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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SHEC
A Humanitária e suas histórias (9)

Quando o espírito humanitário apenas começava a surgir...
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Uma das principais bibliotecas santistas; salões onde ocorreram bailes famosos; campanhas assistenciais importantes; a presença de personagens ilustres da história santista e nacional: são alguns dos componentes da história da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio (SHEC), fundada em 1879.

Em uma revista especial comemorativa do 80º aniversário da SHEC, editada em 1959 em Santos, foi incluída esta matéria, assinada por Alberto Souza, um historiador, crítico, bioógrafo, jornalista e poeta, nascido em Santos em 1870 e falecido na capital paulista em 1927. A matéria é datada de 1902, quatro décadas antes da criação do salário mínimo e da instituição de direitos trabalhistas oficiais como a jornada de oito horas diárias de trabalho, férias etc.:


Edifício da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, na Rua Amador Bueno, 206
Foto publicada na edição especial da Revista da Semana/Jornal do Brasil de janeiro de 1902, pág. 5

O progresso do egoísmo

Alberto Souza

Quem quer que observe, num longo olhar perquiridor e seguro, o prodigioso desenvolvimento a que tem atingido o espírito associativo em todas as regiões do mundo sedizente civilizado a partir, sobretudo, da segunda metade do século dezenove, chegará, inevitavelmente, à lógica, mas ilusória, conclusão de que o sentimento de humanitarismo o mais alto, o mais desinteressado e o mais nobre, alastra, vigoroso e pujante, por todos os corações do planeta.

Entretanto, nada é mais falso, mais enganador, nem mais pernicioso do que esse aparente espírito de solidariedade altruísta, simbolizado nos agrupamentos associativos de certas e determinadas classes de certas e determinadas nacionalidades. Nada é mais contrário, do que esse fenômeno aberrativo, ao desenvolvimento real dos verdadeiros germens de bondade que nativamente florescem na alma dos homens e no sentimento dos povos; nada é mais nocivo ao rumo previamente assinalado à humanidade em sua marcha evolutiva normal pela superfície da terra.

O espírito de associação, mais acanhado ainda e ainda mais estreito do que o espírito de pátria, é, como este, uma demonstração enérgica do egoísmo fundamental de nossa natureza. É por isso que ele prospera e estende de preferência suas profundas raízes no seio dos povos intitulados práticos, onde as manifestações impulsivas do egoísmo, quer individual como coletivas, são tão arrebatadas e tão intensas.

A Inglaterra e a América do Norte, por exemplo, sintetizaram todas as fórmulas parciais do progresso humano numa dupla fórmula geral - força e dinheiro -, e vão assim, dia a dia, reduzindo mesquinhamente o supremo ideal de felicidade terrestre aos puros deleites grosseiros da vida material, garantidos soberanamente pelo prestígio universal da riqueza.

Esses dois grandes países, árbitros e aliados espontâneos nas questões internacionais que agitam o mundo, são os focos poderosos do movimento associativo moderno. Lá, não se associam apenas os pequenos, os fracos, os pobres, a grande massa do proletariado que busca, na coesão de seus elementos dispersos, os meios de resistir eficazmente à desapiedosa exploração plutocrática; também os possuidores das minas colossais, os monopolizadores, em suma, congregam-se, reúnem-se, aliam-se, organizam maravilhosamente sindicatos fabulosos para vencer as forças rivais na luta industrial da produção e do consumo.

E, assim, a humanidade, que, com o desaparecimento gradual da possibilidade das guerras e com o esmorecimento visível do instinto de belicosidade, tende a ligar-se cada vez mais fraternalmente, é, ainda hoje, um alvoroçado campo de batalha onde encarniçadamente disputam a triste palma dum triunfo inglório, classes, raças e povos, que um egoísmo desnaturado hostiliza e separa brutalmente.

No próprio ponto de vista particular que neste momento nos interessa, isto é, no ponto de vista relativo especialmente às associações de beneficência - é forçoso confessarmos uma verdade que a muita gente se afigurará em absoluto inverossímil: é que ao egoísmo cabe ainda o principal papel na criação e na prosperidade dessas instituições.

Uma classe qualquer que se associa para proteger exclusivamente os respectivos membros contra os acasos da sorte e os infortúnios da vida, menospreza substancialmente todas as outras classes e todos os outros indivíduos, seus companheiros de sofrimento e de trabalho no conjunto social do mundo. Não é isto uma expressão patente de egoísmo?

E, contudo, no organismo social, como no organismo individual, todos os órgãos são estreitamente solidários entre si. Sem o trabalho quotidiano do estômago, digerindo o bolo alimentar, que, transformado em sangue opulento, vai irrigar o coração e o cérebro, o homem seria incapaz das emoções do amor e das cogitações do pensamento. O apólogo de Menenius aplica-se tão judiciosamente ao indivíduo como à sociedade. Que guarda-livros, por exemplo, poderia exercer dignamente suas afanosas atribuições, se o trapeiro andrajoso não catasse nas sarjetas das ruas os farrapos nauseabundos posteriormente convertidos no esplêndido papel dos grandes livros comerciais?

Se, pois, todos somos fatalmente solidários na obra coletiva da humanidade na terra; se todas as demonstrações provam que nós somos os elos duma só cadeia, uns maiores e outros menores, mas intimamente engranzados entre si; porque havemos de organizar-nos associativamente em classes distintas, que proclamam o seu direito inconteste a umas tantas regalias na vida, sem, contudo, reconhecerem e ampararem os direitos igualmente respeitáveis das outras classes sociais, muitas delas em condições bastante precárias para que possam agir vantajosamente em benefício de seus membros feridos pela adversidade?

Além disso, entender que a organização desses institutos é um dever normal e positivo que incumbe indeclinavelmente aos membros das classes que se associam - é deslocar imprudentemente uma das soluções exigidas com a maior urgência pelo problema social moderno.

Aos industriais, aos agricultores, aos empresários, ao Estado, a todos os chefes do trabalho humano é que compete assistir, nas enfermidades e na morte, aos auxiliares que sob a sua direção e para o seu proveito labutam. Se os patrões, individuais ou coletivos, reconhecessem que entra perfeitamente em o número de suas obrigações morais irrevogáveis o dever de amparar o empregado caído em doença ou invalidado em serviço, estendendo esse amparo, no caso de morte, à família sobrevivente, que, pelos seus conselhos e pelos seus carinhos, concorreu para que o respectivo chefe desempenhasse corretamente as suas funções - não seria mister que os caixeiros, à custa de seus próprios penosos esforços e por conta de seus ordenados, fundassem sociedades destinadas a socorrê-los mutuamente nos dias aziagos de enfermidade e de luto.

E essa obrigação dos patrões deriva-se naturalmente da dedicação com que seus empregados trabalham para aumentar seu capital e seus bens. Os salários não pagam, em regra geral, nenhuma espécie de trabalho, porque o trabalho do homem, por mais humilde que seja, tem um destino social tão importante e sagrado, que não admite equivalência em dinheiro, não é objeto de transação ou permuta.

O patrão entrega a cada empregado uma certa quantia mensal ou anual, não como pagamento de serviços que nenhum critério humano pode arbitrar, mas porque o referido empregado, para trabalhar bem e bastante, precisa primeiramente viver e ninguém vive sem alimento reparador e sadio, casa higiênica e comodidades dum lar confortavelmente instalado. As obrigações dos patrões hão de, pois, ficar adstritas à entrega dessas quantias, que têm por fim especial manter a vida do empregado, sem a qual não haveria riqueza produtiva?

Certamente que não. Em troca desses ordenados e dessas gratificações, o empregado sacrificou hora por hora, no correr acelerado dos anos, o vigor da sua mocidade, e gastou, gota a gota, a melhor porção de seu sangue, em benefício dos haveres, das comodidades e do futuro do seu patrão e de todos que dele dependem. O seu busto, curvado sobre a escrivaninha, deformou-se; a sua vista vacila no cristalino dos olhos embaçados; a chuva, o frio, as intempéries arruínam-lhe a pouco e pouco o organismo; a memória, de tão gasta, falha freqüentemente; os dedos não mais seguram a pena com a firmeza d'outrora, e as digestões laboriosas do estômago enfraquecido impedem-no de trabalhar com o mesmo afinco e a mesma notável assiduidade dos tempos anteriores.

Daí a pouco vai para a cama. Neste momento, pode um patrão generoso abandonar como uma besta inútil o homem operoso e dedicado que auxiliou a formação de sua opulência, ou deve, pelo contrário, retribuir-lhe desvelo por desvelo e dedicação por dedicação? E se a morte sobrevém?... É lícito que a viúva e os filhos sejam ingratamente olvidados pelo patrão, cuja família, venturosa e satisfeita, amolece voluptuosamente na superfluidade cariciosa do luxo, graças à cooperação devotada e honesta do falecido auxiliar?...

As aposentadorias criadas pelos governos e as pensões concedidas pelos banqueiros, importam no reconhecimento decisivo desse imperioso dever, tendente a generalizar-se. E quem quer que acompanhe de perto o desdobramento da civilização atual, através dos recuos indolentes e das curvas caprichosas de sua evolução, pode, com segurança, prever, que, dentro em breve, não serão apenas os herdeiros dos funcionários militares os únicos a receber salários vitalícios, porque o futuro há de reconhecer afinal que tão nobre e devotadamente serve ao bem comum o soldado que expõe a vida no campo da guerra como o intrépido maquinista que a expõe nos acidentes da via férrea dirigindo a locomotiva pelo interior das montanhas perfuradas ou sobre o espinhaço gigantesco das cordilheiras abruptas.

Supor-se-á, talvez, que neste longo artigo lavro, incoerentemente, um arresto condenatório das associações de beneficência, quando é verdade que, há três anos, presido os destinos duma dessas associações, em São Paulo. A suposição será errônea. Minhas opiniões sobre este relevante assunto precisam ser julgadas à luz franca do critério relativista.

Normalmente, creio e vaticino que as fronteiras políticas que dividem os povos apagar-se-ão para sempre; mas, no período crítico de transição e de luta que a humanidade atualmente atravessa, entendo que é necessário cultivar com esmero o sentimento de pátria, a fim de que as nações territorialmente pequenas ou militarmente fracas possam dignamente opor-se aos protetorados aviltantes e às anexações opressoras.

Assim também, quando as condições sociais do mundo sejam outras, mais livres, mais justas e mais moralizadas, as associações de beneficência desaparecerão de sua face, porque as relações entre governantes e governados estarão definitivamente estabelecidas e normalizadas.

Enquanto, porém, esses tempos utópicos não chegam, enquanto a palavra desinteressada dos doutrinadores convictos não ecoa nos ouvidos cerrados e não vibra no insensível coração dos dominadores do dia, é forçoso que os fracos se reúnam e congreguem seus esforços, amparando-se reciprocamente nos desfalecimentos da jornada. Mas, fundando, mantendo embora, e à sua custa, as agremiações de socorro e de assistência privada, devem todos proclamar altamente que reconhecem nos patrões a imprescindível e elementar obrigação de proteger seus auxiliares durante a vida e depois da morte. Fundando e mantendo estas agremiações, tão indispensáveis hoje como inúteis no futuro, devemos, à semelhança do Grêmio do Comércio de São Paulo, eliminar o espírito de exclusivismo predominante na maioria delas e aceitar para sócios indivíduos de ambos os sexos e de todas as classes, raças e nacionalidades.

Com o maior entusiasmo e o mais sincero impulso de solidariedade, de simpatia e de admiração, felicito a Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, esse grande centro de mutualidade e de instrução. mas estou certo de que com maior entusiasmo ainda os nossos descendentes saudarão o fechamento da última sociedade deste gênero, no solene dia em que palpitar vitoriosamente aos ventos de toda a Terra a bandeira cosmopolita da república social!

São Paulo, 1902.


Diretoria da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, em 1902
Foto publicada na edição especial da Revista da Semana/Jornal do Brasil de janeiro de 1902, pág. 5

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