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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA - BIBLIOTECA NM
Santa Casa de Misericórdia (28-b)

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Na edição nº 5 (maio de 1941) do Ano VIII, a publicação Actas Ciba - editada no Rio de Janeiro por conta da empresa Productos Chímicos Ciba S.A. - publicou a história da Santa Casa de Misericórdia santista, em dois artigos escritos pelo médico Hugo Santos Silva, então chefe de clínica desse hospital.

O exemplar, com 36 páginas (numeradas dentro da série referente ao ano de sua circulação), foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010 (ortografia atualizada nesta transcrição deste material, contido nas páginas 116 a 120):

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O mais velho hospital da América

Actas Ciba Ano VIII nº 5 - Maio de 1941

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Dr. Cláudio Luiz da Costa, que restaurou a Santa Casa em 1836

Imagem publicada com o texto (página 116)

Um médico da Santa Casa

Pelo dr. Hugo Santos Silva,

Doutor em Medicina

Chefe de clínica na Santa Casa

 

"Honora medicum propter necessitatem

etenim illum creavit Altissimus."

Eclesiastes, 38, 1.

Depois de Braz Cubas - o imortal fundador de Santos - surge, na história da Santa Casa, a figura impressionante de um médico que foi, em hora incerta e duvidosa, o seu anjo da guarda.

Em fins de 1831, há mais de um século, surgiu na Vila de Sntos, vindo da Corte - largo chapeirão de copa alta, cor de pelo de rato, colarinho de bico, vasto plastron escarlate, com preguilha de metal, colete vistoso com botões de vidro, robição de pano inglês, com capa de briche, com canhões de veludo e riços verdes, calças de saragoça, sapatões afivelados - o médico Cláudio Luiz da Costa.

Natural de Desterro (N.E.: atual Florianópolis), da então Capitania de Santa Catarina, filho legítimo do sargento-mor João Luiz Ignacio da Costa e de dona Joaquina de Bitencourt, aos 16 anos, concluídos os preparatórios, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica, cujo curso era de 3 anos, diplomando-se, após aprovações plenas, em 17 de abril de 1817. Formado, transfere-se para Bahia, clinicando em São Francisco. Patriota exaltado, amante da liberdade, tomou parte nas guerras da Independência, como cirurgião-mor de batalhão, não tendo querido receber o soldo a que tinha direito; e quando, após a restauração da Bahia, lhe mandaram abonar os soldos, fez deles cessão em prol das necessidades públicas.

As guerras pela emancipação política em que se envolveu agravaram-lhe de tal sorte a situação econômica, que, arruinado, sem a sua propriedade agrícola de São Francisco, sem clínica, foi obrigado, em 1823, a mudar-se para São Salvador, donde, com o mesmo posto, foi removido, em 1826, para a Divisão Imperial de Polícia da Corte, ali permanecendo até 1831, quando o nomearam membro da comissão encarregada de organizar um projeto reformando o Corpo de Saúde do Exército, projeto esse que se perdeu no esquecimento...

Ainda no Rio de Janeiro, a pedido de Debret, professor de pintura histórica na Academia Imperial de Belas Artes, leciona, em 1828, osteologia aos alunos dessa especialidade, gratuitamente e com sucesso.

Não se sabe qual o motivo que o obrigou a deixar as deduções e os atrativos da Corte. Eu imagino, como médico habituado aos rigores e às desilusões da clínica, que só poderia ter sido por um desses profundos desencantamentos - férteis na nossa missão - e que, não raro, obrigam o profissional, amargurado e desnorteado, a procurar em outros meios novos alentos que o ajudem a vencer a dureza de decepções e desgostos...

Aparece em Santos, como já foi dito, em 1831. Desenvolto, culto, inteiriço, trazia no olhar a suavidade dos que compadecem das misérias humanas e na fala o cunho do pensamento amadurado no convívio dos livros. As vigílias da guerra, a pobreza dos primeiros anos, as ingratidões da clínica, o contato diário com a dor - ampliaram mais aquele grande coração aberto para o bem.

Para glória da vila, da heróica vila de Santos - terra venturosa, terra da liberdade, pátria de gigantes nas justas do pensamento e de heróis nos torneios da caridade, florão do Brasil! - veio aqui exercer o seu apostolado, quem já era grande pela fama, grande pelas virtudes, grande pela ciência que possuía!

Monta seu consultório e se dedica com carinho aos doentes e, principalmente, aos doentes pobres de quem não recebe recompensa alguma. "Nisto - escreveu ele -, nada mais faço, do que cumprir um dever sagrado, que implicitamente, contraí para com a sociedade desde o momento em que recebi a espinhosa investidura da profissão que exerço". Ingressa em julho de 1832 na Santa Casa.

A nossa "Casa de Deus para os homens", por incúria, descaso, relaxação e desonestidade das administrações, vivia uma vida de provações e de miséria. Abandonada, desprezada, desmoralizada, desamparada, esta casa que Braz Cubas fundara, agonizava. O povo não acudia aos apelos do socorro. Salvo honrosíssimas exceções, as administrações malbaratavam os dinheiros da caridade. O patrimônio da Instituição diluía-se. Dissentiam os capelães com os vigários; os vigários com os visitadores; os visitadores com a Irmandade; a Irmandade com os governos... Esta Casa veneranda e venerável morria, na mais desgraçada desordem.

Em 1835, a crise assomou seu ápice. Era preciso salvar a Casa de Braz Cubas. Urgia um remédio heróico. E veio Cláudio Luiz da Costa. Fizeram-no provedor. A sua ação foi das mais eficientes. Ele é o grande restaurador da Santa Casa. Ele é o grande traço de união projetado entre o passado remoto e o presente. Todas as homenagens que, à memória, se lhe tributarem, ficam aquém do seu mérito, das suas lhanezas, das suas franquezas, e, sobretudo, do seu sentimento de justiça.

E nos documentos que nos deixou, e onde eu não sei o que mais admirar, se a elevação da frase moldada no bom ouro da língua, se a profundidade dos conceitos, se a franqueza da crítica, desassombrada, altiva e independente, se a modéstia em que oculta a sua extraordinária personalidade - nos documentos, dizia, que nos deixou, detalha, com riqueza de minúcia o trabalho piedoso de reconstrução moral e material da Casa Santa.

Braz Cubas, para o qual tem sempre os olhos voltados, merece de suas pena estas palavras: "Tenha eu hoje como vosso órgão a glória de elevar a vós neste Consistório da Santa Casa da Misericórdia da Vila de Santos, para pronunciar com respeito o nome do grande Braz Cubas, o instituidor e seu primeiro protetor. Fique sua memória sempre indelével nos fastos desta Irmandade, onde a devemos deixar como padrão sagrado da mais devida gratidão à posteridade".

Espírito arguto, seguro, metódico, Cláudio Luiz envereda pelo passado, procurando, nos arquivos da Irmandade, a história desta Casa, e desta visita pelo tempo mostra o desalinho do pretérito. "De fato - diz ele -, quase tudo era letra morta, e a Irmandade apenas se regulava por determinações da Mesa, bem depressa esquecidas, às vezes, no mesmo ano em que eram prefixas. Aniquilada assim toda a ação da lei fundamental da Irmandade, ainda mesmo que outras leis gerais não a tivessem entorpecido, claro fica haver absoluta necessidade de uma nova constituição.

"Do velho compromisso possuímos um translado feito por tabelião no ano de 1606. Tudo quanto se passou antes desta época foi perdido; digo que foi perdido, porque nada aparece escrito, e infalivelmente deveriam haver registros até esse tempo. Os capitães-generais desta Província, logo que tomavam posse dos seus respectivos governos, punham um cumpra-se neste compromisso, como que para renovar o vigor desta lei por uma renovada sanção. A data destas sanções, a mais remota é de primeiro de novembro de 1592, 41 anos depois que o Compromisso foi decretado em Almeirim. Não é possível que em tão longo espaço de tempo ficasse a Irmandade no estado de embrião; tanto assim é que, mesmo na história de frei Gaspar, se depreende haver-se erigido a Irmandade e aberto seu hospital antes de sua instalação legal pelo Compromisso.

"A inscrição que ainda hoje existe sobre a campa de Braz Cubas, no presbitério da nossa Matriz, mostra que o Hospital da Caridade foi por ele criado no ano de 1543, oito anos antes da data do decreto do Compromisso; e tendo falecido Braz Cubas no ano de 1592, segue-se que existiu a Irmandade e o Hospital da Misericórdia desta vila, 49 anos sob sua proteção.

"Achei no velho Livro de Termo de Entrada dos Irmãos os mais antigos em data de 1660; mas o que respeita à administração da Irmandade, o mais velho termo de sessão de Mesa, é do primeiro de julho de 1709; - só desta época em diante é que vos posso fazer uma descrição mais circunstanciada.

"Antes dela não encontrei que me pudesse guiar no exame da administração e próximo à sua origem; mas fique consignado para instruir a história desta Irmandade, que ela foi criada junto do Hospital de Caridade, por Braz Cubas, no ano de 1543, sem que se houvesse estabelecido hospital algum de caridade nesta vila. Que obteve o Compromisso no ano de 1551 e que o documento mais antigo que nos pode dar conta do trabalho administrativo da Irmandade é o termo de 1º de julho de 1709, havendo dado a descrição de tudo quanto se passou nesta Irmandade no longo espaço de 166 anos, perdendo-se talvez preciosos documentos".

Passa depois, com riqueza de pormenores, a partir de 1 de julho de 1709 até 1830, louvando no carunchoso e desbotado Livro de Termo, a descrever o número de vezes que o Conselho Administrativo da Irmandade se reuniu no espaço de 121 anos, chegando à conclusão de que, naquele dilatado período, houve 109 reuniões...

"Assim andou - remata ele- tão frouxamente a Irmandade; 53 anos interrompidos por 68 de completa inação! Bastaria esta estatística das sessões da Mesa para se fazer uma idéia do mísero estado desta Irmandade até o ano de 1830, em cujo ano entrou ela mergulhada no sono da morte".

Estudando as causas deste sono letal, acrescenta, impávido e sereno: "Tão poucas e tão pequenas doações em benefício desta piedosa casa, no decurso de mais de um século, provam uma verdade bem dura de enunciar-se: nem que os habitantes desta vila fossem tão nimiamente faltos de misericórdia, sua conduta em benefício desta Irmandade, do ano de 1830 em diante, como vos farei ver, o justifica; mas é que as administrações anteriores a este ano, ignorantes, descuidadas, sem zelo, algumas até sem consciência, deixaram absorver-se esta caridosa Irmandade no esquecimento, no abandono, quase no nada.

"Excetuemos desta justa increpação algumas dessas administrações, que intentaram dar apoio e força à Irmandade; foram poucas e pede o dever que eu faça delas hoje a mais grata e honrosa menção. No ano de 1748 e 1749, sendo provedor o coronel Antonio Teixeira Lustoza, foi a Irmandade animada por esse ilustre cidadão: procurou engrandecê-la, o que bem se colige dos registros daquela época; mas seus esforços não tiveram competidores, e depois dele ela continuou a ser vítima do mesmo abandono.

"No ano de 1774 e 1775, sendo provedor o padre José Luiz dos Reis, entendeu ele, melhor que seus antecessores, os interesses da Irmandade, e começou a promover o aumento do seu patrimônio, empregando em prédios urbanos as sobras da sua receita, mas esse sistema durou apenas poucos anos.

"Em 1804, a decadente Irmandade reclamava uma proteção eficaz; encontrou-a no fervoroso zelo, nos cuidados e na extremada caridade do governador Antonio José da Franca e Horta, na do brigadeiro Manoel Mexia Leite e na do tenente-coronel José de Carvalho e Silva. Esses ilustres varões, desde o ano de 1802 até o de 1809, fizeram todos os possíveis esforços para restabelecer a Irmandade e conseguiram levá-la e dar-lhe lustre, mas, ou tolhidos pelo velho Compromisso ou confiados no futuro zelo dos novos irmãos, não fixaram normas para uma fiscalização regular, não ordenaram um regime que acautelasse os cuidados do porvir.

"Esse momento de glória da Irmandade durou, enquanto permaneceu a ação direta de sua influência. A memória dos três beneméritos irmãos, de quem acabo de tratar, deve ficar assinalada como honra dos nossos anais".

Defensor do patrimônio do hospital, assim refere, irônico, uma proposta ambígua de um Irmão interesseiro: "Ultimamente um dos irmãos faz constar haver-se proposto, para acudir às despesas da Irmandade, o empenho da sua prata, recebendo-se dinheiro e o prêmio sobre tal penhor; ao que a Mesa não anuiu com bastante acerto: pois se tal proposta houvesse se adotado, teria a Irmandade perdido a sua prata, única preciosidade que se encontrou salva das ruínas em que a deixaram: apenas umas franjas velhas, de ouro, foram em 1804 queimadas para com o produto se comprar outras novas, e algumas novas alfaias para a Igreja; mas das contas do procurador daquele tempo se observa o ridículo produto de tal calcinação, que talvez por forte rendesse tão pouco, evaporando-se parte da prata".

Franco, às vezes rude, na crítica impessoal dos erros e deslizes, é com carinho, mesmo com doçura, que se reporta aos colegas: "Cumpre-me neste lugar do meu relatório fazer muito grata especial e honrosa menção dos benefícios que esta Irmandade tem recebido dos três facultativos, os senhores Vitorino José da Costa, nosso Irmão José Maria da Costa Paiva e Firmino José Maria Xavier, nosso Irmão. A vocação e filantropia destes três facultativos, prestando por esmola seus serviços profissionais no Hospital da Misericórdia, tão carecido de amparo, é um dos mais assinalados e importantes que ele tem tido.

"O nosso irmão senhor Vitorino suportou só o trabalho diário de tratar de enfermos, desde que abriu o Hospital, como já vos disse, até o ano de 1832. Neste ano, sendo convidado por alguns irmãos de Mesa para entrar nesta Irmandade, achei-me no seu grêmio no mês de julho; desde então me propus a compartir os trabalhos do hospital com o meu colega Vitorino, dedicando-me a eles com bons desejos de levar ao depósito da beneficência o fraco contingente de minha limitada suficiência profissional".

Cláudio Luiz da Costa é um batalhador infatigável. Como provedor, aumenta a receita do hospital. Reforma os prédios do patrimônio. Promove rendas. Estuda as legislações das Santas Casas. Reforma o Compromisso. Aceita a contribuição da Sociedade Filantrópica. Melhora o conforto dos doentes. Ampara os infelizes. Vela pela infância desvalida. Cuida da situação dos insanos. Inaugura em 4 de setembro de 1836, após ingentes esforços e muitos dissabores, dentro do respeito e da admiração do povo, o novo edifício da Santa Casa.

E, em seu relatório de 1838, pode dizer feliz, imensamente feliz! "Resta-me exortar a que continueis a proteger esta Santa Casa, pois não obstante achar-se, como vos digo, desempenhada e no estado de prosperidade que vos é manifesto, não obstante poder-se já contar lhe ficarão 3 ou 4 contos de réis disponíveis, liquidado o benefício da Loteria, se suas rendas muito pequenas não forem aventadas pela eficácia de vossa cooperação, por vossa constância nos serviços que a Irmandade reclama, por vosso contínuo e prestante amparo, cairá em novas ruínas e ficará, outra vez, reduzida ao nada de que acaba de sair".

Aí está a personalidade varonil de um grande médico, cuja vida foi inteiramente consagrada ao bem da comunidade. Só um médico - e que médico! - poderia ter realizado essa tarefa admirável. Regressando ao Rio de Janeiro, doutorou-se em Medicina. Escreveu memórias. Várias vezes agraciado pelo imperador, foi conselheiro de Estado, continuou o seu apostolado e em 27 de maio de 1869, aos 70 anos, findava sua vida gloriosa.

Santa Casa de Santos, 1836

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