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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (J)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas 96 a 109:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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O CAFÉ E A PECUÁRIA - Aspecto característico da fazenda de café, em São Paulo e Minas Gerais, cujos proprietários, sem prejuízo de confiar toda sua fortuna no café, têm entretanto uma boa previsão pelo lado da pecuária
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O futuro de Minas Gerais

Últimas notas do Brasil interior - Regresso ao litoral - O potencial produtor do Brasil - Minas, ponto de vista e expoente - A pecuária em Minas e no resto do país - Modalidades pastoris - Pecuária de granja - Forragens e silos - Raças bovinas importadas - O gado Zebu - Schwitz, Devon, Flamenco - Rumos zootécnicos a impor - Manteiga, leite e carne - Preços e perspectivas - A independência do estômago - Pecuária brasileira - 20 milhões de cabeças - Uma fazenda no Rio de Janeiro - A indústria da carne seca - O salgadeiro em Minas Gerais - Charques, feijões e milho - As bases alimentícias do Brasil - Impostos e aduanas interiores - Evoluções imperiosas - Um final de discurso como final de crônica

Como nestes estudos ao galope é forçoso adotar um critério de síntese, demorando-se no detalhe só o estritamente necessário, tenho prescindido de comentar outras diversas linhas da produção que Minas Gerais exporta e o interior – porque mais claramente são notadas estas demonstrações bosquejando-as com umas poucas linhas dominantes.

Meu objetivo não é fazer um censo do Brasil, nem sequer de um Estado qualquer, e sim atrair a atenção de meus leitores rio-platenses sobre o vasto, variado e rico potencial produtor do país vizinho, ao que nossa observação superficial pode considerar como uma forçada amostra da produção alheia no que respeita a artigos de agricultura e pecuária.

O Brasil é um grande consumidor, e hoje mesmo importa, apesar de suas altas tarifas, claramente protecionistas, um valor não inferior a cento e cinqüenta milhões de nacionais (200.000 contos) de artigos alimentícios, nos quais a farinha argentina contou por 8 e ½ milhões no primeiro semestre deste ano, não havendo alcançado os dois milhões em igual período de 1902.

Mas não sendo nesta linha, que cresce sempre, e em muito poucos artigos mais, o Brasil está resolutamente orientado no caminho de sua independência a este respeito – a independência do estômago nacional – e, como se entrevê pelo que venho anotando, esta sua pretensão, ainda que temporalmente lhe seja dura, está longe de ser uma utopia.

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FATORES DE PROGRESSO PASTORIL - Invencível, touro Devon, nascido na vivenda Loraine (República Oriental do Uruguai). Um descendente deste formoso reprodutor foi importado pelo doutor Manuel T. de Carvalho Britto, com um seleto lote de novilhas da mesma raça, para sua fazenda de Minas Gerais. O doutor Carvalho Britto terá assim a honra de ter iniciado a criação desta grande raça em seu Estado, como o tem o doutor Assis Brasil a de havê-la importado no Sul do Brasil
Imagem e legenda publicadas na página 98-A

O fenômeno é particularmente sugestivo no que tange à produção bovina. Na região por mim percorrida, não se crê, como já disse, que se possa criar gado em medida importante – mas vai resultando que se pode, ainda que em formas diferentes de nossa criação, extensiva e pouco menos que espontânea.

A configuração acidentada do solo e os recursos de forragem que podem ser obtidos, assim como a necessidade de basear a criação na agricultura, assinalam forçosamente uma forma intensiva ao criador brasileiro, daquela e de parecidas regiões serranas, que são a maioria do território, depois das não muito extensas planuras do Sul.

Criar pouco, em muitas partes, tal é a fórmula. Para isto têm, desde logo, pastos apreciáveis, fáceis de propagar, como já o fazem. Carecem de leguminosas, e não está demonstrado que a alfafa prospere, ainda que eu creio que sim, com irrigação; mas têm em troca copiosas variedades de uma gramínea genericamente chamada capim, na que podem tirar grandes recursos, pois há capim adequado para os campos de criação e existe o especial para a engorda – sendo as melhores variedades o capim jaraguá, de aspecto parecido ao ray-gras (N.E.: ray-grass, a planta herbácea inglesa Lolium perenne L. ou italiana Lolium multiflorum Lam.), que, por ser mais nitrogenado que os outros, é reputado o primeiro em qualidade nutritiva para formar carne e energia muscular – o capim mimoso, que parece oferecer de preferência seus talos macios e açucarados à fazenda de criação, e o capim-gordura, que se distingue por uma vilosidade branco-amarelada que o torna oleoso ao tato e que, como seu nome o indica, é especial para produzir gorduras.

Este capim é muito comum e fácil de propagar por semeadora e, da mesma forma que o jaraguá, cresce descontrolado, em talos até de metro e meio, prestando-se em conseqüência para o corte a foice ou com segadora, seja para dar em verde, para amontoar ou para ensilagem.

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FATORES DE PROGRESSO PASTORIL - Tipo perfeito de silo americano - Um fator indispensável para o progresso pecuário de Minas, São Paulo, Goiás e estados vizinhos do altiplano, donde se impõe a forma intensiva da granja. Este silo existe no "Posto Zootécnico" de São Paulo. É do melhor modelo, feito em cimento armado, com capacidade de 12 toneladas, moinho cortador ao pé elevador de ar que enche o silo automaticamente. O progresso zootécnico do Brasil começará a ser contado desde que se propaguem os silos, com os quais sua flora forrageira indígena dará para todas as expansões
Imagem e legenda publicadas na página 98-A. Clique <<aqui>> ou na imagem para ampliá-la

Esta última forma, o silo, tem que ser e será a solução econômica da pecuária serrana, pois permite converter em excelente alimento, para bovinos e suínos, numerosas substâncias que e outra forma resistem à digestão. Como é sabido, a ensilagem determina uma fermentação incipiente que abranda as matérias lenhosas e dá ao conjunto ensilado uma espécie de cocção – de maneira que tubérculos e talos de milho, cana-de-açúcar, resíduos de horta e até folhas de árvores podem produzir forragens de primeira ordem.

Não há entretanto para que pensar em recursos extremos: podendo cultivar milho, feijões, batatas, cana-taquara e de açúcar e outros elementos forrageiros igualmente nobres, que fazem uma silagem superior, o futuro da pecuária não oferece dúvida alguma.

Não será nunca sua forma a de nossos grandes rodeios pampianos, que se servem sua merenda segundo seu capricho gastronômico, do esplêndido menu em que a natureza, sobre o imenso manto da pradaria verde, lhes oferece até vinte variedades de excelentes prados dentro de um metro quadrado; mas será a forma intensiva da granja suíça e piemontesa, em que a qualidade deve tratar de suprir a quantidade, e que tem a vantagem de ser mais industrial e mais povoadora que a criação pastoril extensiva, nas grandes pradarias.

Este é um futuro que se está vendo chegar, e até que já está presente em regiões como a chamada "Zona da Mata", no próprio Estado de Minas, onde todo fazendeiro de café cultiva forragens para o gado e cria desde 100 até 500 cabeças bovinas, além de aves e porcos, alimentando seus prados de capim um bovino por hectare.


RAÇAS BOVINAS PARA O BRASIL - A propaganda que entra pelos olhos - Touro Zebu, bovino da melhor variedade indiana, escolhido pelo Jardim Zoológico de Palermo, em Buenos Aires
Imagem e legenda publicadas na página 100-A

Terão que fixar o critério definitivo em certas raças, abandonando o inadequado zebu indiano, em que estão os criadores mineiros, mesmo alguns progressistas, incrivelmente empenhados, sem convencer-se todavia de que a essa raça faltam afinidades biológicas essenciais com os bovinos propriamente ditos, de onde vem a rápida degeneração de sua descendência; que é inferior para o abate pelo ordinário de sua carne e seu enorme esqueleto, e que, além disso, não é raça leiteira, o que deve ser decisivo, porque na forma de criação em pequena escala, a leiteria é um fim primordial.

As escolas de demonstração, como as está planejando o governo de Minas, vão produzir a este respeito rápidas evidências, imprimindo rumos firmes ao critério em matéria de raças. Já há apreciáveis iniciativas, de fazendeiros ilustrados que importaram reprodutores de boas raças, destacando entre elas a Schwitz, cujos cruzamentos sobre o excelente gado autóctone chamado caracu – análogo ao nosso forte e frugal gado chaquenho – têm um porvir indubitável.

Também importam muito Holandês; mas deverão deixá-lo, porque essa raça carece de condições no sentido da carne, é lenta para crescer e frouxa para o trabalho, é pouco resistente a epizootias e sua abundância leiteira é enganosa pelo baixíssimo teor de gordura que a caracteriza.


RAÇAS BOVINAS PARA O BRASIL - A propaganda que entra pelos olhos - Um touro Devon - Ambos são rústicos, resistentes às epizootias  fortes para o trabalho. Mas o Devon tem maior peso, carne fina, precocidade e muito leite,  melhora com uma seleção racional, ainda que seja em campos pobres, enquanto o Zebu carece daquelas condições e degenera ao terceiro cruzamento por falta de afinidades biológicas com as raças bovinas. A estética diz algo mais...
Imagem e legenda publicadas na página 100-A

O Schwitz, o Devon e o Flamenco – da variedade que cultiva nosso veterano criador d. Narciso Lozano na vivenda Plomer – são as raças indicadas para carne, leite e trabalho – e são ademais as que melhor resistirão sempre aos rigores do clima e às doenças locais, por sua rusticidade e robustez específica.

Destas três raças, a Schwitz, como disse, está já sendo provada em vários pontos; a Devon está ensaiada em Rio Grande, onde foi introduzida e cultivada com todo êxito pelo doutor Assis Brasil – que é um convincente propagandista de progressos agrários com o livro e com o fato, tendo-se convertido sua notável obra Cultura dos Campos em um evangelho inspirador e em um guia familiar para milhares de proprietários rurais do Brasil [1]; e pelo que faz à raça Flamenca, se imporá lá, quando for ensaiada, por sua precocidade, seu grande tamanho, sua força muscular, sua excelente condição para consumo e sua grande produção de leite, com gordura de 4 a 6 por cento, segundo a época do ano e a forragem.


DO CAFEZAL AO TAMBO (N.E. - regionalismo gaúcho: estabelecimento onde são mantidas as vacas para a venda do leite) - Evolução pecuária no Estado do Rio de Janeiro - Vaca Schwitz importada e cria pura nascida no país (Fazenda Santa Cecília, do doutor Rodrigues Peixoto. Estação Volta Redonda)
Imagem e legenda publicadas na página 102-A

As outras raças que criamos na Argentina não são aconselháveis ali, pois se bem o Hereford e o Polled Angus prosperariam provavelmente, não são raças úteis para leiteria – e a leiteria é um programa dominante em um país de 18 a 20 milhões de consumidores, com tarifas protecionistas e produção todavia limitada a menos da metade da cifra que, em manteiga, queijos e leite, pode consumir, segundo se denuncia pelos altos preços desses artigos.

A manteiga vale no Brasil de 4.000 a 5.000 réis o quilo (feita no país), ou seja de 3 nacionais a 3.60, e o leite é vendido no Rio a 400 réis o litro (30 centavos), pagando-se 150 réis (11 centavos) ao produtor, que aqui apenas obtém quatro a cinco centavos, um mês pelo outro. Com estes preços é óbvio que se pode ampliar a produção atual sem temor de que falte a demanda, pois o que faria uma maior oferta seria baixar os preços, que ainda à metade dos atuais resultariam muito remunerativos.


DO CAFEZAL AO TAMBO (N.E. - regionalismo gaúcho: estabelecimento onde são mantidas as vacas para a venda do leite) - Um tambo de gado mestiço na Fazenda Santa Cecília. Há vacas caracus, mestiços holandeses, charoleses e outros. Mas todas tendem a se refundir na mestiçagem Schwitz
Imagem e legenda publicadas na página 102-A

Iguais considerações podem ser feitas no que afeta à produção de carne para o consumo interno. A este respeito, podemos falar com todo desinteresse e franqueza, pois é evidente que o Brasil não será por muito tempo cliente nosso de carne, nem fresca nem salgada, encaminhando-se suas produção a abastecê-lo plenamente - o qual, de passagem seja dito, deve servir de aviso às regiões pecuárias rio-platenses que ainda suprem aquele mercado, para que, sobre a base de realidades iminentes, refaçam sua composição de mercados.

A verdade é que, em dez anos mais, quiçá em menor tempo, o Brasil terá em seus campos quanto gado necessite para seu estômago. Rio Grande, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso alargam rapidamente seus estoques pastoris, dispondo de regiões imensas para criação e engorda – inferiores às nossas, certamente – mas não por isso menos capazes de produzir-lhes o que necessitam e muito mais.


RAÇAS DE LÃ PARA O BRASIL - Carneiro Oxford-Shire-Down, cujo cruzamento com as ovelhas crioulas brasileiras formará um rebanho de sólidas condições, como carne e lã. O Oxford-Shire é forte, ativo, de pelagem pesada e carne superior entre todos os laníferos. Recentemente, o conde de Prates para São Paulo e o doutor Carvalho Britto para Minas, importaram formosos exemplares desta raça, da vivenda argentina de Herrera Vegas
Imagem e legenda publicadas na página 104-A

Agora mesmo, quando se pode dizer que este Estado de Minas tenteia rumos no sentido pastoril, tem já uma quantidade de gado que não está recenseada, mas que pode ser calculada, pela produção que entrega anualmente à matança, em não menos de cinco milhões de cabeças.

De fato: sua exportação do ano anterior para outros estados foi de 337.000 reses; e agregando a essa cifra 2.000 diárias como consumo do Estado – o qual não é exagerado, pois Rio de Janeiro mata 400 reses por dia para 800.000 habitantes, e Minas tem quatro milhões e meio – resulta um milhão de cabeças em cifras redondas, como produção anual que Minas entrega ao Matadouro. Uma parte dessa fazenda procede de Goiás e outra de Mato Grosso – mas sempre fica base presuntiva para estimar a produção mineira morta anualmente, como o quociente de um estoque pastoril de cinco milhões de cabeças, mais ou menos.


RAÇAS DE LÃ PARA O BRASIL - Magnífico exemplar de cabra de Angorá, fácil de propagar no Brasil, nas zonas mais levadas do platô central, análogo à região montanhosa e quente da Ásia Menor, de onde vem sta espécie. Na Argentina há estancieiros que cultivam a cabra de Angorá. O doutor Wernick importou de Hamburgo um plantel de dois machos e cinco fêmeas que lhe custaram 5.000 nacionais na estância, e tem já boas perspectivas deste novo negócio, sacando de cada animal, com o cardamento, 2 quilos de lã, que valem como 8 de ovelha. O cruzamento com cabras crioulas dá filhos brancos, com lã e tipo excelentes
Imagem e legenda publicadas na página 104-A

Quanto têm os outros Estados? Difícil é o cálculo – mas há indícios bastante sugestivos. Um ilustrado estancieiro de Goiás me assegurava que este Estado é ainda mais pecuário que o de Minas; Mato Grosso e Paraná possuem já em suas imensidades pastoris alguns milhões de cabeças; Rio Grande, arrasado há poucos anos pela guerra civil, refez sua riqueza pecuária com tal rapidez, que a última mensagem do atual presidente, doutor Borges de Medeiros, estima a população bovina do Estado em oito milhões de cabeças.

Santa Catarina progride no mesmo sentido, possuindo pradarias de boa fama; Paraná, possuidor de um território imenso, de vastíssimas planícies onduladas e apreciáveis pastagens, começa a ser um centro e será um empório da indústria pastoril; e em geral, todos os Estados, em maior ou menor escala, têm pecuária, acentuando-se o fenômeno no que respeita à Bahia, Espírito Santo, São Paulo e sobretudo o Estado do Rio de Janeiro, que se apressa a povoar de gado as milhares de fazendas que ficaram desertas e abandonadas pelo empobrecimento das terras de café, que é um insaciável devorador de seivas.


RAÇAS BOVINAS PARA O BRASIL - Martín, touro Flamenco puro-sangue, nascido na vivenda Plomer (República Argentina). Primeiro prêmio na Exposição Rural de 1907 e grande copa, oferecida pela ferrovia Pacífico ao melhor touro de raças leiteiras. Pesava aos dois anos 967 quilos. O plantel Flamenco da Plomer é único em ambas as Américas, por seu grande sangue e sua pureza típica
Imagem e legenda publicadas na página 106-A

Precisamente em umas horas roubadas ao itinerário, conheci nesse estado – Rio de Janeiro – um domínio senhorial, Santa Cecília, do doutor Rodrigues Peixoto – formado pela reunião de várias antigas fazendas de café, e vi ali, sobre a base de 500 cabeças bovinas com boas mestiçagens de Schwitz e tendo já em serviço vários formosos reprodutores puros dessa raça, cujos bezerros de primeiro cruzamento obtêm a forma e a pelagem característico do bom sangue que trazem; sendo de notar ademais que nenhum dos vários exemplares Schwitz importados por esta fazenda sofreu enfermidade nem atraso algum grave.

Entretanto, a carência de hábeis construtores de galpões, que saibam tratar a produção fina, é muito notada, igualmente que a de banhos de higiene e de banhadores para sarna e carrapato. Mas tudo isto, como se sabe, pode ser transformado, sendo apenas questão de dinheiro, quando se evidencia sua utilidade.

O exemplo e o gosto pela indústria pastoril se propaga, entretanto – e tudo bem ponderado, inclusive a exportação de couros bovinos, que passa de 35.000 toneladas anuais, apesar do grande consumo para embalagens de capim e para usos rurais – pode-se reputar, em meu conceito, sem temor de exagerar, acima de vinte milhões de cabeças o atual estoque bovino do Brasil.


RAÇAS BOVINAS PARA O BRASIL - Vaca Flamenca, da vivenda Plomer, do plantel importado. No concurso nacional de leiteria celebrado em Buenos Aires em 1903, e ao qual se apresentaram grandes leiteiras Durban, Holstein e outras raças, ganhou o Campeonato uma Flamenca, nascida na vivenda Plomer, que deu 36 litros diários enquanto durou o concurso, batendo o recorde em quantidade de leite e proporção de manteiga. A boa carne, fácil manutenção, mansidão e rusticidade desta raça a colocam entre as melhores para o Brasil
Imagem e legenda publicadas na página 106-A

Seu rebanho ovino é muito reduzido; em troca, é grande sua riqueza suína, e pode ser enorme – a mesma que a de gado caprino, que já concorre à exportação com dois mil e quinhentas toneladas de couros – mas que é capaz de incalculáveis expansões, assim que se inicie prospectivamente a exploração de raças que, como as de Angorá ou do Tibete, por exemplo, ofereçam o quádruplo atrativo de carne, leite, couro e pelo.

Partindo destes fatos, não cabe senão augurar muito rápidos progressos a uma indústria que possui, como se vê, base de singular expressão para fundar um desenvolvimento que todavia não está senão muito superficialmente intentado em um sentido racional – mas que quando for sistematizado, marchará a saltos, sem temor, por muitos anos, de que lhe falte o atrativo dos altos preços.

Atualmente vale a carne no Brasil de 600 a 800 réis o quilo (43 a 58 centavos) e os abatedouros a pagam, tanto no Rio como em Belo Horizonte, de 6.000 a 7.000 réis os 15 quilos de peso vivo. Ou seja, uma rês de 300 quilos em pé vale nos matadouros urbanos de 84 a 100 pesos nacionais. Nas feiras de Minas o preço de novilhos gerais oscila de 60 a 90 pesos, e nos mercados de Curitiba e São Paulo são vendidos em 100.000 réis (72 pesos) os novilhos crioulos – caracu – de Paraná e Santa Catarina.

Há, como se vê, margens largas para progredir e custear mestiçagens, que aumentarão o valor por cabeça ao aumentar o peso específico em quilos. Ademais, não se deve esquecer, como fator essencial, a indústria do charque, que desloca rapidamente seu centro de atividade, transladando-o desde o Uruguai e o Prata ao território do Brasil. O charque vale no mínimo 900 réis o quilo, e seu consumo é no Rio uma vez e meia maior que o de carne fresca – 600 reses em charque contra 400 de matança diária – sendo no interior maior a proporção de charque, razoavelmente.

Esta indústria foi avançando seus focos da fronteira rio-grandense ao centro desse Estado, e já passou seus limites do Norte, começando a se estabelecer no Paraná, e creio que também em Santa Catarina. Esta marcha da indústria vai fazer em breve outras etapas, pois não há nenhuma razão para que Minas e Goiás não tenham seus salgadeiros, com o que sustentariam os preços de seus gados, suprimiriam o risco de superprodução - que já apontava como um perigo em sua última mensagem o presidente de Minas - e poupariam ao consumo do interior a sobretaxa que hoje paga por fretes de charque desde Rio Grande, por direitos de matança (2.000 réis por cabeça) e por impostos de exportação (9 por cento).

Minas, que além de ser produtora, é um ponto de concentração de gados, fica assim claramente indicada para um rápido florescimento da indústria salgadeira. Falou-se de instalar lá frigoríficos, mas me parece isto prematuro, pois à parte dos enormes capitais que esta indústria requer, há o duplo inconveniente de não existirem novilhos com o peso indispensável à economia do trabalho frigorífico, e de não ter a população o hábito de consumir carne congelada.

Em troca, o charque está encarnado secularmente no paladar brasileiro; e se fosse certo que a carne salgada perde suas melhores substâncias nutritivas – coisa que não falta quem conteste cientificamente, atribuindo ao cloreto de sódio influências de alta valia na nutrição humana – é inquestionável também que o charque faz a base da feijoada, o prato nacional, que para todo paladar são é suculento e alimentício como poucos, pois os feijões contêm um coeficiente nutritivo que nenhuma outra substância vegetal excede, em igualdade de peso.

Com os feijões e a farinha de milho – farofa – de grande consumo em diversas formas da alimentação quotidiana, e com a cerveja, que é excelente e mais barata que em Buenos Aires, o povo brasileiro tem uma base de nutrição e bebida bastante sólida e econômica, explicando-se assim o bem-estar das classes trabalhadoras, apesar dos altos preços que têm os artigos que para nossa mesa são de primeira necessidade.

O potencial econômico que estes dados e suas conseqüências indutivas deixam calcular, ainda que especialmente referindo-se a Minas, devem ser generalizados a diversos Estados brasileiros, em distintas proporções, mas sempre em medidas importantes; e o futuro que daí se deduz acresce todavia suas perspectivas, tendo presente que, salvo certas e poucas formas de trabalho agrícola, está aquele vastíssimo país, como se viu, literalmente na infância em quanto afeta a sistemas de cultivos e métodos de criação pastoril, tendo ademais a produção dificultada em seu comércio pela escassez ainda dos meios de transporte interior, e em sua economia por duas sérias contrariedades: o imposto fiscal, que grava o produto em vez de gravar a propriedade imóvel, e a retranca das aduanas interestaduais, que sobrecarregam os produtos e dificultam sua circulação comercial de uns para outros Estados, chegando-se até verdadeiras guerras de tarifas – como ocorre agora entre os estados de Pernambuco e Rio Grande.

Mas estes são males transitórios: o Brasil tem que fazer e fará sua evolução no sentido fundamental de tributar a propriedade agrária, que hoje não concorre para formar a renda fiscal, e libertar os produtos em uma proporção correlativa.

Não será fácil, porque estando comumente a grande propriedade em mãos influentes, como ocorre no Chile, a reforma encontrará obstáculos explicáveis; mas será feita, porque o espírito de progresso está desperto e é muito ativo no Brasil, apoiando-se em forças de opinião disciplinadas e coerentes – coisas que também nos convém observar e ter muito em conta, prometendo-me aprofundar aqui um pouco, em outra oportunidade, se ma derem estes apontamentos.

Quanto às aduanas interiores, estão, desde logo, abolidas pela Constituição e repudiadas por todos os estadistas e homens de governo, sustendo-se apenas por aparentes escrúpulos dos Estados quanto à atribuição federal para legislar esse ponto – mas em realidade, segundo minha impressão, por interesses passageiros e necessidades de renda, que não resistirão à pressão moral, contínua e decidida, de todo elemento culto e influente na política nacional.


O DEVON NO BRASIL - O doutor Assis Brasil examinando na vivenda Loraine (República Oriental do Uruguai) uma das quarenta novilhas Devon que adquiriu ali para sua Granja Modelo de Pedras Altas (Rio Grande do Sul)
Imagem e legenda publicadas na página 108-A

Precisamente tenho sob os olhos um excelente discurso sobre isto, pronunciado há três anos no Congresso Federal pelo então deputado por Minas, doutor Manuel Tomás de Carvalho Brito, hoje ministro em seu Estado e colaborador de singular valimento na obra de reorganização e progresso positivo que realiza o presidente Pinheiro da Silva, e à que me referi na crônica anterior.

(Direi de passagem, porque me foi grato sabê-lo, que este jovem estadista, ao ser nomeado ministro, fez uma coisa que deviam fazer, de aqui lá e de lá aqui, quantos homens públicos, brasileiros ou argentinos, fossem chamados ao governo: fez um giro pelo Prata, visitando campanhas, cidades e instituições, internando-se na Argentina até o Pampa e o Tandil, tomando notas e elementos de juízo, e levando impressões que, nas escolas elementares de Belo Horizonte, por exemplo, têm marcado rastros visíveis, revelando no político mineiro uma formosa energia de propagandista).

O doutor Carvalho Brito, fazendo no Congresso um estudo do orçamento e da renda federal, declarou que, contra o que se poderia crer, a questão da abolição das aduanas interiores "é uma questão aberta" para a deputação de Minas.

As declarações do doutor Brito determinaram uma grande expectativa na Câmara, convertendo em um fato político a sessão desse dia – e me parece sugestivo, para encerrar esta crônica, traduzir os parágrafos finais da oração do deputado mineiro, que hoje, com belo prestígio e eficiência, atua desde o governo no sentido de suas idéias.

De passagem dará esta breve transcrição sugestões interessantes sobre o espírito do dos congressos brasileiros, e também uma idéia da forma elevada com que se debatem em seu seio, pelas novas gerações governantes, as grandes questões da República:

O senhor Carvalho Brito – Conceituo, senhor presidente, que é muito grande o peso da responsabilidade que essa medida envolve (a manutenção dos impostos entre Estados) para que o próprio Congresso Federal a tome sobre seus ombros. Entendo que a geração atual não pode defender os impostos interestaduais, porque eles são dissolventes da unidade da pátria; e a geração que nos suceda...

O senhor Anizio de Abreu – O maior legado que nos deixou a monarquia foi a integridade da pátria, e esta veio com os impostos interestaduais.

O senhor Carvalho Brito – Sim! A monarquia nos legou uma pátria grande e unida; mas com a manutenção dos impostos interestaduais, a república federativa legaria às gerações futuras de nosso país vinte e uma republiquetas inimigas, em conflito entre si, em uma ridícula guerra de tarifas.

O senhor Teixeira de Sá – É o argumento ad terrorem!

O senhor Carvalho Brito – Diz o nobre deputado por Pernambuco que este é o argumento ad terrorem. Não, senhor presidente! Esta é uma questão muito grave. Todos os Estados que se interessam por seu desenvolvimento econômico, que exportam sua produção para o consumo interno e que desejam a expansão comercial do país, vivem clamando pela extinção desses impostos dissolventes!

...........................

Infelizmente, nossa situação é esta a que chegou a honrada comissão de orçamento: está esgotada a capacidade tributária do país!

Por quê? Porque tudo está todavia por se fazer no sentido de nossa emancipação econômica! Não regularizamos nosso comércio internacional, isto é: não temos uma lei aduaneira que responda a um seguro critério econômico; não regularizamos nosso comércio interno, isto é: a produção brasileira não pode circular dentro do próprio país!

Em seu belo informe, o honrado relator da comissão, depois de combater a política protecionista, depois de negar a intervenção dos poderes públicos no sentido do desenvolvimento industrial do país, disse: "o primeiro dever do governo é viver, isto é, pagar seus gastos, satisfazer seus compromissos, manter seu crédito interno e externo, garantir a ordem pelo direito, pela justiça, pela administração e pela força, e tudo isto depende de suas rendas, de suas finanças, de seu orçamento, de seu tesouro".

Não, senhor presidente! Não se pode consolidar as finanças sem assegurar o desenvolvimento das forças econômicas da nação! No momento atual, em dias de dificuldades econômicas, com a nação empobrecida pela baixa dos principais produtos de sua exportação – o primeiro dever do governo é viver?

Não!

O senhor presidente da República, na mensagem que dirigiu este ano ao Congresso, disse: "É propício o momento para um trabalho fecundo, porque reina na zona política uma calma saudável e domina os espíritos uma larga aspiração de tolerância e de justiça".

Pois bem, senhor presidente: aproveitemos essa calma saudável e tratemos dos interesses materiais de nossa nacionalidade... Votemos medidas que façam da cabotagem nacional uma instituição capaz de se transformar em nossa futura marinha mercante! (Apoiados). Votemos um código de mineração que anime e estimule a importação de capitais que venham despertar e fecundar as riquezas minerais adormecidas e abandonadas no seio de nosso território! (Muito bem). Suprimamos os impostos interestaduais, essas muralhas chinesas que ameaçam isolar os Estados, gerando a dissolução da unidade da pátria! (Apoiados). Porque, senhores, tenho a convicção de que com estas medidas, dentro de pouco tempo, o Brasil será realmente grande, unido, próspero, feliz e poderá, glorioso, à face do mundo, agitar sua bandeira de Ordem e Progresso!

O orador terminou assim sua arenga, vivamente aplaudido pela câmara toda, cujo sentimento havia sido tocado a fundo. E eu ilustrei minhas crônicas com as palavras do jovem tribuno mineiro porque elas iluminam com um belo resplendor de eloqüência minhas sensações pessoais e reforçam os juízos que vou formulando sobre o espírito, as idéias, os rumos e os meios de ação do novo Brasil – deste desmesurado e manso "gigante deitado" que decididamente abandona seu sono secular e se incorpora, com a ânsia varonil de recuperar o tempo que perdeu no cumprimento de seus destinos.


O DEVON NO BRASIL - Pound Motor, novilho Devon nascido na vivenda Loraine. Este lindo instantâneo, ao mesmo tempo em que mostra um bom produto Devon, reproduz o eterno símbolo de Sansão e Dalila - a Força conduzida pelo nariz pela Graça...
Imagem e legenda publicadas na página 108-A

[1] Depois de publicadas estas crônicas, continuei estudando o problema que elas insinuam quanto à melhor raça bovina para o Brasil, e acabei por dar preferência decidida a dois: Devon em primeiro lugar e Flamenca em segundo. As razões que abonam pelo Devon estão dadas no prólogo deste livro, e em um estudo meu que acaba de ser publicado em folheto.