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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (3)

Texto publicado no Almanaque da Baixada Santista - 1973, editado por Olao Rodrigues e produzido por Bandeira Júnior, da editora Indicador Turístico de Santos, de Santos/SP:


Grupo de populares defronte ao Empório Sul Riograndense 
(praça Rui Barbosa, esquina da Rua do Comércio), 
destacando-se na primeira fila pequenos jornaleiros. Foto de 1907
Foto publicada com a matéria

Pequeno jornaleiro

Ignácio Rosas de Oliveira (*)

Foi celebrado em prosa e verso, imortalizado na pedra e no bronze, em pequenos troféus conferidos anualmente. No Rio de Janeiro há uma casa - parece que hoje transformada em Fundação - que leva seu nome.

Vendia pelas ruas o pão do Espírito, da mesma forma que outros meninos vendiam pão mesmo ou guloseimas que punham água na boca, preparadas pelas mãos de fada de mães carinhosas e abnegadas, à cata de mais alguns níqueis para as despesas do lar.

Era o pequeno jornaleiro, hoje uma figura do Passado, que fazia parte da paisagem humana das grandes cidades.

***

Aqui em Santos existiram muitos. Via de regra eram garotos escanifrados, alguns mal saídos da primeira infância. Os tipos eram os mais variados: brancos, pretos, louros, claros, mestiços. Brigavam por qualquer coisa, às vezes por nada - com as mãos, pés e ... cabeça. Eram habilíssimos para dar uma rasteira ou cabeçada, estatelando o adversário no solo. Não procediam como os moleques de hoje, que usam lâminas de barbear, canivetes e até facas em suas brigas.

Mas eram unidos - como soem ser os humildes. Mordiscavam juntos o pedaço de pão dormido que os mais afortunados traziam no bolso, misturado com fieira e pião, bolinhas de gude, tampas de garrafas e caroços de abricó, ingredientes utilizados em seus jogos infantis.

No bolso traseiro o estilingue, com o qual abatiam avezitas descuidadas, nos caminhos dos morros ou na galharia dos jamboleiros à margem dos canais. Às vezes tal arma servia para defesa contra algum atrevidaço que com eles se metesse.

***

Moravam em barracos dependurados pelas encostas dos morros - desses que a enxurrada leva quando desabam os aguaceiros. Ou em infectos porões mal ventilados, que ainda existem aí pela Vila Matias, no fim das Ruas General Câmara, João Pessoa, Amador Bueno e São Francisco, lá pelas bandas do Paquetá e em outros pontos da Cidade.

Chovesse ou fizesse bom tempo, não perdiam o ponto. Entre 3 e 4 horas da madrugada, chegavam ao local da impressão. Encostavam-se pelos portais ou ajeitavam-se na área de distribuição e aproveitavam para tirar uma soneca, cobrindo-se com folhas de jornal quando fazia frio - até serem despertados pelo ronco das rotativas.

Quando chovia e o frio chegava, vestiam velhos paletós de adultos, que tornavam grotescas suas figuras simpáticas. E usavam chapéus maiores que a cabeça, que iam até as orelhas.

***

Cedo aprendiam a fumar. Quando não tinha, pediam cigarro a qualquer um: "Moço, me dá aí um queimante?" ou filavam dos companheiros, indo ao extremo, se não havia para repartir, de pedir ao mais afortunado, dono do último cigarro: "Me deixa bia".

Tinham apelidos engraçados: Chimbica, Nariz de Cheiro (nariz comprido), Chuveiro (que espirrava a toda hora em cima dos outros), Me-dá-me-dá (que pedinchava coisas aos companheiros).

Havia um pretinho que sofria de albinismo (enfermidade que destrói a pigmentação da pele, deixando-a branca). A doença atacara-lhe os pés indo até ao meio das pernas. Apelidaram-no de Gato de Botas. Mas, chamá-lo pelo apelido era fogo! Se o que se atrevesse estivesse perto, levava taponas de criar bicho, pois o garoto era tronchudinho e destemido. Se estava longe, a família era xingada até a quinta geração.

Outro que brigava prá valer quando o chamavam pelo apelido era o Janela Fechada. Tinha um olho vazado e não gostava, com toda a razão, de que debicassem sua desdita.

Sabiam pôr apelidos como ninguém. Numa manhã domingueira, na Praça José Bonifácio (que homenageia José Bonifácio, o Moço, mas que uma lei mal cuidada resolveu que o homenageado é o Patriarca), à saída da missa um cavalheiro baixote e neurastênico, que anda por aí vivinho, desentendeu-se e discutiu com um jornaleiro por causa de troco, que cismou estar errado. O garoto olhou-o, altaneiro, e falou com sumo desdém: "Pode ficar com o troco, seu jacaré engomado, que eu não faço caso de tostão". E lá se foi, assobiando.

Observei o homem e a custo contive uma risada, o mesmo fazendo outros que apreciaram a cena. Pelas feições e físico o cavalheiro lembrava mesmo um jacaré. E na ocasião trajava terno branco, rebrilhante de goma! Até hoje, quando ele passa, os que sabem da estória, que logo se espalhou, murmuram em surdina:

"- Lá vai o jacaré engomado!"

***

Jornaleiro sempre soube subir ao bonde em movimento. E descer, também; em bonde aberto, esclareço. É habilidade que causava pasmo aos estrangeiros que nos visitam. E que tinha muito de perigo, porque às vezes o artista encontrava numa casca de fruta e esparramava-se no chão.

Ágil, porém, como jornaleiro, não há, nem houve nunca. Era de arrepiar os cabelos! Subia e descia do bonde na maior velocidade, ainda por cima sobraçando o maço de jornais. Não respeitava nem elétricos das linhas "X", "Y" e "R" - considerados os fitas-azuis do tráfego de bondes, pois transitavam em alta velocidade. Era espetáculo digno de ver e que os turistas (eta palavra que provoca polêmica e põe arrepios na pele do santista, por motivos vários!) fotografaram e filmaram em várias ocasiões.

O garoto firmava os pés no solo, inclinava um pouco o corpo para o lado do veículo e quando este passava zás! Segurava o balaústre ou a entre-via, e lá se ia, apregoando: Tribuna! Gazeta! Diário!

Para saltar, largava o balaústre ou a entre-via, fazia um ponto-morto no ar e descia, segurando o chão com os pés, agachado, completamente imóvel!

Mas artista também é vítima de acidentes, inclusive artista de circo. Vários pequenos jornaleiros perderam a vida sob as rodas de caminhões e dos próprios bondes. Outros ficaram estropiados para o resto da vida - o que é pior.

O pequeno jornaleiro foi personagem que atestou a penetração de A Tribuna nos hábitos do santista. Às vezes um cidadão chamava um jornaleiro: "Tribuneiro, me dá aí um Diário..."

***

Em sua maior parte, essas crianças, que cedo começaram a trabalhar, seguiram pela vida exercendo profissões humildes, às vezes perigosas. Deles saíram carregadores, serventes, faxineiros, garagistas e porteiros. Outros foram trabalhar na estiva e em outras pesadas tarefas portuárias. Mas alguns foram mais longe - lutaram, estudaram e venceram, conquistando merecidamente um lugar ao sol. Ocuparam ou ocupam ainda funções de destaque no complexo comercial da terra santista.

Tenho o prazer e a honra de contar com a amizade de um antigo jornaleiro, criatura boníssima, que dedica a vida à prática do Bem - aposentado do alto cargo de superintendente de importante firma estrangeira do comércio cafeeiro. Sua infância, conta ele, decorreu no bairro do Saboó.

Deixo aqui suas iniciais: R. P. - quem puder que adivinhe!

***

Santos cresceu, transformando-se em importante centro comercial. Seu progresso acabou com várias coisas que a tornavam típica - entre as quais o pequeno vendedor de jornal.

Hoje, vender jornais e revistas é atividade comercial como outra qualquer. E rendosa, acrescente-se. É exercida em bancas funcionais, de metal, algumas mal localizadas, atrapalhando o trânsito.

O jornaleiro, que enfeitava e sonorizava a paisagem citadina com seu pregão, é coisa do Passado...


Cartão postal que circulava em 1913, quando surgiam os primeiros jornaleiros (ou tribuneiros, por apregoarem as manchetes do jornal A Tribuna), mostra o antigo Largo do Rosário, atual Praça Rui Barbosa, visto desde a Rua General Câmara, tendo à direita a então Rua de Santo António, futura Rua do Comércio, então fechada por tapume, para obras de alargamento. 
Um dos meninos em primeiro plano nessa imagem exibe um exemplar de A Tribuna
O outro está com exemplar da revista O Malho
Foto: Acervo José Carlos Silvares/Santos Ontem

(*) Ignácio Rosas de Oliveira, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos.

Nota do editor do Almanaque da Baixada Santista, publicada com a matéria: "Este trabalho é de autoria de Ignácio Rosas de Oliveira, nosso distinto colaborador desde o número inicial, deploravelmente desaparecido em 1972. Publicando-o, tributamos carinhosa homenagem á memória do nosso talentoso colaborador e colega".