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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS 1888/89
Outro clube emancipador: Onze de Agosto

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No final da Monarquia, em Santos, as campanhas abolicionista e republicana eram na prática uma só, com os mesmos personagens, nos mesmos locais, simultâneas. Se o trabalho dos abolicionistas terminou em maio de 1888, com as festas pela promulgação da Lei Áurea, o dos republicanos se completou um ano e meio depois, com a Proclamação da República.

Em Santos, durante algum tempo, existiram clubes especialmente dedicados à libertação dos escravos, como a Sociedade Emancipadora Onze de Agosto, que na sua abertura teve um discurso do "presidente perpétuo" dr. Aprígio Guimarães, depois registrado na Revista Nacional de Sciências, Artes e Letras (volume II/ano 1, outubro a  dezembro de 1877, páginas 193 a 200, editada e dirigida por dr. Antonio Carlos e Inglez de Souza, com impressão na Tipografia a Vapor do Diário de Santos - exemplar no acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos - SHEC). A ortografia foi atualizada nesta transcrição:


Imagem: reprodução parcial da página 193 da publicação original na Revista Nacional de 1877

Discurso da abertura da Sociedade Emancipadora Onze de Agosto

Minhas senhoras e meus senhores:

Ainda um viva à Liberdade!

Ainda um protesto contra a escravidão, congratulemo-nos todos...

Onde houver um escravo que seja, um milhão de protestos não é demais!

Viva a Liberdade.

Longe as doutrinas de grosseiros utilitários, que proclamam a escravidão um fio necessário na teia da evolução humanitária... Ontem, como hoje e amanhã, o escravo há sido e há de ser o símbolo afrontoso do máximo atentado contra a razão e a dignidade do Homem, contra o poder e a bondade de Deus.

Se disse Aristóteles que dos homens uns são naturalmente livres, e outros naturalmente escravos, que é escravo por natureza, aquele que é inferior aos seus semelhantes, como o corpo é inferior à alma, como o bruto é inferior ao homem... se Platão, menos positivo que Aristóteles no tocante à origem e fundamento da escravidão, chega entretanto às mesmas conclusões... [1], nada poderá assentar a doutrina homicida, de que o escravo foi ou pode ser uma entidade necessária na marcha da Humanidade para a cidade do futuro, para a cidade de Deus.

Não, a escravidão não se confunde com o berço da humanidade! Antes lá está no pórtico das tradições bíblicas: Lúcifer quis ser como Deus, quis ser mais livre; Eva deixou-se levar, e por sua vez levou o embevecido companheiro, pela idéia de ser mais livre, de levantar a cabeça e devassar os sóis do firmamento; Caim matou seu irmão para ser mais livre, pois assombrava-o a ascendência, que Abel parecia ganhar... Eis aqui a natureza em seus arrojos primitivos, eis aqui os primeiros Spartacos, eis aqui as primeiras armas flamejantes que combateram às cegas pela Liberdade...

Liberdade pois, e não escravidão, eis o que está inscrito no berço da Humanidade. E aliás Ferecrates, poeta cômico do tempo de Péricles, chora a época em que não havia escravos; Thimeo de Tauremonium, contemporâneo de Aristóteles, afirma que, entre os locreanos e foceanos, a escravidão, por muito tempo interdita pela lei, só de pouco havia sido autorizada; e o historiador Theopompo, outro contemporâneo de Aristóteles, refere que, aos chiotas, devem os gregos o uso de comprar escravos, e que o oráculo de Delfos, sabedor do crime, declarou que os chiotas mereciam a cólera dos deuses [2].

Honra a vós, Mocidade Acadêmica, que tão nobremente juntais as vozes aos concertos de generosos protestos, levantados em todos os tempos contra o atentado da escravidão!

As bênçãos do Céu sobre vós, Mocidade Acadêmica, que desde hoje, quando a Pátria ainda não vos impunha assento nas oficinas do seu futuro, e era contente com os modestos labores do vosso prometedor aprendizado... que desde hoje carregais, uma pedra, e que pedra!

Que perigo imenso, meus srs. e todos a dormirmos à beira do abismo! Leia-se o passado... Toda a precaução é inútil: os oprimidos têm sempre um idioma comum, o idioma da dor: o escravo da Ásia, o da África, o da Gália, era sempre o homem, a humanidade: todos dispunham de mil sinais de reconhecimento recíproco, e de mil modos de concerto para o fim desejado por cada um e por todos: no dia da vingança esses escravos, nascidos sob céus diferentes, falavam a mesma língua, tinham o mesmo acento, a língua e o acento da Liberdade [3].

Honra a vós, Mocidade Acadêmica, s bênçãos do Céu sobre vós, que assim quereis prevenir, com a caridade, que a vítima desperte para levantar a torre sagrada da Liberdade, uma Babel de nova espécie com uma língua só, entoando a tremenda harmonia de todos os desesperos, e confundindo as línguas dos sitiantes!...[4].

***

É sempre com íntima alegria, meus senhores, que me acho nas festas dos moços; e não está em mim furtar-me às manifestações do meu prazer.

Há um cunho especial nas festas da Mocidade Brasileira, uma antítese consoladora com a marcha da nossa sociedade em geral, com o aspecto dos congressos dos nossos chamados homens feitos, homens práticos, homens prudentes... feitos em simulações e máscaras de virtude em caras de vício e de crime - práticos das artimanhas do mercantilismo - prudentes como salteadores espreitando a passagem do povo que é incauto viandante...

Nas festas da Mocidade a bandeira nunca traz nome de homem, a divisa é sempre uma grande idéia: os moços brasileiros não aparecem nunca nessas exibições cesarianas, em que se estampa a triste quadra...[5]

Feliz sintoma! dizemos todos os crentes de uma Moral do cidadão, como há uma Moral do homem e da humanidade...

E replicam de todos os ângulos, com sorrisos de compaixão pela nossa ingenuidade: Amanhã serão como os outros, os sonhos dos vinte anos hão de passar...

Por mim não negarei, que não posso negar o que vejo...

Mas os culpados não sereis vós, mancebos: do alto vem a corrupção dos povos...

Eles - os feitos, os práticos, os prudentes - tomam-vos a frente, e apontam-vos: ou por aqui, ou não passareis... É uma guerra de recursos, diabólicos recursos: vem a vaidade com os seus atrativos, vem a fome com as suas tenazes... na rua um agaloado que passa, e a quem custou tão pouco a cômoda posição... em torno a esposa aflita e o filho que chora... oh! é uma tentação satânica, e vós não podeis ser outros tantos Cristos no cimo da montanha da corrupção...

Malditos eles, que hão de corromper-vos! Corrumpi et corrumpere seculum vocant, podemos repetir com Tácito.

Malditos eles, que pretendem assentar o futuro da Pátria na falta de caráter cívico, na adoração do bezerro d'ouro!

Malditos eles, uns refinadores das baixezas, que a Corte emigrada de Portugal deixa na terra brasileira!

Malditos eles, os Sejanos e Tigelinos de que falou um dos nossos bispos... uns Sejanos e Tigelinos, que não têm o mérito da franqueza; uns bobos incruentos, que respeitam a corpos e matam as almas; uns lacaios acabados quando olham para cima, com estafamentos de grandes senhores quando olham para baixo, se é que abaixo deles há alguma coisa...[6].

***

Estava no Rio de Janeiro a Corte portuguesa, uma corte escrava dos mais ridículos prejuízos, e imersa na mais grosseira ignorância: falo com um autor insuspeito, um idólatra de d. Pedro I. Reinavam o luxo e a dissipação, estes dois mortais inimigos da felicidade. O Banco do Brasil, organizado pelos financeiros do tempo, que deviam ter tanto de ciência quanto de moralidade, havia sido roubado por seus administradores.

- "Os administradores do Banco tinham recebido de seus pais sólidas heranças, oriundas de tenaz trabalho e severa economia; e não só dissiparam riquezas tão bem adquiridas, dando-se a largas despesas e a ridículas compras de títulos de nobrezas e fitas, senão também, deixando-se cair no crime por um declive invencível, chegaram a pilhar com escândalo o estabelecimento. Semelhantes excessos não espantavam os ministros, e antes eram títulos para os seus favores: um dos tais saiu do país como diplomata; outro passou a exercer funções no paço; um terceiro foi barão; conselheiro, e membro da junta do comércio; e finalmente de um dos ex-administradores fez-se um conde comandante de regimento de cavalaria." [7].

E digam todos os que me ouvem, se tão felizes princípios não têm sido guardados até hoje na Corte do Rio de Janeiro...

Se no corpo delicado e frágil das matronas romanas, nos tempos dos Tibérios e Neros, pesavam ilhas e províncias, o pão de um povo faminto, a herança de mil famílias pobres - na frase de um gênio da época, digam por analogia todos os que me ouvem, quais as origens do nosso fausto cortesão...

Em Roma, diz um elegante escritor, a corrupção andava a par do poder; e tanto revelava a miséria, como se revelava a grandeza: razão porque um grande gênio pôde dar à cidade eterna, sem injustiça, o título de sentin[el]a do universo.

O palanquim de uma mulher perdida atropelava insolentemente o de uma nobre matrona; o carro de um liberto andava empa[re]lhado com o de um consular; e o triunfador cedia o passo ao tabelião.

Os histriões e farsantes esmagavam com seu luxo os herdeiros dos maiores nomes: um ator da moda enlameava, em sua passagem, os filhos dos heróis que no palco representava; e Fabricio desaparecia na turba, eclipsado pelo Crispim.

Fazei aplicação, vós todos que me ouvides... No estrago geral dos brios de toda a espécie, como negar que o nosso povo, que outrora, por falar a linguagem de Juvenal, dava magistratura, feixes, legiões, todas as grandezas... nunc se continet, atque duas tantum res anxius optat, panem et circenses!?... E também no ponto de vista que mais de perto nos toca, o ponto de vista da Ciência, não estamos hoje todos curvados à sabedoria de um só, sendo que todos concorremos na arena, doutos e indoutos, apenas para maior glória de Augusto... sendo que nos cabe aquela epístola de Horácio, em que se lê - Scribimus indocti doctique poemata passim!?....

E pois digam e repitam, que os moços de hoje estarão amanhã confundidos na turba dos corruptos e corruptores: não será motivo, para que eu não concorra sempre nas ocasiões como esta, para que não livre esperanças na insistência briosa, com que a Mocidade Brasileira se ostenta sempre sobranceira, para que não reserve a máxima parte das minhas reprovações para o corruptor que não para o corrompido...

Costumam a dizer: os culpados somos nós, não temos povo, não temos homens, mal do Brasil se não fosse a monarquia, mesmo assim com seus defeitos... Estranha moda de adular, que escapou aos senadores de Tibério, que não acudiu à pena vingadora de Tácito...

As vestais (refere d. Emilio Castelar) levaram ao senado o testamento de Augusto, que foi lido com as honras devidas, passando os senadores a apurar todo o seu gênio inventivo para a decretação de honras extraordinárias ao defunto. Uma cena cômica teve lugar nesse pugilato de obediência e servilismo: o senador Valério propôs que todos os anos se renovasse o juramento de fidelidade aos Césares; e Tibério, afrontado por tanta vileza, voltou-se para o proponente, e disse-lhe: Provoco-te a que declares ante o senado, se tive parte nessa tua proposta... ao que respondeu Valério: Não, a idéia é minha só, sustento-a perante o senado com toda a convicção, e sustentá-la-ia contra cada senador de per si, pouco se me dando que Tibério a rejeite; pois em me parecendo que medida convém ao Estado, não costumo a olhar para a cara de César... Pareciam esgotados os modos de adulação, e apareceu mais este, que fez pasmar ao próprio Tácito: E a sola especies adulandi supererat!

E dizei-me, senhores, se Tácito ressurgisse no meio dos Valérios brasileiros ..........

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Quatro palavras de agradecimento que vos devemos, minhas senhoras, nós da Emancipadora Onze de Agosto, pela fina cortesia da vossa graciosa presença em nossa festa.

Em tempo algum deixastes de dominar por vossas graças, pelos segredos do sexo, por lei da natureza... Nos duros tempos patriarcais, por uma Raquel trabalhou Jacó quatorze anos, por uma Dalila foram-se os cabelos de Sansão, e por uma bela e risonha Judith o fero e carrancudo Holofernes entregou a cabeça para os muros de Betúlia... Nos tempos do paganismo, quando o marido podia erigir tribunal doméstico e sentenciar a mulher à morte, diz-nos Plauto, nas suas comédias, que não faltavam maridos condescendentes e mulheres caprichosas...

Vem do paraíso terreal: o sorriso de Eva valeu mais para o namorado Adão, do que a ordem expressa de Deus.

Hoje... hoje que dominais como nunca, no trono e no altar, no sagrado e no profano, andam os homens a falar constantemente na emancipação da mulher... eles, coitados! que nunca se hão de emancipar delas...

Por mim, em nome da Emancipadora, não vos falarei, nem na vossa, nem na nossa emancipação: aceito a lei da natureza, e em vós saúdo as senhoras dos homens, as soberanas do mundo.

***

E nada mais, meus senhores, que é tempo de inaugurar esta solenidade, que tanto nos honra a todos.

Que subam até o Céu as vossas orações, senhores acadêmicos, pois será verdadeira oração pelo escravo cada hino deste generoso festim humanitário...

Que o novo Castro Alves, com que a Providência haja de dotar o Brasil, não ache o mesmo tema para as Vozes d'África, e não posas dizer com o malogrado e sempre chorado poeta:

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Foi depois do dilúvio, um viajante

Negro, sombrio, pálido, arquejante,

       Descia do Ararat:

E eu disse ao peregrino fulminado:

Cham, sê meu esposo bem amado,

       Serei tua Elvah!

 

Desde esse dia o vento da desgraça

Por meus cabelos ululando passa

       O anátema cruel!

As tribos erram do arraial nas vagas,

E o nômade faminto corta as plagas

       No rápido corcel!

 

Vi a ciência desertar do Egito,

Vi meu povo seguir, judeu maldito

       O trilho da perdição!

Depois vi minha prole desgraçada

Pelas garras da Europa arrebatada,

       Amestrado falcão!

 

Cristo! embalde morreste sobre um monte,

Teu sangue não lavou de minha fonte

       A mancha original!

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos, alimária do universo,

       Eu, pasto universal!

 

Hoje em meu sangue a América se nutre,

Condor que transformara-se em abutre,

       Ave da escravidão!

Ela juntou-se às mais, irmã traidora,

Qual de José os vis irmãos outrora

       Venderam seu irmão!

 

Basta, Senhor! de teu potente braço

Role através dos astros e do espaço

       Perdão p'ra os crimes meus!

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Escuta o brado meu lá no infinito,

       Meu Deus, Senhor, meu Deus!

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[1] ROBERT - Hist. de la classe ouvrière.

[2] BARTH. ST. HILAIRE, not. à trad. da Politic. de Aristoteles. Vejas-se a ob. cit.

[3] Ob. cit.

[4] Seneca chamava os escravos - humelis amici. O próprio Corão protegeu-os, dizendo: "Quem liberta um homem, se liberta a si das penas desta vida e das penas eternas". No entanto, dez séculos depois Bossuet insistia em dizer com toda a Igreja, na sua Advert. aos Protest.: "Condenar a escravidão é condenar o Espírito Santo, que ordena aos escravos, pela boca de São Paulo, que se resignem ao seu estado". Veja-se VIARDOT - Libre examen.

[5] Até hoje (10 de outubro) não li ainda, que os alunos das escolas da Corte figurassem nas últimas festas de recepção do Imperador. Os estudantes de Pernambuco jamais concorreram a cumprimentar o Imperador, nem mesmo em 1859; no entanto que os pressurosos acabam de assentar no modo de render homenagem ao marquês do Herval, ao simples boato da sua visita.

[6] Deixando à parte o que ultimamente viram e leram todos, farei ligeira escavação, para tirar documentos de que desde muito somos os primeiros dos americanos em tudo, principalmente na adulação. O mal é crônico: será incurável? - É um juiz na Israel liberal, ex-deputado da famosa época ligeira que desce até os almanaques, para escrever a seguinte enfática peroração: É o Imperador, enfim, de quem os herdeiros de seu nome, da sua fama, da sua coroa, e de quem também os nosso vindouros dirão o mesmo que dizia a seu filho Philippe II falando de Fernando d'Aragão - É A ELE QUE NÓS DEVEMOS TUDO QUANTO TEMOS! - É um arqueólogo monarquista, desenterrando um soneto de d. Pedro I, ao ter notícia da morte de sua mulher, e que soneto!

"Deus eterno, porque me arrebataste

A minha muito amada Imperatriz?

Tua divina vontade assim o quis?

Sabe que o meu coração dilaceraste.

Tu decerto contra mim te iraste,

Eu não sei o motivo, nem o que fiz,

E co'aquele direi, que sempre diz,

Tu m'a deste,Senhor, tu m'a tiraste!

Ela me amava com o maior amor,

E eu nela admirava a honestidade;

Sinto o meu coração quebrar de dor.

O mundo não verá mais noutra idade

Modelo mais perfeito, nem melhor,

D'honra e candura, amor e caridade."

O arqueólogo chamou a isto um augusto gemido; e nós que lemos, despregamos uma plebéia gargalhada - Em suma, até o frade Monte Alverne, que morreu velho e cego, está montando guarda à monarquia, e eis aqui como o caso é. Na quinta capela do convento de Santo Antonio do Rio de Janeiro, capela que é da sacra família (o almanaquista não explicou em vão) estão os túmulos de d. Affonso e d. Pedro, risonhas esperanças do Brazil que tão cedo se desfolharão (outra sacra família). Em frente da capela dorme o sono eterno Monte Alverne. Ao ver esta respeitável sepultura ao lado do filho d'Aquele etc. etc., dir-se-ia que Monte Alverne ainda se mostra grato ao Imperador, velando como cuidadoso guarda por cinzas tão queridas! Que bom ofício deram ao velho depois de morto! Ossada guardando ossada... nauseabunda retórica dos aduladores!

[7] EUG. de MONGLAVE - Correspond. de D. Pedro I.

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