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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MACUCO
Histórias do início do bairro do Macuco (5)

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Texto publicado no jornal santista A Tribuna e incluído pelo autor na obra Imagens de um Mundo Submerso (volume I, 1995, editora Leopoldianum, Santos/SP):
 
O Homem de Terno Branco e as suas Maldades

Nelson Salazar Marques

O Bairro Chinês foi a Hong Kong santista. Havia ali o misticismo dos grandes silêncios noturnos só quebrados pelo apito cheio de presságios do trem que chegava de São Paulo às nove e meia da noite. As ruas e os becos desertos desembocavam sempre nas grandes bocarras dos armazéns de café ressoando sons fantasmagóricos e pondo medo medonho de alma de criança. O morro do Pacheco dormia. O bronze dos sinos do mosteiro do São Bento galvanizava o sono da portuguesada que dormia cevada no vinho e forrada no bacalhau. Ó Portugal, as tuas lágrimas são lágrimas que vêm do sal do bacalhau!

Um dia, inadvertidamente, mexi nesse vespeiro e escrevi as minhas memórias sobre aquele pequeno universo fascinante que foi o Bairro Chinês e então algo aconteceu que me perturbou: as pessoas foram tomadas de comoção súbita e todo aquele mundo de fascínio e de beleza que ficara entranhado em suas almas implodira. Apenas referência leve àquele universo distante removia a crosta cruel de insensatez e de maldade com que a vida vai nos envolvendo e então eles pareceram despertar do grande pesadelo. E ainda meio sonolentos e tontos pela caminhada dentro da longa noite que havia sido as suas vidas, eles se davam conta de que a criança que havia dentro de cada um deles ainda estava viva. O Bairro Chinês lhes havia chegado pelo enfoque infantil. Era um quadro pintado com as cores da inocência por um pintor em estado de pureza primitiva.

Então menino caía no Macuco como quem caía no Oeste americano. O Macuco era sinfonia ao ar livre tocada sem partitura em que os pássaros cantadores, os sapos nas valas, o apito dos navios e o ranger nos trilhos do bonde 19 eram os seus músicos. O grande maestro era o mar que à noite cobria o nosso sono. Crescíamos selvagens e aquele espírito inquieto parecia ser grande demais para ser contido em nossa pobre carcaça e o mar açoitando sem piedade, dia e noite, as franjas daquele imenso território nos punha na cabeça idéias de marinheiros e piratas. E à noite, enfiados debaixo das cobertas, o apito de um transatlântico alemão nos levava para viagens imaginárias em busca de sonhos perdidos que, se achados, continuariam perdidos.

Nenhum bairro encarnou com mais intensidade aquele espírito indomável que iria se manifestar mais tarde no santista, do que o Macuco. Sem as emanações do velho Macuco, Santos seria cidade insossa e boboca como essas que se espalham pelo interior em que viver se reduz a uma rotina castradora. O Macuco tinha tutano.

Desse vasto pedaço de terra mística e insondável duas realidades ficaram dentro de mim e eu as carregaria pelo resto da vida semelhantes a matrizes modeladoras de caráter. Uma dessas realidades é vil, repugnante, me constrange falar dela, mas eu estaria escamoteando passagem importante da história do velho Macuco e daqueles bravos portugueses pioneiros, se jogasse na lata de lixo do esquecimento o que aqui vou narrar.

Estes fatos não estão nos livros de nossos historiadores e é perturbador a gente ver como esses historiadores quase sempre nos tentaram passar uma visão conservadora e oficial da história. No plano nacional João Ribeiro foi o grande mestre da verdade: ele interpretava a história e nos dava uma versão plástica dos fatos. Em Santos, Francisco De Marchi tinha um atrevimento saudável ao costurar a história de Santos e aquela postura era encantadora. Mas às vezes De Marchi me repreendia em particular, pelo telefone.

Mas, afinal, qual foi esta presença vil e repugnante, este fato sórdido, que manchou a pureza do Macuco? Trata-se da presença do fiscal naquelas paragens. Era para mim entidade nova. No Bairro Chinês, naquele chão sagrado, entre a Estação Rodoviária e o Valongo, não havia fiscal: pelo menos criança nunca ouvira falar nessa figura misteriosa. Fiscal parecia não gostar do Bairro Chinês. Àquela altura um bairro de primeiro mundo, bem estruturado, suas ruas serviam de piso a ônibus de luxo que vinha de São Paulo, o King-Kong, ônibus de dois andares iguais aos de Londres.

Foi no Macuco que iria conhecê-los. Atormentariam a vida daquelas famílias portuguesas a um grau inimaginável de maldade e ganância. Ali eu via pela primeira vez a miséria humana, o caráter se desintegrando por dinheiro. Já lá se vão mais de cinqüenta anos. Eu era muito criança, mas guardo na memória alguns desses homens, principalmente um senhor gordo que vagava por aquelas paisagens sempre de terno branco. Era presença aterradora porque todos sabiam o que ele queria.

Aquele homem era o Karma de meu pai. Transplantados para casa nova, imponente para a época, meu pai decide levantar outra construção nos fundos na vasta área de terra que comprara. Nós víamos com orgulho a construção crescer e tomar forma. Vai senão quando surge do imenso areal aquela entidade má, o homem de branco, enérgico, moralista, fazendo ver a meu pai a infração cometida; correndo o dedo gordo pelo código e suas leis inflexíveis. Na sua voz dura há o tom de ameaça, prometendo jogar toda a construção no chão. A obra foi embargada. Foram dias de pânico.

Vizinhos aconselhavam: "O homem quer é dinheiro... ele vai voltar". E ele voltava mesmo. Meu pai reluta, não está habituado a esse jogo sujo. Mas acaba cedendo. Dali a alguns dias o homem dá de passar por aquelas paragens e como era previsto - o criminoso sempre volta ao local do crime - passa por ali esperando que alguém o chame. Meu pai vai ao seu encontro e lhe passa o dinheiro. E o tartufo sempre de terno branco, todo maneirismo, blandicioso, já é outro homem. Diante do dinheiro toda a irregularidade desaparecia: a obra poderia continuar e o código com as leis duras iria dormir na gaveta até que outra construção fosse despertá-lo selvagemente e jogá-lo nas mãos do homem de branco que então sairia pelas areias do Macuco assustando aquelas pobres famílias portuguesas com os rigores da lei.

Outro episódio se desprende da massa informe de recordações. Mais tarde, minha mãe, já viúva, decide fazer correr muro interno e baixo ao longo da propriedade para separar as duas casas no mesmo terreno e assim alugar uma delas para aumentar a renda da família subitamente reduzida com a morte de meu pai. O muro já esticado em seus quase cinqüenta metros vê, certa manhã, a chegada do homem de branco. Lá vem ele das profundezas dos areais do Macuco, ameaçando com promessas de demolição. Entra o dinheiro e o muro fica.

Ali por volta de 1955, já rapaz feito, dentro de minha pomposa farda de estudante do Colégio dos Padres Carmelitas da Ordem do Carmo, torno a encontrar o homem. Já idoso, impecável em seu terno de linho branco, caminha pela Praça Mauá em direção ao seu carro, um De Sotto importado. De Sotto era carro famoso na época. O homem passa rente a mim e não reconhece o menino que o vira extorquir dinheiro dos pais naqueles idos de 40. Observo-o. Caminha sereno com ares de homem de bem.

Hoje, no momento em que escrevo estas anotações, o homem de terno de linho branco já estará morto. E eu penso no sentido daquela vida. Na velhice, diante das portas da morte, no que pensaria aquele homem? Que sentido dera à sua famigerada vida? As maldições que lhe rogavam, o mal que causou àquelas valorosas famílias portuguesas, àquelas pobres e bravas viúvas, a má fama de seu nome, tudo isso deveria ter-lhe vindo à mente nos estertores da morte, naquele momento supremo em que qualquer homem, que tenha escapado da condição de pura animalidade, é compelido a parar e fazer um inventário de sua vida.

O homem de branco me repugnava pela concepção de vida que ele representava. Ele era pago para defender e zelar pelos interesses do poder público e acabava lesando a entidade que o pagava. Não tinha escrúpulos. Esperava a obra crescer, punha-se de tocaia e, diante do fato já consumado, então aparecia.

Essa anomalia que atingiu o Macuco nas décadas de 30 e de 40 é sintoma característico da mentalidade brasileira. Exemplifico: o Código de Obras daquela época havia sido criado para a realidade estável de bairros consolidados como o Campo Grande, o centro da cidade e o Bairro Chinês, onde a inexistência de espaços livres e o grande valor da terra estimulavam a tendência para a proliferação de obras clandestinas semelhantes aos puxados e à superposição de lajes em espaços infinitos de terreno, que certamente transformariam a Santos daquela época em labirintos iguais às cidades indianas ou aos espaços concentrados da Mouraria, em Lisboa.

Mas então, na década de 30, explode o Macuco com áreas gigantescas a serem preenchidas, ocupando quase metade da cidade de Santos. E então, pedia o mínimo de bom-senso que aquela mentalidade cristalizada no Código de Obras da época, mentalidade fundiária para reger pequenos espaços super-populosos, pedia o bom-senso que ela fosse adequada à nova realidade para responder aos novos desafios lançados por aqueles pioneiros que iam deixando as suas casas no centro da cidade em busca do novo Eldorado.

Aquele Macuco tinha espaços gigantescos a serem preenchidos onde cada construção era uma bênção dos céus. Aquele Código de Obras era uma camisa de força e um aceno à corrupção. O legislador brasileiro - ou por ser ignorante ou teórico demais - sempre se moveu dentro desse espírito de inadequação diante de realidade nova. E a realidade velha governando a nova traz em seu bojo a corrupção desenfreada.

O legislador brasileiro sempre me pareceu um anãozinho diante da grandeza deste nosso país. Penso na visão extraordinária daqueles legisladores americanos, penso em Jefferson, Benjamin Franklin, Lincoln, Hamilton, e em suas atitudes visionárias que levariam aquelas terras inóspitas a potência mundial. Penso na Lei do Homestead que ali por mil oitocentos e pouco já fez a Reforma Agrária definitiva no território americano e tornando impossível a presença do latifundiário. No Brasil, falar em Reforma Agrária para os homens da revolução de 64 era ser comunista.

Aquele homem de branco percorrendo os campos de areia do Macuco na década de 40, não era um simples homem de branco: ele era um símbolo. Ele era a síntese do Brasil que caminhava com o seu passo ronceado e lento através das gerações e dos tempos.

Macuco em 1928: "bellos lotes", em grandes áreas livres, com "preços vantajosos"
Imagem: anúncio publicado no jornal santista A Tribuna em 5 de agosto de 1928

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