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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (C)
A qualidade de vida em questão (2)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas. É desse período esta série de matérias especiais, que continuou sendo publicada no jornal santista A Tribuna em 25 de maio de 1981:
 
A ocupação dos morros de Santos, por famílias de baixa renda, é considerada viável pelos técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Em estudo encomendado pela Prefeitura, em 1978, os técnicos dizem que os morros têm capacidade para receber mais 87 mil habitantes, além da população que lá se fixou. Mas a ocupação começa a ser feita por famílias mais abastadas, que buscam melhor qualidade de vida e que de certa forma iniciaram um processo de elitização dos morros. O fato foi motivo de alerta do IPT, no mesmo documento. Mas, conforme diz o padre do Morro de Nova Cintra, a invasão é inevitável, e já começou. E uma das poucas áreas verdes de Santos corre perigo de extinção.


No alto do morro, a área da mansão, junto aos barracos...
Foto: Rafael Herrera, publicada com a matéria

Elitização dos morros é um perigo constante

Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares

Há cerca de dois anos, num amplo documento entregue à Prefeitura, técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) informavam que os morros de Santos e São Vicente eram alternativa viável para ocupação por pessoas de baixa renda. Mas a situação inverteu-se: cada vez mais, os morros estão se elitizando. Primeiro, o Morro e Santa Terezinha, no José Menino; agora, o Morro de Nova Cintra, onde já existe um loteamento particular.

No documento do IPT, os técnicos dizem que a ocupação dos morros por famílias humildes molda-se como alternativa, em relação aos altos preços da habitação vigentes na Baixada. Mais que isso: informam que os morros de Santos e São Vicente (estes, fronteiros) têm condições e absorver população de cerca de 117 mil habitantes; ou seja, podem ganhar mais de 87 mil habitantes, além dos 30 mil já existentes, conforme estimativas de 1976.

Este fato revela os morros como grande opção para o desenvolvimento urbano de Santos (e também de São Vicente). Os técnicos justificam o acréscimo, tendo em vista a liberação, pelo IPT, de 54,2% da área total dos morros (estimada em oito quilômetros quadrados), e aplicando, nessa área restante, o adensamento habitacional médio de 260 habitantes por hectare (ou por 10 mil quilômetros quadrados).

Denúncia, antes - No documento, os técnicos já alertavam quanto ao perigo de as classes mais abastadas estarem redescobrindo os morros como opção de moradia. "A iniciativa do poder público, de racionalizar a ocupação urbana nos morros, está condicionada a uma disposição firme em fazer prevalecer os interesses da população sobre as conveniências circunstanciais dos proprietários de terra e da especulação imobiliária".

E vão além: "As classes mais abastadas estão redescobrindo os morros como opção ideal de moradia, quando o mito do concreto, do aço e dos arranha-céus é superado pelos apelos ecológicos. Assim, devido às excepcionais condições de conforto ambiental e localização, os morros tornam-se o alvo natural da sanha dos grandes especuladores imobiliários".

Depois de deixar claro que, nesse tipo de enfoque, os grandes proprietários exercem pressão sobre a municipalidade, forçando a execução de obras de infra-estrutura por meio de pressões sociais, e valorizando as áreas, os técnicos concluem: "É preciso deixar claro que não se está colocando problema de ocupação das encostas por classes mais abastadas como algo mal, ou que não deve ocorrer. Mas é necessária a adoção de medidas para que o poder público não passe a servir apenas a estes interesses, ocorrendo nos morros de Santos um processo de expulsão e substituição da população existente, aos moldes do que atualmente vem ocorrendo em algumas capitais assoladas pela febre dos loteamentos ecológicos (grifo original). No caso particular dos morros de Santos e de São Vicente, o custo social desse processo de substituição de população seria altíssimo, uma vez que a remoção se daria ao preço de uma total perda de identidade e marginalização dessa população que habita as encostas".

E finalizam: "Tudo isso sem atentar ao irônico desse processo, que se inicia num momento em que o apartamento de veraneio em Santos, por exemplo (55% das habitações da Cidade), não mais representa um símbolo de status, encontram-se desocupadas atualmente cerca de 30% destas unidades, e em  processo de vacância as outras restantes".


... E aparece o primeiro loteamento "ecológico"
Foto: Rafael Herrera, publicada com a matéria

"A invasão começou"

A especulação imobiliária nos morros começa a preocupar o padre Júlio Llarena, da Igreja de São João Batista, no alto do Morro da Nova Cintra. Lá, várias placas indicam que um loteamento particular, com o sugestivo nome de Parque da Montanha, aprovado pela Prefeitura, oferece terrenos com melhorias e com "absoluta preservação ecológica". Padre Júlio, sentado sob frondosa árvore, coça a cabeça e diz quase sem esperanças: "A invasão começou. Temo pelo futuro dos moradores dos morros".

De fato, a invasão começou. Não com o loteamento particular da Nova Cintra, mas tendo em vista a escassez de áreas e os altos preços cobrados por elas, na Baixada. E já existe um precedente de ocupação de morro, por classes mais abastadas, que é o do condomínio fechado do Morro de Santa Terezinha no José Menino. Todos os demais morros de Santos são ocupados, em maior escala, por gente humilde, que constrói barracos de madeira na primeira área disponível que encontra.

Mas a preocupação, no caso do Morro da Nova Cintra, é a invasão feita de modo desordenado, descaracterizando o morro. "O pessoal da Baixada sobe o morro e vai destruindo tudo o que é natural. Falta-lhe educação. Mas isso é normal em pessoas que não amam a Natureza, porque a desconhecem. Estão acostumados a ver concreto por toda a parte e, quando vêm para cá, querem fazer a mesma coisa".

Padre Júlio não se conforma com algumas construções de gente abastada, que está se transferido para o morro: "Eles fazem logo uma plataforma. Derrubam árvores, queimam tudo e deixam a área limpa sem nada. Não respeitam a topografia do morro, derrubam montes, escavam. Por que não se adaptam às condições que encontram aqui? Por que não deixam o morro como está?"

Há vários exemplos de descaracterização da paisagem, principalmente no Morro da Nova Cintra, onde algumas áreas, próximo à Lagoa da Saudade, estão sendo simplesmente devastadas. Ouras áreas mais esparsas, no mesmo morro, estão dando, ou darão, lugar a pequenas mansões de gente que até o momento habita casas ou apartamentos na Baixada. É o caso de uma mansão projetada para a Vila Progresso, a área mais pobre da Nova Cintra, onde 90% dos barracos são habitados por nordestinos vindos em busca de esperança.

O padre Júlio chega ao fundo da questão: teme que os ricos tomem conta dos morros, causando a expulsão das famílias sem recursos, que encontraram no morro refúgio viável. "Que acontecerá quando a herdeira da grande parte da Nova Cintra morrer? Por quanto os herdeiros vão vender essas terras, e quem as vai comprar? E depois, quem poderá comprar os terrenos, a não ser os ricos? Por isso, acho que a ocupação por famílias abastadas será inevitável. E tempo pela expulsão dos que são moradores naturais daqui".

Ocupação indiscriminada

Os morros de Santos começaram a ser ocupados no século XVIII, para plantio de cana-de-açúcar, e extração de madeira. Esse comportamento manteve-se até a segunda metade do século XIX, quando a abolição da escravatura e o declínio da cana-de-açúcar no mercado mundial modificaram  o panorama. Surgiu então a monocultura do café, e como os morros não apresentavam condições favoráveis a esse tipo de cultura, toda essa grande área começou a ser abandonada.

A falta de braços especializados para a lavoura cafeeira provocou a importação de imigrantes ibéricos, a partir das duas últimas décadas do século XIX. Entretanto, boa parte desses imigrantes não foi absorvida pela lavoura cafeeira, mas fixou-se em Santos força de trabalho para as obras do cais, dos armazéns de café, da construção civil e até da construção e início de operação da São Paulo Railway, primeira grande ligação entre o Planalto e a Baixada Santista.

A proximidade dos morros com o Centro, e os principais pólos de trabalho, levou a população a se fixar nas encostas, onde o custo da moradia era aceitável, já que enormes glebas de terra, anteriormente utilizadas na cultura da cana-de-açúcar, estavam abandonadas. Esses primeiros moradores vieram das Ilhas Atlânticas (Açores e Madeira), aplicando aqui seus conhecimentos de construção em encostas, assimilados em suas ilhas de origem. Eles se instalaram, inicialmente, nos morros do Pacheco e de São Bento, chegando aos morros da Penha e do Fontana, no começo deste século (N.E.: século XX).

No início da década de 30, houve uma grande mudança no processo de ocupação dos morros. Com a substituição da oligarquia cafeeira pelo capitalismo industrial, começaram a chegar os migrantes nordestinos, que passaram a substituir os ibéricos nos trabalhos portuários, na construção civil e nos armazéns de café. A alta burguesia santista passou a morar no Gonzaga, Boqueirão, José Menino e Vila Mathias, enquanto que a classe média industrial invadiu bairros tipicamente operários, como o Campo Grande, Macuco e Marapé. Como as grandes áreas não ocupadas ficavam distantes do centro e dos pólos de trabalho, restou a esses novos migrantes a ocupação das encostas dos morros.

A principal conseqüência desse fenômeno foi a ocupação indiscriminada dos morros, cujos moradores, em parte devido à falta de tradição na construção de casas em terrenos acidentados, em parte por falta de opção, pois as áreas planas passaram a ter preços inacessíveis, passaram a ocupar áreas geotecnicamente comprometidas.

Essa invasão dos migrantes nordestinos gerou sérios problemas. Os escorregamentos passaram a ser cada dia mais freqüentes, e as condições de saneamento básico, cada dia mais precárias.

Outro surto ocupacional ocorreu na década de 60, quando os nordestinos vieram ocupar um espaço na indústria e acabam sendo alocados, em sua maioria, na infra-estrutura de prestação de serviços, atendendo às necessidades de uma classe média crescente, ligada diretamente ao parque industrial de Cubatão e ao boom imobiliário, particularmente a construção civil dirigida para o turismo.

Começou então a ocupação da Nova Cintra e da Vila Lindóia, que apresentam hoje uma densidade demográfica bastante grande, com uma população que ganha, em média, até cinco salários mínimos, segundo um estudo feito pela Prodesan em 1976. Resultado: as grandes moradias passaram a ser divididas com inquilinos, vivendo o proprietário na parte nobre da residência ou simplesmente transferindo-se para as regiões planas.

O fundamental, entretanto, é que o desconhecimento da realidade físico-econômica dos morros por parte das autoridades permitiu o processo irracional de ocupação. Quase toda a área dos morros em condições de ocupação está dividida entre meia centena de propriedades. Atualmente, grandes extensões estão destinadas ao plantio da banana, considerado, inclusive, numa das formas de subsistência da população.

Padre Júlio e suas crianças: "Elas acordam com o barulho dos pássaros"
Foto: Rafael Dias Herrera, publicada com a matéria

Crianças, aqui e lá

Algumas crianças que moram nos bairros da praia têm orgulho em mostrar aos amiguinhos, na escola, uma fotografia sua ao lado de uma vaca. Isso mesmo: ao lado de uma vaca.

E onde foram tiradas essas fotografias? "Lá no morro", dizem, mais orgulhosas ainda. Essas crianças fazem parte de uma minoria privilegiada, moradora em Santos, que já teve, uma vez na vida, contato com animais como a vaca, o cabrito, o porco e as galinhas. Privilegiadas, porque puderam tocar num animal, sentir seu cheiro e se integrar numa paisagem bem distante daquela vista pela televisão, no apartamento.

"Essa é uma das principais diferenças que vejo entre a criança da baixada e a que vive no morro. A daqui (do morro) é criança em toda a extensão da palavra, moleque mesmo, com uma vivência muito superior à da baixada", diz o padre Júlio Llarena, do Morro de Nova Cintra, um dos que fez as crianças de amigos seus se deixarem fotografar ao lado da vaca existente no futuro Seminário São José.

O padre, nascido e criado ao lado dos pais, lavradores no interior da Espanha, volta ao passado quando fala das crianças do morro: "Minhas crianças acordam com o barulho dos pássaros, mexem com a terra durante o dia todo - às vezes, mais do que deviam -, pois é assim que adquirem lombrigas e doenças de pele. Caçam passarinho com atiradeiras, entram no mato, sujam-se todas, roubam goiabas e tomam banho peladas na caixa d'água do seminário. Tudo muito natural, bem diferente das crianças da baixada, que não conhecem bichos, vivem trancadas em apartamentos, diante da televisão. Como saúde mental, como infância vivida, nem se pode comparar uma e outra. As daqui vivem, embora uma vida humilde, mais saudável. E dando valor a tudo".

Padre Júlio não precisava de ter dito, pois o fato é de conhecimento geral: a falta de terreno (com terra, árvores e jardins), nas casas, e a crescente ocupação de apartamentos foi um dos motivos que levaram à abertura, cada vez maior, de escolinhas onde os pais podem deixar as crianças de meses até cinco anos passarem as tardes brincando na terra, mexendo com plantas e insetos. Suprindo uma carência provocada pelo cimento e pela falta de áreas de lazer nos bairros, fator que está levando a cidade a uma queda na qualidade e vida. Também para as crianças.

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