, uma senhora, Vieira Barbosa, de linda voz aveludada e quente, cantou a Serenata de Schubert, dedicando-a a Xavier da Silveira.

O Silveirinha ouviu-a até quase o fim, mas, antes do seu término, tomado de estranha comoção, retirou-se da sala.

Sua saída foi notada e sentida apenas pela cantora, que lhe votava uma profunda simpatia. Amaro Pinto notou-a somente ao fim da execução. Levantou-se então do piano e foi à procura do amigo. Encontrou-o na praia, lá bem junto às águas banhadas de luar, dentro da noite belíssima que fazia. Perguntou-lhe se tinha vindo gozar sozinho, egoisticamente, o espetáculo daquela natureza, mas, ao mesmo tempo, viu-lhe umas últimas lágrimas a marejarem os cílios, e arrependeu-se da pergunta.

Assim mesmo, respondeu-lhe o Silveirinha, surpreendido em sua crise emocional:

- Não vim contemplar a natureza, meu amigo; vim refugiar-me nela. Tinha comigo umas sobras, uma contribuição de lágrimas, que não podia derramar ali, naquele remanso de amigos em que me achava, porque ali é o templo da felicidade!

Silveirinha terminou seu desabafo em versos; naqueles versos que lhe cantavam sempre á flor dos lábios, e que encantavam as moças; mas, desta vez, repassados de profunda tristeza:

"Fui vertê-las sobre as vagas
Que gemem com as procelas,
Porque o pranto do infortúnio
Deve gemer como elas!..."

A que infortúnio se referiria o poeta-orador, se sua vida, então, nos 34 anos, vinha-lhe sendo um perpétuo sorriso, um repuxo de glórias e conquistas?

Terminara a festa, e os carros levavam para a cidade distante os últimos convidados, menos os que ficavam para o veraneio do costume.

Só dias depois compreendeu a cantora apaixonada, da chácara dos Dois Rios, como pôde Amaro Pinto compreender, o mistério da retirada e das lágrimas do Silveirinha, em plena festa.

A varíola invadira Santos e atingira o poeta. Lá estava ele, agora, ao fundo de um leito, agonizante. Ao fim de doze dias estava morto, sob o profundo pranto e a sincera consternação de todo o povo de sua terra.

Amaro Pinto ficou desolado. Foram mesmo dessa época as suas melhores inspirações.

Sete dias depois, na Matriz, o maestro santista regia a sua orquestra, acompanhando a missa fúnebre do amigo. Não resistiu a uma tentação; era quase um escândalo, mas tocou a Serenata, a Serenata de Schubert que fizera chorar Xavier da Silveira, e agora, era ele, invadido de saudade, quem chorava, em soluços, no alto do coro da velha igreja santista.

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