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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f31)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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A ARTE NA RESSOCIALIZAÇÃO,

UM ATO DE AMOR – O PROJETO "TAM-TAM"

 

"Tam-Tam é o som mais alto e vibrante que já ultrapassou fronteiras e vem levando a vários pontos do mundo os frutos da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, decretada pela prefeita Telma de Souza no último dia 3 de maio. Colocando um ponto final na chamada ‘Casa dos Horrores’, como era conhecido o hospital psiquiátrico, abriu-se caminho para a criatividade dos pacientes, que identificam seu trabalho, nas mais variadas frentes, como algo que ecoa, agita, tem ritmo frenético e incomoda. O próprio som Tam-Tam dos instrumentos de percussão" (encarte D.O. Urgente, 2/11/1990)

 

Um processo-base da atitude humanitária do Anchieta, concretizando antigas teses mundiais e nacionais da Psiquiatria, foi desenvolvido a partir da ação de artistas. Foi com base no exercício prático - e no conhecimento das teorias de Michel Foucault - que se construiu a atuação do arte-educador Renato di Renzo nessa história. Diretor do Grupo Orgone e da Associação Tam-Tam que o engloba, tem 16 anos de atividade e mais de 50 premiações.

 

Coordenador do Centro de Convivência do Anchieta, da vida como uma obra de arte, do pensamento ligado à vida, o pensamento-artista construindo uma rede democrática de relações humanas libertárias e afirmativas, junto com Cláudia Alonso ele constrói no imaginário. Valorizando a palavra, exercitando-a, se construía a liberdade e a autonomia, levando a linguagem aos limites de suas possibilidades inventivas, da palavra uma arma ao mesmo tempo destrutiva e terna, como se referiu Foucault.

 

Como disse Suzana Robortela na sua dissertação de mestrado na Unicamp em 2000, Relatos de usuários de Saúde Mental em liberdade – o direito de existir, no século XVII a pobreza era vista como um castigo divino, um pecado contra o Estado, o trabalho passa a ser moralmente obrigatório e as casas de internamento são casas e trabalho forçado. O trabalho como terapia de reabilitação foi produto desta incorporação no final do século XX, como diz Benedetto Saraceno. Para Tykanori Kinoshita, "reabilitar é criar as condições para que o paciente possa, de alguma maneira, participar do processo de trocas sociais".

 

Como Anchieta, o primeiro mestre do Brasil

 

A tese era conhecida dos profissionais: faltava  colocá-la em prática. E foi esse artista do ramo, Renato di Renzo, que criaria o projeto-base dessa atuação transformadora, o Projeto Tam-Tam, de grande sucesso nacional e internacional. Formado em arte, diretor de teatro e do Grupo Orgone Companhia de Dança da Cidade, criou salas de teatro e dança, programas de rádio e TV, pintura em quadros e painéis – música, muita música, regenerando seres no resgate de signos e contatos pessoais.

 

Renato di Renzo teve uma formação que se pode denominar "de raiz" no envolvimento com pacientes psiquiátricos desde que foi para São Paulo, nos idos de 1969, fazer teatro. Seria coincidência o fato deste método se aproximar em muitos pontos dos métodos educativos do primeiro educador brasileiro e, curiosamente, que emprestou o nome para o antigo manicômio santista: Anchieta.

 

Di Renzo, na época com 17 anos, trabalhou com o diretor teatral José Celso Martinez Correia, entre outras expressões do teatro brasileiro de então. Por volta de 1970, participou de círculos que iam fotografar e conviver com os moradores dos asilos de alienados do Estado, como o Juquery, registrando a precariedade da sua condição de vida e a arte produzida, ilustrando a importância do trabalho de Bispo do Rosário e contando sobre a "exposição mundial da loucura", a chamada "Arte Bruta", "sem lapidação", explica, na Suécia.

 

O teatro desempenhou, no Anchieta, um papel fundamental na rápida recuperação de muitos doentes, não só pelo trabalho corporal mas principalmente por permitir o fluir da imaginação criativa no ato de representar e até mesmo de redigir textos. Muitos talentos foram descobertos neste processo, o que veio facilitar a montagem de um grupo teatral dentro do próprio hospital.

 

Desenvolvendo um trabalho de pesquisa nas áreas de dança e expressão corporal, sua criadora, a bailarina e coreógrafa Claudia Alonso estabeleceu uma parceria com Renato que, a partir de 1964, começou a desenvolver um trabalho mais elaborado em torno da pesquisa teatro-dança, movimento vanguardista que ganhou espaço nos palcos nacionais.

 

Sua montagem Na sala de espera do Dr. Sigmund, de autoria de Renato, foi elaborada a partir de uma série de visitas ao Anchieta, ao Centro de Convivência Tam-Tam, aos NAPS, às filas do INAMPS, além de consultórios médicos, arrebatando prêmios importantes em inúmeros festivais no Estado e no País. Após dois anos de temporada, o Orgone recebeu convite para se apresentar no Rio de janeiro através do Instituto Franco Basaglia, dentro de um hospício, o Pinel, para técnicos e usuários, tendo contado com o apoio do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos.

 

Experimentado no trabalho e no contato direto com a massa dos manicômios, tendo acompanhado saídas em grupo para pacientes – antecipando o papel do que seriam os acompanhantes terapêuticos, relata em detalhes a realidade que encontrou no hospital-prisão santista e do livro que obteve nessa estadia revolucionária da intervenção que participou, A psiquiatria nossa de cada dia. É do psiquiatra e um dos antigos donos do Anchieta Edmundo Maia, dono de uma clínica psiquiátrica em São Paulo, a chamada clínica dos artistas, em que esteve nos últimos dias de sua vida, por exemplo, o cantor Raul Seixas e o escritor Paulo Coelho – hoje integrante da Academia Brasileira de Letras e um dos mais vendidos autores literários do Brasil e do exterior.

 

Conta Di Renzo que o Anchieta foi inaugurado para ser um hospital-padrão, referência no tratamento psiquiátrico, localizado na área central da cidade. "Não era um asilo ou manicômio como os que ocupavam a periferia das cidades ou lugares remotos, mas um asilo de luxo", diz, "em uma época em que se receitavam eletrochoques como comprimidos".  Renato tem parentes que só não tomaram os dez eletrochoques receitados pelo médico porque o pai não deixou, nestes tempos de violência institucionalizada.

 

O mistério das caixas cerebrais iluminadas

 

Sala para concertos de piano, que aconteciam aos sábados, salas de projeção de filmes, lanchonetes para visitantes, alas "vip" com piso diferenciado, tudo isso existia no Anchieta, antes de se tornar o depósito de gente em que se encontrava nos tempos da intervenção. "Era uma violência diferente", observa. Relata sobre um equipamento que encontrou – uma caixa de madeira de cerca de 40 x 20 centímetros, com luzes de aquecimento e armações ferrosas e abertura para adaptação na cabeça.

 

"Nem o Tykanori (Roberto Tykanori, um dos líderes da intervenção) sabia para o que serviam as ditas caixas. Existiam quinze daquelas no Anchieta" -  considerando que era mais um daqueles instrumentos pseudo-científicos dos positivistas da Psiquiatria para "iluminar cérebros". Conhecendo as invenções de Benjamim Rush, antecessores e sucessores, nada surpreenderia a aplicação destes métodos. A hipótese não estava afastada: coisas muito piores foram feitas ali. Mas a revelação veio por uma usuária, passada nos anos e que, vislumbrando o equipamento, surpreendeu-se em ver "aquele troço de tratar enxaqueca", que já tinha utilizado. Foi o que contou Renato, em um dia de junho de 2004.

 

Observador privilegiado dessa herança da Psiquiatria institucional que apodrecia, Renato, que se orgulha dessa trajetória de reversão que participou, diz que pudemos saber "com quantos loucos se faz uma cidade", na construção do "Projeto Tam-Tam". Ele lembra que foram encontrados projetores de 16 milímetros semi-novos, o que era diferente dos tempos em que existiam sessões de cinema no hospital. Para ele, nos últimos tempos deveria existir algum programa de  tratamento baseado em projeção de imagens. Para nós, algo parecido com o do livro de Burgess, o filme de Kubrick (de que falamos neste livro) A laranja mecânica -  que implicava em obrigar o infrator criminal violento a assistir cenas de violência até a exaustão, impedido até de fechar os olhos, como método de cura da compulsão violenta. Não está afastada esta hipótese.

 

Para o artista e humanizador do tratamento psiquiátrico, um dos personagens centrais da intervenção e eliminação do Anchieta, "quem pensa que isso que aconteceu em Santos é coisa do passado, não sabe do que ainda ocorre em renomados hospitais paulistanos, que em suas alas psiquiátricas – infantis, inclusive – dopam seus pacientes com poderosos fármacos e aplicam eletrochoques, com métodos modernos através de agulhas e não mais placas de cobre, como no Anchieta", conta. "Eles ainda estão ai e todo cuidado é pouco", completa.

 

Com Di Renzo, o Anchieta que por quase meio século fora um trágico cenário transformava-se em um circo. Para ele, a circunstância que trazia as pessoas de volta era o convívio mútuo, em personagens diferentes que encenavam, dividindo paixões, se comunicando.

 

O projeto gerou teses de pós-graduação, mestrado e doutorado e se expandiu até internacionalmente, como a rádio Pancada, no Rio Grande do Norte, e Colifata, na Argentina. Renato conta que quase no mundo todo há programas de rádio com pacientes vítimas de transtornos mentais, tudo inspirado no projeto Tam-Tam, que aqui, no início, foi visto com desdém. Explica que foi tudo fruto da experiência sem pré-condicionamentos, sem fórmulas feitas: "fiz e deu certo", diz. Por conta desse trabalho, ele foi montar serviços semelhantes em cidades do Nordeste, tendo encontrado, como aqui, resistências mas, também, muito interesse.

 

"Lamento quanto o homem  perdeu investindo no nada. Corremos desenfreadamente para conquistar coisas sem saber o objetivo e o rumo disso.Mas estamos sós. Esta busca não resultou em integração, não fez com que as pessoas se juntassem, nas praças, nas ruas, provocando uma loucura doente e não saudável, de encontros e realizações" (Renato di Renzo)

 

A mistura de sãos e doentes, lado a lado, frente a frente, dando voz para os pacientes durante tanto tempo calados e cerceados, reprimidos, resultava em integração, explica Di Renzo. Para ele, a loucura tem, entre suas causas, o rompimento das relações humanas. "A loucura", diz, "é gerada pela solidão". Ele continua trabalhando na área, com portadores da Síndrome de Down, no Projeto Encontros e com o "Orgone Grupo de Arte", também na "Associação Tam-Tam" que mantém e que fez tanto sucesso com os pacientes do Anchieta – nas políticas públicas que marcaram época. Muitas festas, pinturas, cantos e danças se fizeram ali no Anchieta, a partir desse momento.

 

Livraria-sebo, oficina de música, cozinha experimental, camisetas (a griffe Tam-Tam), jornal em off-set (distribuído em 22 bancas), mural, painéis e até um bar dentro da secretaria de Cultura Patrícia Galvão, aos cuidados de um paciente que fora barman em São Paulo. Uma rádio nasceu, dentro do projeto de Di Renzo, a "Rádio Tam-Tam", que fez sucesso com auto-falantes no prédio e que ganhou as ruas, sendo transmitida até por uma rádio comercial (Cacique) com músicas, entrevistas e conversas – e depois por outras rádios. Teatro, peças eram encenadas. Se fizeram jornais mimeografados e depois impressos, vídeos. O Anchieta foi notícia em todas as rádios e televisões do país com estas atividades. Os pacientes – clientes, como chamava Nise da Silveira, começaram a fazer excursões, passeios. A maioria não via a rua há dez, quinze anos, tinham sido isolados.

 

Um dos principais pacientes-clientes, de nome fictício Eládio, era a maior prova do crime que era prender e impor remédios e torturas aquelas pessoas. Humorista nato, locutor de voz e leitura perfeitas e teatrais, boa impostação de voz e rara inteligência, não só interpretava como fazia performances e espetáculos de dança, com especial atenção para figurinos que confeccionava. Era o líder da Rádio Tam-Tam, hilariante e imaginativo humorista, astuto e inteligente improvisador, hoje tem um pequeno bar no lugar onde mora. E segue fazendo arte na rua, sempre que tem oportunidade. O mundo sem seres assim seria pior.

 

Nas políticas de reaproximação desenvolvidas no Anchieta, as pessoas de fora e os internos perderam o medo uns dos outros e se perguntavam por que estes pacientes ficaram tanto tempo segregados. As famílias foram integradas nessa convivência, também médicos e técnicos, promovidas festas abertas à comunidade, em espaços enfeitados pelos próprios pacientes-clientes. Seres oprimidos se tornaram criativos.

 

O que era um hospício se tornou uma casa, com hábitos sociais reensinados aquela gente semi-destruída por remédios, surras, choques elétricos, fome, condições sub-humanas. Era outro o tempo. O Projeto Tam-Tam preparou e colocou cerca de 100 pacientes na estratégia de ganhar dinheiro, garantindo a própria subsistência, pintando camisetas, gravatas de seda e papéis de carta, bolsas e chaveiros. Todos estes equipamentos recebem a etiqueta da griffe Tam-Tam, disputadas no mercado.

 

Cada camiseta era vendida a R$ 30,00. Metade serve para a compra de matéria-prima, o resto é dividido entre os produtores da mercadoria. Planos de abertura de uma loja eram os sonhos de Livingston Silva de Lara, de 21 anos, um dos pacientes integrados ao projeto que já mora com a família de sete pessoas - e é ele quem faz a comida e cuida da limpeza.

 

Quando não estão nas oficinas, os pacientes reúnem-se com as psicóloga do projeto e fazem brincadeiras como o "Jogo da Memória", como conta a psicóloga Alexandra Marques, da equipe do Tam-Tam, que narra a segurança conquistada na atividade. Exemplo também é o da ex-bancária Maria Regina Gonçalves, de 33 anos, participante do projeto há quase 5, internada no manicômio 5 vezes e que depende de medicamentos para manter o equilíbrio químico do cérebro sob pena de dores de cabeça e transtornos, que ali "entrou nos eixos" e reconquistou a normalidade.

A Rádio Tam-Tam, "um programa do tamanho da sua loucura"

A loucura é uma só, os homens só se diferem um dos outros pelo grau que apresentam, é o princípio. Na Rádio Tam-Tam, portanto, o ouvinte poderá escolher a dimensão de sua loucura. A tese é projetada com espírito de humor pelos criadores do programa, mas seu grau de seriedade e vínculo com a realidade é incontestável. "De perto, ninguém é normal", dizia um slogan utilizado desde os primeiros tempos da intervenção. Os intelectuais e humoristas estão aí para provar isso, sem contar os comportamentos das pessoas normais no dia-a-dia. Ou você não lembra daquele quadro da TV que o personagem dizia "Eu sou normal!!"?

 

Inaugurada internamente em 30 de maio, 27 dias após a intervenção, sem contar o período em que foi suspensa, foi a partir do momento em que se adquiriu um aparelho de som e um microfone que iniciou-se a programação de rádio dentro do hospital, onde um paciente relatava, diariamente, um jornal com as notícias dos bastidores da instituição revolucionada, que logo se expandiria para além dos muros.

 

"O sentido era", diz seu criador, "reproduzir no nome o som do primeiro sistema de comunicação da humanidade, por tambores, mas também associado à terminologia da loucura". No Projeto Tam-Tam inúmeras atividades no campo artístico foram desenvolvidas, como teatro, pintura, marcenaria, vídeo, joalheria, postais, camisetas, brincos e outros, visando atingir o prazer da criação.

 

Mas foi a rádio Tam-Tam que alcançou maior sucesso. Repercutindo nacional e internacionalmente, sem abandonar sua programação interna lendo as matérias do D.O. Urgente e de A Tribuna, esportes, horóscopo, muita música, variedades (achados e perdidos, oferecimentos e recados), furos de reportagem com entrevistas com vizinhos e visitantes do hospital, uma conquista graças a doação de um gravador portátil. Notícias, músicas, entrevistas saíam de uma sala improvisada, construída com madeirite e tela de ovos pelos próprios pacientes, e espalhadas pelos corredores do hospital através de 32 pequenas caixas de som.

 

Tam-Tam quer saber quais são os remédios de Lula

 

Na entrevista com Lula, após a derrota nas eleições presidenciais, o repórter da rádio Tam-Tam pergunta ao então presidente de honra do PT "qual o calmante que ele estava tomando atualmente" – ao que Lula responde de pronto, dando a marca do remédio.

A Rádio que era dentro do hospício estréia para os de fora. "Quem não tem loucura não é equilibrado"

Foi em 5 de novembro de 1990 que a Rádio Tam-Tam estreou para o mundo de fora, para agitar a cidade, transmitido pelos 1.440 quilohertz da rádio Universal AM. Depois, iria para a rádio Cacique e posteriormente, ampliando seu potencial de transmissão de 1 para 10 mil quilohertz, seria transmitida pela Rádio Clube de Santos, atingindo outros estados e até países, em que ficou quase um ano. Depois esteve na rádio Jovem Pan e durou 8 anos.

 

Segundo Di Renzo, era um projeto "...absolutamente mágico, alucinante, delirante", que não apenas liberava os pacientes, como pressupunha Nise da Silveira nos anos 30 e 40, mas os qualificava para a vida.

 

Como dizia o locutor Marcelo Bruno, 26 anos, "quem não tem loucura não é equilibrado". Alugaram-se horários em rádios comerciais de Santos e montou-se uma equipe formada por pacientes que tinham maior desenvoltura de voz e locução, de imitação e humor – no programa que recebia cerca de 50 ligações telefônicas diárias, exigindo uma nova linha alternativa para atender os ouvintes. Existia doação de brindes por parte do comércio, pelo menos dez firmas interessadas em patrocinar o programa, até a formação de um "fã-clube".

 

A rádio superou as expectativas mais otimistas em sua primeira semana de funcionamento, com ampla participação popular e envio de sugestões. Foi feita inclusive proposta da rádio para criar o "Espaço Tam-Tam" com flashes ao vivo a qualquer hora do dia ou da noite, para produzir uma novela de rádio, Loucuras de Amor - recriando tipos tradicionais da rádio Nacional nas décadas e 40 e 50. A rádio foi aberta com uma mensagem de Herbert Viana, do conjunto Paralamas do Sucesso, e teve, na primeira semana, uma entrevista com a atriz Fernanda Montenegro. Convidou-se também alguns adolescentes para integrar a equipe na área de assessoria técnica.

 

A partir daí nasceram diversos personagens como Marcelo Bruno, Tião Pinéu, Ed Spray, Billy Paul e Hideubranco, que se tornou um dos programas mais conhecidos da cidade - depois dividido com uma escola pública. A rádio foi a primeira pensada e produzida por doentes mentais. "Queremos entrevistar personalidades que visitam a cidade, queremos que os ouvintes larguem as FMs e sintonizem a rádio Tam-Tam, pois a programação que ela vai apresentar o ouvinte não vai encontrar em nenhuma outra rádio", diz. Com horário das 16 às 16,30, a equipe era composta pelos loucutores oficiais Carlos Alberto Pereira (Marcelo Bruno) e Renato Conceição; na pesquisa Milton Newman; na produção geral Hercílio dos Santos Trindade e Roberto Antonietti, além de Clécio Santos, que atua como coringa do Tam-Tam.

 

A produção musical do programa estava a cargo de Leandro Saueia e Christian Cardim Dias, ambos com 16 anos, alunos do Colégio Marza; de estudantes do Objetivo; Soledad Rodrigues Morales, agente de saúde do Anchieta, e ainda do psiquiatra Marcos Scazufca Ribeiro, mais conhecido por Bode, baterista do conjunto Ex-machine, e Gilvan Gomes da Silva, guitarrista do grupo e responsável pelo curso de música do Centro de Convivência. Brindes e sorteios para os ouvintes, inclusive camisetas da griffe Tam – Tam.

 

O programa também fazia a  divulgação de novos conjuntos de rock (já havia 5 inscritos, além do que iria se apresentar, "nem ford nem sai de simca") e ofertas de venda e permutas de pranchas de surfe e skates por jovens interessados. "Os jovens - diz Di Renzo - como os pacientes do Anchieta, sofrem discriminação da sociedade e nem sempre conseguem o espaço adequado para expor seu potencial", explica. No estúdio, era proibido fumar, sob pena de suspensão da participação no programa. Era uma norma interna, inclusive adotada por eles para proteger os equipamentos da nicotina. Eles mesmos corriam para lá e para cá para consertar microfones e aparelhagens, algo impensável alguns meses atrás.

 

A repercussão na imprensa do Tam-Tam

 

Com sua criação noticiada pelo jornal A Tribuna, assim como pelo Telejornal Brasil, do SBT, no dia 6 de novembro saiu nos jornais Folha de São Paulo e Diário Popular, O Estado de São Paulo e na rádio 95 FM, outra vez em A Tribuna no dia 7 e no Notícias Populares, sendo distribuída a notícia pela Agência Estado no dia 8 para as agências internacionais.

 

A intervenção foi comentada pelo programa Fantástico da rede Globo no dia 11, com imagens da Rádio Tam-Tam. No mesmo dia 11 seria notícia na rádio Bandeirantes, entrevistando o diretor Renato Di Renzo no domingo, além da rádio Excelsior no dia 12 e da rádio Globo. Também a revista Atual e a TV Gazeta produziam notícias sobre a Rádio Tam-Tam. É a notícia do D.O. no dia 21/11/1990.

 

Entretenimento como terapia, a tese

 

Organizando há quase 30 anos o Festival Interno do Colégio Objetivo, desde 1975, desenvolvendo terapias com menores, observa que os adolescentes só são reconhecidos se obtiverem boas notas na escola, caso se destaquem no esporte ou na cultura, "mas a maioria não se destaca em nada disso e, sem alternativas para canalizar sua energia, podem perder seus valores, entrar em conflitos e buscar mecanismos artificiais para minimizar as tensões que sofrem", lembra.

 

Para ele, a nova etapa da rádio Tam-Tam servirá para resgatar a importância das pessoas, tanto pacientes psiquiátricos como jovens, trabalhando a sociedade, oferecendo-lhe meios de questionamento e mudança de valores – não apenas desmistificar a loucura e integrar pacientes na sociedade, reduzindo cada vez mais a distância entre sãos e loucos.

 

Di Renzo salienta que os adolescentes são os porta-vozes mais importantes das mudanças e participando de um projeto voltado para a melhoria da qualidade de vida, gerando felicidade. "Os jovens acabam se transformando em multiplicadores de mensagens em seus círculos de amizades", considera. Apenas a Rádio Gá-Gá para idosos foi um plano de Di Renzo que não saiu do papel, pois ele ainda faria a Rádio Moleque para os Meninos de Rua assistidos pela Prefeitura – no projeto que se expandiu pelo País e pelo mundo, a partir de Santos e de Ricardo Di Renzo.

O Biruta

O jornal O Estado de São Paulo de 20 de novembro de 1995 reporta nacionalmente a experiência de resgate da cidadania dos internos do Anchieta na atividade teatral do grupo denominado Biruta, que estava representando o mito Ulisses e as sereias, coordenado pelo psiquiatra Auro Danny Lescher, da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp. Nascido em 1992 e caminhando para a profissionalização, o grupo se abriu para a comunidade e passou a contar com a direção teatral de Sérgio Penna, autor e pesquisador teatral – para quem o teatro proporciona "autoconfiança, liberdade, realização pessoal e descortina novos horizontes".

 

Em 1995, trabalhando no NAPS-4, estudioso e fã do teatro e filosofia, passou a praticar isso com os pacientes, tendo estudado e trabalhado Artaud, que foi interno e morreu em um manicômio. "Biruta", porque além de sinônimo de louco e doido, é o instrumento que mostra para onde o vento sopra, em seus inúmeros sentidos, explica o nome do grupo seu diretor. Ele destaca que mesmo alguns atores que desconhecem a leitura e eram no início incapazes de reproduzir uma seqüência de frases se superaram e já decoram textos.

 

Tykanori destaca que o grande mérito está em recuperar o valor de quem estava  classificado como incapaz: "Quem assiste uma representação do 'Biruta' sai com a impressão de que as pessoas que estão ali, apesar de loucas, têm valor". Muitos de seus integrantes, segundo Lescher, têm um histórico de 30 anos de internações, mas exemplos como o de Andréa Ribeiro, de 20 anos, que se sentia doente antes daquele exercício, depois de 3 anos no projeto tem planos de tornar-se atriz.

 

Schechtmann, na raiz do trabalho de Di Renzo: Foucault e a não-obra, a racionalidade oculta na expressão da loucura

 

Michel Foucault, em sua História da Loucura, relaciona a loucura à não-obra, à impossibilidade da obra. Isto se tornou um objeto de abordagem por parte de diversos pesquisadores e técnicos, debatendo sob variados prismas com filósofos, críticos de arte em geral e psicanalistas a questão das raízes natas da criatividade, que inclui traduzir signos percebidos e articulados em linguagens acessíveis e inteligíveis.

 

Isto é a linguagem, a obra de arte, enfim, não mais do que isso, define Alfredo Schechtmann – hoje consultor do Ministério da Saúde para Saúde Mental -, descrevendo "O caso Qorpo Santo, escrita e loucura". O hermético e o cifrado não são apenas sintomas da linguagem dos loucos, mas fruto de uma nova estética de conversão para recepção.

 

A compreensão desta natureza relacional é básica para se compreender de que maneira pode-se ir buscar a racionalidade oculta nos portadores de transtorno mental. É simples sua compreensão: desde o início da história humana que a loucura se traduz como humorismo ou mensagens cifradas, há muito valorizadas como arte. As expressões da arte de vanguarda, por exemplo, seja o dadaísmo ou o surrealismo, os modernos em geral, tensionaram esta relação entre o estritamente subjetivo, hermético e cifrado simbolismo, fazendo-o circular em meios de cultura mais amplos. Colocando na ordem do dia esta estética da recepção, como fizeram na literatura Franz Kafka e James Joyce.

 

Enfim, é tudo uma questão de linguagem, de uniformidade da linguagem, o que só se consegue com a socialização, com a ressocialização - ou o isolamento provocará problemas na comunicação. Os métodos para isso, para construir este caminho, no caso, foram dados pelos artistas, na compreensão, sem violência, da linguagem do outro.

 

O psiquiatra Domingos Stamato conta sobre um húngaro retido no Anchieta simplesmente porque ninguém falava sua língua, até que surgisse alguém que o compreendesse e ele fosse libertado. Casos semelhantes, de pessoas com problemas de comunicação, se multiplicaram – e a internação no Anchieta era a saída mágica para o problema em que atuou, reatando relações, o artista Di Renzo.