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Santistas, nas barrancas do Paranapanema [04]

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Livro de Santos Amorim, lançado em novembro de 1932, relata a participação de um batalhão santista na Revolução Constitucionalista daquele ano:
Em Engenheiro Hermillo, Ligiana e Aracassú

A nossa chegada a Engenheiro Hermillo deu-se na noite de 28. Passamo-la dentro do trem. Fazia frio. Mas conseguimos dormir algumas horas. Na manhã seguinte, o céu nublado ameaçando chuva, depois de um confortante café preparado pelo Pereirão - o general do rancho - entramos a dar serviço. Patrulhas de reconhecimento pela mata próxima. Guarda a algumas posições vizinhas. Sentinelas noturnas. No carro do comando. Na estação. Ao longo da via férrea. Em lugares diversos.

A rapaziada, sempre disposta, quando estava de folga, para matar o tempo, já que o inimigo não aparecia, matava penosas...

Os cabos Eurico Marianno dos Santos, Casimiro Araújo e Constantino Molitza; o Antonio Marcellino, o Tosca, o Eurico Neves, o Victor Lovecchio, o Salú, até o Athié, e ainda muitos outros, eram os mais ferrenhos perseguidores das indefesas e desventuradas aves. No galinheiro, que o caipira havia abandonado. Ou no paiol do milho que estava ao abandono também, as buscas se sucediam dez, vinte, cinqüenta vezes por dia.

E ai da infeliz penosa que ali estivesse. Não escapava. O cerco era terrível. A pau. A pedra. A tiro. À unha. E a pobrezita acabava sem vida. E sem pescoço. Horas depois, os malandros se regalavam com um jantar opíparo. Tomavam canja, comiam galinha ao molho pardo, assada, à milanesa etc. etc.

Ovos não faltavam. Eles sabiam perfeitamente onde os encontrar. E ainda outras coisas boas saboreava a "Turma do Amor". Como ela mesma se denominava.

Só dependia de um pouco de esforço. De fazer um reconhecimento em regra. Para essa tarefa, contavam sempre com o sargento Péricles Pitta - um camaradão às direitas - e com o impagável Calmaria - apelido de Josias Pedro Leite, soldado n. 1 da 1ª Cia. O 1º, pois, do 7º Batalhão. Esses dois ficaram célebres na história das penosas, dos gordurosos e das leiteiras. E um grau acima deles - com todas as honras merecidas - o então cabo de esquadra José Lydio de Castro. Logo depois 3º sargento.

Esta criatura era incansável. Andava sempre. Não parava. E os seus reconhecimentos não falhavam nunca. Ao longe, já se adivinhava que o cabo Lydio não vinha só. Trazia consigo, no mínimo, duas penosas e, às vezes, um cabrito ou um leitão. E ia logo dizendo:

- Comprei isto ali adiante...

Nós aderíamos ao mastigo. E não ignorávamos o preço daquilo tudo. O caipira, coitado, era sempre a vítima... O sargento Aristides de Castro que o diga.

***

Desse modo, com o Renato Pimenta a nos divertir, através as suas anedotas picarescas, e passando magnificamente de boca, sem o menor dispêndio, ficamos três dias em Engenheiro Hermillo. Repousávamos no depósito de carga da Estação. Em vagões da Sorocabana. Sobre um amplo alpendre de zinco.

Digo repousávamos, porque nem todos dormiam. As pulgas nos acompanhavam desde o Quartel do 4º B.C. E não nos deixavam em paz. Entretanto, a maioria ferrava no sono. Havia soldados que, nem com o estampido de um canhão 150, acordavam... Felizardos! Causavam-me inveja. Cyro Lima Glória - mais tarde alcunhado Marechal do Garfo - era um desses bem-aventurados. Guaraná e Jorge Aun eram outros. Cabo Godoy, idem. Edgard de Souza Aranha, também. E quantos e quantos mais, que agora não me recordo, conservavam os olhos placidamente fechados. De papo para o ar. Roncando como a Mogiana. Sonhando que estavam em Santos. Na Praça Rui Barbosa. Assistindo uma cinta no Paramount. Ou sorvento um café na "A Leoneza".

Era gente da "Turma do Amor"... Paciência.

***

De Engenheiro Hermillo à Ligiana a distância é pouca. A locomotiva arrastou-nos até lá, a 1º de agosto. Saltamos curiosos por conhecer a nova posição. Que íamos ocupar. Era uma avançada que fazíamos. E andar para a frente era o nosso maior desejo. Embora sem experimentar a munição que carregávamos.

Como então sucedia. Nossos fuzis estavam virgens. Reservados, porém, para o primeiro entrechoque. Questão, apenas, de oportunidade. Buri, o celebrado Buri estava à nossa espera. E nós lá chegaríamos. Era esse, aliás, o palpite corrente no meio da tropa. Ninguém tinha medo do lance arriscadíssimo. Mas a ordem era para ficar em Ligiana. E ficamos.



A PONTE DE LIGIANA - Vêem-se soldados santistas prontos para fazer fogo. Essa ponte foi destruída, inexplicavelmente, por forças paulistas

A ponte de Ligiana

Pouco além da estação havia uma ponte. Trabalho notável da nossa engenharia. No valor de 800 contos. Atravessando certo trecho do Paranapanema. Havia, disse eu. Já não há. Foi posta abaixo, a dinamite, algum tempo depois. A fim de que o inimigo dela não se utilizasse. Foi uma pena. Teremos nós, os paulistas, de mandar construir outra. Com o nosso rico dinheiro. Gastando quase mil contos de réis.

A destruição da ponte de Ligiana, ordenada, ao que dizem, pelo tenente Adauto, é um caso que não está ainda devidamente esclarecido. Não disponho infelizmente de dados seguros que me autorizem a formular uma acusação. No entretanto, se é verídico o quanto escutei a respeito, teria se precipitado aquele militar, pois as forças adversas, sob o comando supremo do general Valdomiro Castilho de Lima, ainda permaneciam em Faxina. A algumas centenas de quilômetros distantes. E não havia, portanto, a menor necessidade de fazer a ponte voar pelos ares.

Em Buri, que o inimigo ardentemente desejava tomar, tínhamos tropas regulares. Que se batiam com denodo defendendo essa posição. Essencialmente estratégica pela sua configuração topográfica. Buri, então, ainda nos pertencia. Victorino Carmillo era inteiramente nosso. Aracassú, também. Para a retaguarda, tínhamos Ligiana. Depois Engenheiro Hermillo. E depois Itapetininga. Onde estava instalado o Q.G. do coronel Brasílio Taborda, comandante do setor Sul.

Nessas circunstâncias, por que motivos ocultos foi destruída a ponte de Ligiana?...

Para que o leitor se capacite de que esse fato encerra profundo mistério, basta acentuar que Ligiana, até os últimos dias da revolução, nos pertencia. As forças inimigas somente a ocuparam depois de havermos recebido ordem de retirada para Engenheiro Hermillo. Abandonando, portanto, a referida posição. Onde, mais tarde, a 2ª Cia. do 7º, entrincheirada, manteve-se heroicamente, sob contínuos e cerrados tiroteios. Durante quase um mês.

Em face dessa situação, a pergunta continua de pé: - por que razão foi destruída a ponte de Ligiana?

Que nos responda quem puder...


A primeira noite de trincheira

Na noite de 1º de agosto, noite tempestuosa, aliás, alguns soldados do 7º (ainda estavam reunidas as 3 Companhias do nosso Batalhão) foram mandados para as trincheiras. Localizadas, precisamente, junto à ponte de Ligiana. E às margens do Paranapanema.

Era a primeira vez que íamos conhecer, de perto, os encantos de uma permanência de 12 horas dentro de uma vala tão estreita que nos obrigava a ficar em posição insustentável: - arcados, comprimindo o tórax sobre os joelhos.

E, por cima, a chuva, violenta e incessante. Que nos ensopava a todos.

E vento impetuoso. Relâmpagos apavoradores. Uma escuridão horrível. Não se distinguia, à nossa frente, absolutamente nada. Nem o próprio companheiro. Não podíamos trocar palavra. Soldado, à noite, nas trincheiras, não conversa. Muito menos acende fósforos. Poderia, uma coisa ou outra, denunciar a nossa presença ao inimigo.

E este, apesar de se conservar em Buri, batalhando ainda por tomá-lo, bem poderia, de repente, surpreender-nos.

Seguro morreu de velho...

Nossas mantas estavam encharcadas. Capotes não os tínhamos. Panos de barraca existiam, apenas, dois ou três. Que eram insuficientes para todo um pelotão de soldados. E a noite, tétrica, não tinha fim. Parecia eternizar-se...

De duas em duas horas, dois soldados vão para a frente, de fuzil e baioneta calada. Em serviço de sentinela. Toda a vigilância é pouca. Qualquer descuido pode ser fatal. Um se coloca na vanguarda. Atento ao mais leve ruído. Pronto para fazer fogo ao primeiro instante. Outro fica para trás. Com os mesmos deveres. Com igual responsabilidade. Enquanto isso, os que ficaram nas trincheiras descansam. Ou melhor, moem o corpo, tiritantes de frio pela chuva fortíssima que desaba. E que quase os afoga.

Muitos têm água quase à altura dos joelhos. Mas nenhum se ausenta do seu posto de sacrifícios. Seria uma desonra. Uma covardia. E os voluntários santistas são ciosos da sua dignidade. Nada os fará recuar. Estão na luta para sofrer todas as conseqüências. Sejam elas quais forem. Resistem. Com estoicismo admirável. Sem uma só palavra de desagrado. Sem um só gesto de desânimo.

O meu quarto de sentinela (denominam-se quarto as duas horas de serviço) é de 1 às 3 da madrugada. Um dos piores. Sem dúvida. Principalmente aos rigores de um temporal. Que aterrorizava os mais desprendidos. Eu e Eduardo Riskalla vamos para a frente. Deixamos a trincheira com a farda grudada às carnes. Molhados da cabeça aos pés. Enregelados. Levando quedas sobre quedas. Porque o terreno é cheio de buracos. E nós o palmilhamos nas trevas. Pisando em falso. Procurando não fazer bulha. Fuzil seguro na destra. A mão esquerda nos amparando. Para que não nos despenhássemos pelas ribanceiras.

Chegamos próximo à ponte. Para atingi-la, porém, era mister galgar uma encosta escorregadia. Vencemos o obstáculo. Substituímos os dois companheiros que ali nos aguardavam. Eles se foram. Pelo mesmo caminho. Nós ficamos. Eu atravessei a ponte - empresa temerária, dada a sua extensão e a escuridão reinante. E fui colocar-me na frente, em direção de Aracassú. Riskalla conservou-se na retaguarda. Uma hora depois, trocamos de posição. Esperando transcorrerem os cento e vinte minutos de guarda. A nossa impressão era a de que, ao terminar o quarto, estaríamos frigorificados. Porque o frio era deveras cortante. Siberiano.

De momento a momento, um inofensivo vaga-lume, em trânsito pela mata, fugindo à inclemência da chuva, fosforeava à nossa vista.

- Será algum espião inimigo? - perguntava-me a mim mesmo.

E, às vezes, ficava na dúvida. Tinha ímpetos de mandar fazer alto. Para disparar o meu fuzil. Se não fosse atendido. Logo depois, porém, me apercebia do logro. Aquela lanterninha perturbadora não oferecia o menor perigo.

Se os vaga-lumes soubessem os sobressaltos que causam aos soldados em campanha. Deixariam de existir.

***

São 3 horas. Vamos ser rendidos. E somos. Voltamos para a vala. Caindo aqui. Ali. Acolá. Sujos. Cheios de lama. Entro, às apalpadelas, na trincheira. Já quase transformada num Paranapanema-mirim. Esbarro em alguém. Vamos os dois ao chão. Erguemo-nos de súbito. Ouço e reconheço a voz amiga. É Francisco Guaraná Menezes. Rapaz valente. Dezenove anos vigorosos. Nasceu em Sergipe. Residindo no Guarujá, foi o primeiro nortista que dali saiu. Para dar seu sangue moço à causa paulista.

Jogo-me a um canto da trincheira. Espero, resignado, a manhã. Não posso dormir. Às 6 horas temos ordem de recolher. Seguimos, rápidos, para o alpendre da estação. Servem-nos café e bolachas. Estamos famintos. Repetimos o moka. Bolachas, não. E, mesmo molhados, vamos para os vagões de carga. Improvisados em leitos. O cansaço é enorme. Temos esperança de dormir um pouco.

Mas isso não acontece.


Perdidos no mato!

Nessa mesma manhã, 2 de agosto, fomos, quase todo o Batalhão, fazer um avanço. 6 quilômetros. A pé. Mato a dentro. Uma patrulha inimiga - constava - se detinha na crista da montanha. No flanco direito. Urgia que a enfrentássemos. Que a puséssemos em debandada. Caso não conseguíssemos aprisioná-la. Nosso comandante era o 1º tenente Plínio, do Exército. Passamos o dia inteiro subindo e descendo morros. Inutilmente. O inimigo andava longe.

À tarde, tentamos regressar para Ligiana. Aí, começou a nossa odisséia. Aquele oficial perdera o rumo certo do caminho. Ora mandava-nos seguir para cá. Ora para lá. Depois para a esquerda. Logo depois para a direita. E nada de encontrarmos norte. A noite surpreendeu-nos. Cansadíssimos... Como fome. Com sede. No desespero tantálico dos que se perdem. E que não sabem se marcham atraiçoados, para a morte inglória. Na guerra tudo é possível. Difícil, apenas, a lealdade. A nossa impressão era horrível. Estaríamos sendo vítimas de uma emboscada?

Nessa marcha esfalfante, capaz de abater e desorientar os mais bravos, os mais audazes, gastamos cerca de 30 quilômetros. Sem vantagem alguma. Com prejuízos evidentes...

Por fim, o acaso conduziu-nos para a casa da Turma 14 - residência de operários da Conservação da Estrada Sorocabana. Antes, porém, de lá chegarmos, estivemos na iminência de fazer fogo contra nossos próprios companheiros do Batalhão.

Se Deus não velasse por nós todos, eu não publicaria este livro. Talvez poucos soldados do 7º estivessem vivos. Para contar a tristíssima história dessa noite inesquecível. Foi o caso que, quando nos aproximávamos, ignorando para onde íamos, vimos luzes ao longe.

- É o inimigo! - exclamamos, unânimes.

E, ato contínuo, nos colocamos em posição de atirar. Mas, ainda a tempo, tudo foi evitado.

A grande desgraça não se consumou. Nossa Senhora do Monte Serrat nos protegera. Senão, a catástrofe seria inevitável.

***

Em capítulo anterior, eu afirmei que quase sempre nos faltou um comando capaz de corresponder às necessidades militares da tropa. Repito o que disse. Esse drama que aí fica ligeiramente narrado é uma prova robusta de que estou com a razão e a verdade. Outros fatos o leitor vai conhecer. Fatos que justificam, plenamente, a minha atitude. Dizendo o que sinto. Com desassombro. Fira a quem ferir.


Para Aracassú

Passamos a noite de 2 na Turma 14. Ao relento. Debaixo de chuva. Sem almoço. Sem jantar. Apenas um mísero café no estômago. Eu. Olivério Pilar Antunes. Francisco Guaraná Menezes. Ficamos, os três, numa poça d'água.

Solidários na desventura. Paulistas como sempre. Sem reclamar. Embora tanta impiedade nos revoltasse.

Pois apesar disso, a 3, pela manha, entrávamos em forma. A fim de seguirmos para Aracassú. Viagem longa. Estafante. E a pé!

***

Eu fui um soldado disciplinadíssimo. Sem uma falta. Sem um deslize. Provo-o a quem duvidar. Mas esses sacrifícios, que a leviandade ou ignorância do comando da 1ª Cia. nos impunha, indignavam-me. Porque sofríamos sem o mais remoto benefício para a causa que S. Paulo havia confiado à nossa coragem. No campo raso da luta armada. Onde não pisam os poltrões. Civis ou fardados. Politiqueiros profissionais ou oficiais do P.C. (N.E.: Pelotão de Comando). Onde só vão os bravos.

Que têm um ideal honesto. E brio para o defender. De fuzil em punho.

***

Em Aracassú, descansamos dois dias. O da chegada. E o seguinte. Descansamos não é bem o vocábulo que exprima a realidade. Porque ali demos serviço. Eu dei. Outros também. Mas padecemos menos. Tivemos rancho farto. E bom. Umas tábuas, dentro de casa, para repousar a carcaça. Ficamos alegres. Satisfeitos. Era tão fácil contentar o soldado santista...

Na noite de 4, entretanto, pouco pudemos dormir. Até bem tarde, no nosso alojamento, diversos voluntários, tendo como chefe o popular Tosca, improvisaram um desafio ao violão. Foi uma tocata e uma cantoria dos infernos. Não deram tréguas à garganta. Nem aos dedos. O pinho passava de mão em mão. Os versos, pensados de repente, não acabavam mais. E nós aborrecidíssimos com o barulho. Pedíamos silêncio. Era pior. O furor poético daquela gente redobrava. Ainda me recordo do terceto que foi mais de mil vezes repetido.

Era o Tosca, com a sua voz volumosa, quem insistia:

A mulher do vendeiro
Apanhou bofetada
Por ser malcriada.

E, a seguir, lá vinha o estribilho maçante. Que ele moía e remoía:

Na venda!
Na venda!

Gargalhadas explodiam. Aplaudindo o cantor. Palmas reboavam pelo alojamento.


O APERTO DO ZÉ PUPO...

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