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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO DO CAFÉ
O auge do café e o início do porto santista (4)

Grandes transformações marcaram o final do século XIX e início do século XX
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Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):
 

Trecho da matéria na publicação original

A grande empresa portuária de Santos que é, no Centenário da Cidade, a maior expressão do seu progresso

O colossal empreendimento de que resultou a Companhia Docas de Santos, honra e orgulho da engenharia nacional

Aqueles que habitaram Santos nos últimos anos da monarquia e buscam, hoje, evocar recordações daqueles tempos, hão de sentir uma dolorosa impressão de pesadelo na visão retrospectiva das deploráveis condições do seu porto, já então digno de melhor sorte pelo muito que dele vinham exigindo os surtos progressistas do Estado de S. Paulo, culminados agora no formidável desenvolvimento de todos os ramos de sua atividade.

Os forasteiros que ora nos visitam e admiram a obra colossal que é o cais do grande porto de São Paulo, os próprios filhos da terra, representantes da moderna geração, ouvem com espírito quase incrédulo a narrativa descritiva, penosa e deprimente, de Santos d'antanho, com o seu casario colonial, recortado, aos torcicolos, de ruelas lôbregas e infectas, e a sua extensa faixa marítima paludosa, repelindo para o centro navegável do canal os pequenos iates e escunas de cabotagem, fundeados entre os cascos de alto bordo, mais raros, dos transatlânticos europeus.

O porto de outrora - Tristes tempos aqueles! De velhos pardieiros erigidos em trapiches alfandegados, tortuosas e alquebraras pontes de construção pré-histórica serpenteavam pelo lodaçal até penetrarem algumas braças nas águas turvas da baía. Sob o tremendo bochorno dos dias estivais, a pele suarenta e escaldante, enxameavam por elas turmas de homens brancos, que a sedução de um El Dorado para tantos enganoso atraíra d'além-mar, de envolta com os negros filhos da raça escravizada da África, arquejando todos ao peso da carga de que iam aliviando o bojo dos navios e atestando os trapiches. Os barcos, cuja atracação se apresentava problemática por muito tempo ainda, descarregavam mesmo ao largo, sobre pontões, sorte de velhos cascos aposentados, onde as mercadorias, a troco de grossa armazenagem, jaziam até o dia em que o fisco, cobrando-se das respectivas taxas, permitia seu livre ingresso no território nacional.

Serviços primitivos, deficientíssimos, executados com a desesperadora lentidão da única máquina da época, o braço humano, cobrados a peso de ouro pelos felizes trapicheiros e pontonistas, e sujeitos, para os importadores, a toda espécie de dolos e ludíbrios clamorosos, deixavam eles tanto a desejar e atentavam tanto contra os nossos foros de p ovo progressista e honesto, que a péssima nomeada do porto de Santos se tornara corrente e proverbial na Europa, levantando séria animosidade no espírito dos armadores, muitos dos quais se negavam sistematicamente a que seus barcos demandassem nossas águas, a menos que os exportadores lhes acenassem com fretes fabulosos.

Verdade seja que miraculosas fortunas, surgindo num ápice, fizeram aquela época chegar até nós com o sugestivo nome de "tempo da mina"... Mas a que porto não permitia coibir; pela porta francamente escancarada do contrabando, que a espantosa desorganização dos serviços do porto não permitia coibir, nem a ausência absoluta de escrúpulo na apropriação indébita de mercadorias, atiradas ao acaso e confundidas aos montões na praia, e pelo atrevimento que animava os espíritos avassalados por desmarcada ambição, arrostando os botes mortais da febre amarela na conquista de uma fortuna rápida e polpuda...

A febre amarela - A febre amarela! Endêmico naqueles tétricos tempos, o terrível morbus tinha o seu principal habitat radicado no paul nojento e miasmático que cintava, na orla marítima, o coração da cidade, o seu centro comercial. Sob a canícula senegalesca dos sóis de verão, o lodaçal fervilhava na química elaboração de gases deletérios; e, à noite, quando, vencida, esgotada por um trabalho exasperante, a população recolhia aos seus lares e amodorrava sob a pressão angustiosa da atmosfera abafadiça, portas a dentro entrava-lhe o pútrido odor da maresia, acompanhado de legiões de mosquitos vorazes, em que a ciência oficial já descobrira o terrível transmissor da pavorosa epidemia...

Dr. Oscar Weinschenck, vice-presidente da CDS

Dr. Guilherme Guinle, presidente
da Companhia Docas de Santos

Dr. Ismael de Sousa, inspetor geral da CDS

Fotos publicadas com a matéria

Como surgiu a Companhia Docas - Contudo, já em 13 de outubro de 1869, fora publicado o decreto n. 1.746, do governo imperial, abrindo concorrência e autorizando propostas para melhoramento dos portos brasileiros.

Mas, somente quase 20 anos depois da concessão outorgada ao conde da Estrela, e em obediência ao edital de concorrência da Diretoria do Ministério de Obras Públicas, publicado a 29 de outubro de 1886, e conforme decreto de 12 de julho de 1888, sob o n. 9.979, o governo imperial resolveu contratar a execução das obras de melhoramento do porto de Santos com José Pinto de Oliveira, Cândido Gaffrée, Eduardo P. Guinle, João Gomes Ribeiro de Avellar, dr. Alfredo Camillo Valdetaro, Benedicto Antonio da Silva, Francisco Ribeiro e Barros Braga.

Firmado o contrato, os concessionários organizaram a firma social de Gaffrée, Guinle e Cia., em 1892, substituída, depois, pela Sociedade "Companhia Docas de Santos", na qual figuravam, em primeira plana, as duas verdadeiras almas da associação e principais iniciadores da grande obra, Cândido Gaffrée e Eduardo P. Guinle.

Uma obra gigantesca - Ainda o advento da República não se tornara uma realidade e já a população de Santos seguia com significativo interesse os pródromos da obra gigantesca que é hoje o cais do grande porto paulista.

Fora necessário um trabalho especial, flagrante de verdade e traçado em linhas altamente sugestivas, para apanhar ao vivo toda a epopéia que constituiu os primeiros embates da engenharia da Docas contra a natureza do terreno inseguro e traiçoeiro em que agia, aliada ao flagelo da epidemia e à inclemência do clima.

Com o pessoal constantemente dizimado pela febre, em luta insana para preencher os respectivos claros, recebendo com incrível morosidade e deficiência o material importado para as obras, a tudo, entretanto, foi vencendo a férrea tenacidade e os inesgotáveis recursos técnicos dos homens escolhidos para o ciclópico cometimento.

E em 1892, a 2 de fevereiro, a Companhia Docas de Santos inaugurava o seu primeiro trecho de cais, na extensão de 250 metros. Estava palmilhada a etapa inicial da grande obra, e o novo tráfego das mercadorias por via marítima, em Santos, estreava-se, sob os melhores auspícios, revelando desde logo a organização modelar que, para o futuro, seria corrente nos serviços da Empresa. Em 1893, era aberta ao nosso intercâmbio a restante extensão do cais contratado, perfazendo o total de 866 metros. E, ainda nesse mesmo ano, a 27 de julho, a São Paulo Railway ligava os seus trilhos aos da Companhia Docas de Santos.

Do Valongo às proximidades da Alfândega, a metamorfose fora completa. Ao longo do novo cais as garras de aço dos poderosos guindastes hidráulicos arrancavam a carga do bojo dos transatlânticos, colocando-a sobre a muralha com destino aos cinco grandes armazéns até então construídos. Em seguida, pelos porões já vazios, despejava-se uma chuva ininterrupta de café ensacado, o "ouro" de S. Paulo, com destino aos mercados europeus e norte-americanos.

Era o trabalho intenso do nosso intercâmbio, não mais aquela anarquia funesta e desmoralizante de um lustro antes, mas, finalmente, a atuação segura, eficiente e disciplinada das empresas solidamente constituídas e superiormente administradas. A rapinagem infrene e o contrabando às escâncaras sofreram um golpe de morte. O fisco respirava, constatando, assombrado, o incrível aumento das rendas alfandegárias.

Sob o colossal volume e extensão da muralha granítica aniquilara-se para sempre grande parte da palude deletéria e repugnante em que o morbus epidêmico assentara arraiais: a febre amarela decrescia rapidamente e, a breve trecho, no espírito da população saudável e ativa, enxameando já então pelo triplo no bairro comercial da "urbs", que o exemplo da Docas também higienizara, o terrível flagelo era recordado quase como uma lenda macabra, germinada pelo sopro de um gênio doentio, a Pôe...

Nova era - A surpreendente transformação do porto de Santos impôs-se desde logo à admiração e ao aplauso de todos. Nas altas esferas governamentais ela era apregoada em expressões de calorosa justiça e simpatia pelos mais conspícuos dos seus representantes. A transplantação, para aqui, de algumas dessas apreciações, é da maior relevância no assunto, que ficaria incompleto sem tão abalizados testemunhos.

Assim é que, na Câmara Federal de Deputados, em 29 de setembro de 1896, o sr. Serzedello Corrêa, relator do orçamento da receita, dizia: "Depois da inauguração do cais e da execução dos serviços aduaneiros pela Companhia Docas, as rendas fiscais subiram de um ano para outro, conservando-se a mesma tonelagem de mercadorias importadas, de 11 a 22.000 contos de réis. Essa renda elevou-se o ano passado a 40.000 contos".

Em outubro do mesmo ano, e na mesma Câmara, assim falava o sr. Lauro Muller: "Para os que conheceram o porto de Santos anteriormente à concessão e que se recordam como viviam atiradas ao cais as mercadorias e o descrédito que sobre nós caía pelo flagelo da epidemia anual nas embarcações estrangeiras que permaneciam por um ou dois anos até serem descarregadas, os que se recordam dessas circunstâncias e os que vêem a transformação do porto de Santos, não só pela facilidade comercial, como pela economia, devidas a essa instituição; os que se recordam dos serviços prestados por essa Companhia ao próprio governo, na construção dos armazéns; os que se lembram do que era a renda da União... e que vem de atingir a mais do triplo - não podem deixar de ter simpatias por uma empresa dessa natureza".

O dr. Campos Salles, quando presidente da República, na sua mensagem ao Congresso, em 1901, afirmava: "As grandes vantagens proporcionadas à nação, pela instalação conveniente dos portos, estão postas em brilhante evidência pelas obras realizadas no importante porto de Santos. O comércio daquela praça começa a colher os largos benefícios desse melhoramento, que facilita a navegação internacional, conseguindo para ali fretes inferiores aos cobrados para esta capital".

Em 1897, o dr. Joaquim Murtinho, então ministro da Indústria, assegurava no seu relatório que os melhoramentos do porto de Santos "constituíam um auxílio poderosíssimo para o comércio e uma glória para o Brasil".

O dr. Bernardino de Campos, quando ministro da Fazenda, em 1898, também atestava que "os serviços da utilíssima instituição que era a Companhia Docas, ao comércio e à saúde pública da cidade de Santos, não podiam ser maiores do que a prática vinha demonstrando".

Estas citações dos nossos homens em evidência na época poderiam ser multiplicadas - tantas foram elas; mas as que acima ficam registradas, pela sua procedência e eloqüência, bastam para realçar o que já representava e valia a grande empresa nacional nos seus primeiros anos de vida. Entretanto, não seria demais transcrever ainda um trecho de 1893, da Associação Comercial de Santos, legítima expoente da nossa praça e porta-voz oficial das suas necessidades e aspirações:

"Pelo relevante serviço que já está prestando o trecho em tráfego, podemos ajuizar as vantagens, as facilidades e os lucros que o nosso comércio auferirá quando todo ele estiver concluído; e, quando tal se der, poderemos nos orgulhar de possuirmos o melhor porto da América do Sul e um dos mais notáveis, senão igual aos mais afamados do mundo. Também poucas vezes se tem visto entre nós executar-se com tanta perfeição e probidade uma obra de tão elevado valor; é essa a opinião dos competentes".

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Do Paquetá aos Outeirinhos - De fato, tinha razão a Associação Comercial de Santos, no seu relatório de 1893. A extensão do cais em funcionamento até a Alfândega, conquanto já fosse importantíssima, prestando ao comércio do Estado e ao governo da União os relevantes serviços enumerados pelos seus próprios e mais elevados órgãos, constituía, ainda assim, apenas a execução do contrato inicial da Companhia, em 1888, com o extinto governo imperial.

Entregues ao tráfego em 1892, os primeiros 260 metros de cais, tais foram as inúmeras vantagens verificadas, que desde logo se percebeu a imperiosa necessidade de um novo contrato para prolongar o cais da Alfândega ao Paquetá, o que elevaria o total da extensão da muralha a 2.149 metros.

Lavrado, portanto, o contrato em questão, e executados com a máxima celeridade os respectivos trabalhos, a Companhia Docas de Santos, em 1908, já tinha em movimentado tráfego aquela extensão, além de mais meio quilômetro, que, em caso de o exigirem circunstâncias especiais, poderia também ser aproveitado.

Mas a última demão ainda não estava dada e, em princípio de funcionamento os 2.149 metros totais, mais uma vez era evidente que o extraordinário impulso do porto exigia obra de maior monta. E, sem interrupção, em longuíssima reta do Paquetá a Outeirinhos, a Companhia Docas foi estirando a muralha, do mesmo modo que aterrava a extensa bacia de mar que ia ficando aprisionada entre a sucessão dos blocos colossais e a terra firme, da qual aquela bacia acabou, enfim, fazendo parte integrante.

Foi uma verdadeira obra de Hércules, caríssima e esplendidamente acabada, apresentando o cais um todo indivisível, homogêneo, obedecendo a um plano geral, antecipadamente traçado, embora resultante de vários atos firmados por contrato entre o governo federal e a Companhia.

Assentado, solenemente, o último bloco, em 6 de novembro de 1908, os trabalhos complementares da Empresa prosseguiram sem desfalecimento. E hoje, com os seus 5.020 metros de muralha, do Valongo aos Outeirinhos, recortado de trilhos de locomotivas, pejado de colossais armazéns, guindastes, casas de máquinas e oficinas, o cais de Santos é bem uma obra imponente, que honra a nossa engenharia e acaricia o nosso patriótico orgulho.

Os grandes vultos da empresa - E aqui é tempo de mencionar o nome do grande executor do cais do nosso porto, o saudoso engenheiro Guilherme Weinschenck, de quem disse Cândido Gaffrée, ao vê-lo desaparecer:

"Amigo dedicado que me acompanhou desde o dia em que se lançou a principal pedra do cais de Santos, companheiro infatigável que dedicou toda a sua atividade, toda a sua inexcedível competência durante mais de 30 anos às obras grandiosas do porto de Santos, que perpetuaram o seu nome e a sua excepcional capacidade".

Extintos que são, por sua vez, Cândido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle, eles não viverão subjetiva e imorredouramente somente pela homenagem do monumento que, em sua memória, se inaugurou a 19 de novembro de 1934, mas, e principalmente, pela grandeza do cometimento que levaram a cabo com um descortínio, energia e competência acima de qualquer encômio, culminado na obra gigantesca, puramente nacional, de que o nosso país se pode ufanar, e que iguala, se não supera, congêneres das mais civilizadas nações do globo.

O.V.
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