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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Produções de José Bonifácio (2)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda - (volume III, páginas 347 a 409), com ortografia atualizada e abolidas as abreviaturas que tornavam hermético o texto de José Bonifácio: 
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TERCEIRA PARTE - PRODUÇÕES INTELECTUAIS DE JOSÉ BONIFÁCIO

Capítulo II - Trabalhos científicos e filosóficos

[...]


O Périplo

de Hannon

 

Texto grego

Com a tradução de José Bonifácio, comentada por Felix Pacheco

I

Texto original, que é raríssimo hoje em dia:

Imagem publicada na página 349 do volume III de Os Andradas

II

Tradução portuguesa de José Bonifácio:

PREFAÇÃO

Vou dar ao público uma tradução do Périplo de Hannon, acompanhada de comentários, por ser um monumento preciosíssimo da antiga Geografia e das viagens e descobrimentos dos cartagineses. É o Périplo um roteiro da navegação de Hannon ao longo das costas d'África ocidental, cuja expedição tivera por fim estabelecer primeiramente colônias líbio-fenícias em certo espaço da costa, e depois prosseguir à navegação de descobrimento ao longo dela, o mais que se pudesse chegar.

Há anos que, na Alemanha, tinha traduzido em português o Périplo e começado a estudá-lo, refletindo sobre esta antigualha por ser a Geografia antiga um dos meus estudos prediletos.

Demais a ilustração do Périplo não só me merecia atenção como objeto de geografia e navegação, mas também como subsídio para o estudo das antiguidades míticas da Ibéria (N.E.: região européia correspondente aos territórios dos atuais Portugal e Espanha) e Líbia ocidentais, em que há tempos trabalho. Tinha perdido de vista este objeto, por falta de tempo, e de outras tarefas que trazia entre mãos; mas uma Memória sobre o Périplo, que deu à Academia o sr. Antonio Ribeiro dos Santos e logo depois uma tradução que publicou no Jornal de Coimbra, nº 21, um dos nossos melhores helenistas e filólogos, homem muito douto, despertaram em mim novos desejos de continuar nesta empresa. Sairia ela a público mais alinhada e completa, se me não faltassem conhecimentos mais profundos da língua grega, e, mormente, se os meus dias gastos em mil negócios enfadonhos de administração pública me deixassem mais momentos livres, para me empregar nestes ramos da Literatura, hoje pouco cultivados entre nós.

Muitas das minhas notas serão empregadas em combater os paradoxos de mr. Gosselin, a quem não posso negar grandes conhecimentos na Geografia antiga, ainda que muitas vezes os ofusque e inutilize pela paixão desmedida que nele sinto de se singularizar dos autores seus mestres e predecessores. E tanto mais julguei ser isto de minha obrigação quanto os meus naturais se dão pela mor parte à lição dos livros franceses em que muitos crêem como num Evangelho.

Adotei na presente tradução, quanto me foi possível, a do helenista português, por ser muito fiel e exata, e só dela me apartei quando o texto original assim o exigia ou a melhor inteligência do assunto, por isso em alguns lugares segui outra pontuação e em dois adotei diferente lição proposta por hábeis comentadores, porque assim me pareceu que exigiam as leis da crítica e a pureza do texto.

Título Périplo [A]
  ou
  Navegação [B] de Hannon, rei dos cartagineses, ao longo das regiões da Líbia, além das colunas de Hercules, que consagrou no templo de Saturno, e contém o seguinte.
  Aprouve [C] aos cartagineses que Hannon navegasse fora das Colunas de Hércules [D] e fundasse cidades de libifenícios [E].
  Navegou, pois, levando em sua conserva sessenta navios de 50 remos (pentecontórios) em que iam embarcados muitos homens e mulheres, trinta mil em número [F], com víveres e todo o mais abastecimento.
Roteiro da 1ª viagem I Logo que fazendo-nos ao mar passamos as Colunas, e navegamos dois dias fora delas, fundamos a primeira cidade, a que demos o nome de Thymiaterion; porque lhe ficava sotoposta uma grande planície.
  II Daí saindo ao mar, dirigimo-nos para o Poente; e chegamos a Soloeis [G], cabo da Líbia coberto de arvoredo emaranhado; erigindo aí um santuário a Netuno [H].
  III Outra vez saímos (ao mar) subindo para o Nascente meio dia de viagem; e fomos levados a uma lagoa não longe do mar, cheia de muitos e altos caniços; havia aí elefantes, e muitas outras alimárias, que pastavam [I].
  IV Deixando a lagoa quando monta um dia de viagem, fundamos cidades na costa do mar, chamadas Karicon Tichos, e Gythe, e Acra, e Melitta, e Arambys.
  V Surdindo dali, fomos ter a um rio grande, chamado Lixos [J], que vem da Líbia [K]; junto a ele apascentavam seus gados os lixitas, pastores errantes, com quem, travada amizade, ficamos algum tempo. Acima destes moravam etíopes inóspitos que habitam uma terra cheia de animais, e retalhada de grandes montes, donde dizem que nasce o Lixos. Por estes montes moravam trogloditas, homens de figura estranha [L], os quais, segundo contavam os lixitas, eram mais ligeiros que cavalos na carreira.
  VI Tomando línguas (N.E.: tradutores) dentre os lixitas, costeamos no rumo do Sul o deserto por dois dias de viagem; daí navegamos para o Nascente um dia e fomos dar ao interior de uma enseada com uma ilhota de 5 estádios (N.E.: medida itinerária grega correspondente a 125 passos) de circuito, que povoamos, dando-lhe o nome de Cerne [M]. E segundo a circunavegação que fizemos, concluímos que esta ilha e Cartago ficavam eqüidistantes e em direitura [N]; pois era a viagem de Cartago (N.E.: antiga cidade situada na costa da Tunísia, dentro da atual capital Túnis) até as colunas igual à das colunas até Cerne.
  VII Daí saímos e viemos ter a uma lagoa, depois de entrar pela foz de um grande rio por nome Chretes [O]; tinha esta lagoa (ou baía) três ilhas maiores que Cerne; das quais em um dia de viagem chegamos ao interior da lagoa, sobre a qual ficavam sobranceiros grandíssimos montes, com homens selváticos, cobertos de peles de alimárias, os quais, ferindo-nos com pedradas, se opuseram a que desembarcássemos em terra.
  VIII Daí continuando a nossa derrota chegamos a outro rio grande e largo, cheio de crocodilos e hipopótamos; donde fizemos volta par Cerne.
Roteiro da 2ª viagem ou continuação da primeira I Daí navegamos de novo à vista de terra para o Sul, 12 dias; era esta terra habitada por etíopes, que de nós fugiam, e não nos aguardavam. Falavam uma linguagem ininteligível aos mesmos lixitas, que conosco estavam. No último dia (dos 12) aportamos a montes grandes e cobertos de arvoredo, cujas madeiras eram recendentes e de várias cores.
  II Gastamos dois dias em rodear; e fomos dar a um boqueirão de mar desmedido; em ambos os lados do qual havia uma planície, onde víamos de noite arderem fogos, maiores ou menores, em certa distância uns dos outros.
  III Tendo feito aguada, navegamos avante cinco dias, à vista de terra, até chegarmos a um grande golfão, que os nossos línguas disseram se chamar Corno do Poente (Heperu-Keras) [P]. Nele havia uma grande ilha, e na ilha uma lagoa de mar, e nesta outra ilha.
  IV Tendo aí aportado, de dia não vimos senão bosques, de noite porém muitos fogos acesos; e ouvimos toques de flautas, e estrondo de címbalos e tímpanos, e inumeráveis alaridos. Tomamo-nos pois de medo; e mandando os Adivinhos que largássemos da Ilha, presto desaferramos, e costeamos a região abrasada dos Thymiamatas; da qual se arrojavam ao mar bastas torrentes de fogo; e por causa do calor não consentia a terra ser pisada.
  V Também desta costa bem depressa saímos, cheios de pavor e havendo navegado quatro dias víamos de noite a terra cheia de chamas; no meio se mostrava um altíssimo fogo, que parecia tocar as estrelas; de dia porém aparecia ali um grandíssimo monte, chamado Carro dos Deuses (Thêon Ochema) [Q]
  VI Daí com três dias de navegação, havendo transposto as torrentes de fogo, viemos ter a um golfão, chamado Corno do Sul (Notu-Keras) [R], em cujo seio havia uma ilha, semelhante à primeira (já mencionada) com uma lagoa igualmente, e na mesma outra ilha muito povoada de homens silvestres; era porém muito maior o número das mulheres, de corpo peludo, a quem os línguas chamavam gorilas.
  VII Indo nós em seu alcance, não podemos haver à mão homem nenhum; pois fugiam todos, afeitos a trepar por fragas e precipícios; e se defendiam às pedradas; apanhamos porém três mulheres, que mordendo e arranhando muito os condutores os não queriam seguir; matamo-las pois, e esfoladas trouxemos as peles para Cartago. E não prosseguimos avante nossa navegação porque nos faltaram os víveres.

III

Introdução

De que Felix Pacheco precede substanciosamente as suas notas:

"A tous ces hommes obscurs ou illustres, à tous ceux qui ont bravé les flots, ou franchi les déserts, à tous ceux qui ont dit: en avant! à tous ceux qui pour nous ont ait la terre plus grande, nous devons un souvenir. Tard venus sur cette terre, grâce à eux nous en connaissons le mille détours et l'infini détail; et s'il reste encore, çá et là, sur nos cartes quelques taches blanches avec cette inscription - terre inconnue - terra incognita - s'il y a encore des pays à explorer ou à mieux décrire, nous savons du moins que la tache sera un jour remplie e que les vaillants ne manqueront jamais." [1]

Chateaubriand, em sua obra - Essai sur les révolutions - compara a Fenícia, no seu período Tírio, com a Holanda, e Cartago com a Inglaterra.

Afigura-se-nos mais acertado, para os efeitos de uma comparação, reunir em um mesmo grupo fenícios e cartagineses; e, considerados somente as viagens e descobrimentos que fizeram, desprezando todas as outras similitudes de ordem e caráter diverso, principalmente político, comparar com maior justeza os navegantes daqueles povos aos marinheiros da antiga Lusitânia.

Julga o eminente literato francês que Cartago foi "elevée à l'empire des mers et à traite du monde entier sur les débris du commerce de Tyr, comme l'Angleterre de nos jours sur les ruines de celui de la Hollande."

Falando ainda de Cartago, diz mais:

"J'ai souvent considéré les similitudes des mœurs et de génie qui se trouvent entre les anciens souverains des mers et les maitres de l'Ocean d'aujourd'hui. Ils se ressemblent et par leurs constitutions politiques, et par leur ésprit à la fois commerçant et guerrier" [2].

Compara depois, estapafurdiamente, o Périplo de Hannon com as viagens de Cook [3]. O paralelo que o autor do Ensaio estabelece entre a Fenícia e a Holanda, entre Cartago e a Inglaterra, é tão forçado e falso sob o ponto de vista histórico, como o que estabelece entre a Pérsia e a Alemanha.

Parece que a nossa comparação é mais racional e está mais de acordo com a verdade da História.

O velho e lendário Portugal pode, por muitas razões, ser denominado a Nova Fenícia ou Fenícia do Ocidente. Há, de fato, entre o reino do glorioso infante d. Henrique e o de Hiram III, afinidades históricas muito pronunciadas. Essas afinidades vão mesmo além: um e outro são, respectivamente, na Europa e na Ásia, pequenas faixas de terreno [4], à beira-mar, de configuração análoga. Fenícios e portugueses sentiram, mais do que quaisquer outros povos, uma irresistível atração para o mistério do pélago marulhoso e traidor.

Sagres, em frente ao Atlântico, perscrutando as ondas que os nautas do infante deviam conquistar, lembra Sidon, Tiro e Cartago, a cujos pés, como escravas submissas e humildes, se rojavam as ondas do Internum Mare, que os seus pentecontórios velozes percorriam de extremo a extremo e cujos arrecifes e meandros eram familiares aos seus experimentados e atrevidos marujos.

Na história das navegações os fenícios representam a primeira página; portugueses e espanhóis a eles se ligam como elos de uma mesma corrente, Gerlache e Nansen, modernamente, em um e em outro pólo, nada mais fizeram do que tentar ultimar a série de empreendimentos que nos foram revelando o Mundo em que vivemos.

Na história dos referidos empreendimentos, os marinheiros da Fenícia ocupam o primeiro lugar pela ordem cronológica. Foram as suas triremes frágeis que, tendo por bússola apenas a Estrela Polar, aumentaram o palco da civilização antiga, tornando conhecida toda a região banhada pelo Mediterrâneo.

O Portugal do tempo de d. Henrique e d. Manuel foi uma Nova Fenícia, que floresceu no Ocidente, concentrando no mar todas as suas energias, mandando para longe as suas frotas, animados os seus nautas do mesmo amor dos descobrimentos e da mesma febre das conquistas.

A História diz, com muito fundamento, que os navegantes de Sidon e Tiro chegaram a transpor o estreito de Gadés, e, fora das Colunas de Hércules, em pleno Atlântico, conseguiram alcançar, no Norte, as Cassiteridas (N.E.: lugar incerto, talvez ilhas no Norte da Espanha ou a Cornualha, na Inglaterra), onde iam buscar o estanho, e, no Sul, talvez, as costas de Serra Leoa, ou mesmo as da Guiné Setentrional.

Portugal, pois, com as expedições precedentes à do Gama e à de Cabral, sulcou uma parte do Atlântico já atravessada outrora pelos fenícios, descobriu terras que já tinham sido pisadas séculos antes por aqueles cuja missão histórica o referido Portugal viera por assim dizer continuar.

Note-se que não nos firmamos em lendas: relutamos em aceitar - a despeito dos comentários de Heeren - o Périplo de Necháo [5]. e não aceitamos a Atlântida de Platão [6], e tantas outras ficções geográficas dos antigos.

As navegações dos portugueses tiveram outro alcance social, é certo; e isto basta para que as glórias, que delas resultaram, não desmereçam; está, porém, no interesse histórico da Geografia saber até que ponto os marinheiros da Fenícia se anteciparam aos da Lusitânia.

Falando de navegadores fenícios, abrangemos na denominação os de Cartago. Cartago é, historicamente falando, um desdobramento da Fenícia. Duas lendas existem sobre a fundação da pátria do valoroso Aníbal, narradas uma por Justino e outra por Virgílio, na sua Eneida. Embora algum tanto diferentes, essas lendas giram ambas em torno do nome de uma rainha - Elissa - a mesma formosa Dido referida no poema. Quer Justino [7], quer Virgílio [8], apóiam a nossa afirmativa de que Cartago era um desdobramento da Fenícia.

Alfred Church, em sua notável obra sobre Cartago, analisa e compara as duas lendas. Ouçamo-lo:

"Y have said that it was a bold change by which. Virgil sought to chape the legend of Elissa or Dido to suit the purpose of his own poem. Bold indeed it was, for he brings together in the Queen of Carthage and the Hero of Troy, persons who must have been separated from each other in time by more than two hundred years. Ascanius, he tells us himself in the Æneid, was to found Alba, and at Alba the kingdom should remain for three hundred years, till the priestess of Vesta should bear a son to Mars, who should found the great city of Rome. There must therefore have been more than three hundred years between the coming of Æneas into Italy and the founding of Rome. If we are to follow Justin, from whom I have Rome. But, on the other hand, it was commonly agreed that Carthage was not a hundred than taken the legend told in the first chapter, its foundation may be put in the year 850; but it must not be supposed that this date is a certain as that of the Declaration of American Independence, or that of the Battle of Waterlloo".

Adote o leitor a opinião que o seu critério lhe sugerir: nem por isso negará que Cartago seja, historicamente falando, um desdobramento da Fenícia.

"The legend - diz ainda o erudito Church - tells us that the first founders of Carthage came from Tyre. Very likely this is true; it is certain thati they belonged to he nation of which Tyre was the chief city, the Phœnicians.".

Cartago não foi apenas, como muitos supõem, uma nação guerreira:

"Mais les habitants des terres puniques se distinguoient surtout par leur génie commerçant. Déjà ils avoint jeté des colonies en Espagne, en Sicile, le long des côtes du continent de l'Afrique, dont ils osèrent mésurer la vaste circonference, déjà ils s'étoient aventurés jusqu'au fond des mers dangereuses des Gaules et des iles Cassitérides" [9].

"The Story of Carthage is mainly a story of war. Of the people themselves and of their life we hear very little indeed, and that little either from enemies or strangers. But there are some exceptions, and of them the most interesting is the account of the voyage of colonisation and discoveries made by Hanno, an account which has been preserved; not indeed in his own language, for of the Carthaginian tongue we have but a few words remaining, but in a Greek translation" [10].

A viagem de Hannon foi o assunto escolhido para o trabalho histórico com que concorremos à comemoração do 4º centenário do grande feito marítimo do nobre Senhor de Belmonte.

Antonio Ribeiro dos Santos leu perante a Academia Real de Ciências de Lisboa, da qual era sócio, um trabalho que nunca foi publicado, contendo a tradução e a análise do Périplo.

Outra tradução foi publicada com o texto grego, introdução e notas, em 1813, no Jornal de Coimbra, por um anônimo.

A terceira tradução é da lavra do nosso imortal José Bonifácio: está inteiramente inédita e desconhecida.

Antonio Ribeiro dos Santos é um erudito de grande nomeada. Innocencio da Silva, em seu Diccionario Bibliographico, publica o extensíssimo catálogo das obras do notável português, quer as que escreveu em nossa língua, quer as que redigiu em latim, impressas ou manuscritas. Na relação destas últimas, sob o número 1381, está registrado: Traducção e illustração do Periplo de Hannon, cotejado com as viagens do Infante D. Henrique.

Depois de citar outras memórias manuscritas de Ribeiro dos Santos, diz o respeitável bibliógrafo:

"Todas as referidas memórias foram pelo autor oferecidas, em diversos tempos, à Academia Real das Ciências, para se imprimirem nas suas coleções, o que porém não chegou a realizar-se. Deveriam portanto existir no Arquivo da mesma Academia, ou entre os manuscritos de sua biblioteca; mas não posso assegurar que assim seja, por não ter tido ocasião de fazer as convenientes indagações".

Entre os papéis de José Bonifácio, aos quais adiante largamente nos referiremos, encontramos um pequeno caderno manuscrito, com o seguinte título:

"Analyse do Periplo de Hannon - porque se mostra ter sido a sua Navegação e Descobrimento muito menor que o dos Portuguezes nos tempos do Infante D. Henrique - Pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Sanctos".

Como se vê, este título é diferente do que se lê no Diccionario de Innocencio. sabendo-se que José Bonifácio fez parte da Academia e nela desempenhou funções importantes, não se hesitará em dar como original e não como cópia o manuscrito existente em nossa Biblioteca. Se não proferimos, em tom decisivo, tal afirmativa, é porque não conhecemos a letra do autor.

Em setembro de 1813, no número XXI do Jornal de Coimbra (aliás impresso em Lisboa, como afirma Innocencio), foi publicado o Périplo, com uma introdução, o texto grego, a versão portuguesa e notas ilustrativas ou comentários, trazendo o seguinte título:

"Periplo ou Circumnavegação de Hannon, trasladado de grego em lingoagem por *****"

Esforçamo-nos por saber quem era o modesto anônimo. Revolvendo os manuscritos de José Bonifácio, adiante citados, encontramos um fragmento de carta, sem o começo e também sem o final, e por conseguinte sem a assinatura. Lendo este fragmento, verificamos que a carta era do próprio punho do autor do trabalho publicado no Jornal de Coimbra. José Bonifácio sujeitara a sua tradução ao critério daquela pessoa, cujo nome ignorávamos. Continuando a manusear aqueles manuscritos de José Bonifácio, os quais em tempo serão referidos, encontramos entre eles o número do Jornal de Coimbra, em que fora publicado o trabalho do anônimo. Cotejando este trabalho com o retrocitado fragmento de carta, verificamos serem ambos da mesma pessoa e tiramos a conclusão já externada. Mas isso nos não bastava.

Continuando a nossa pesquisa entre aquela mole informe de inéditos do Patriarca, ficamos sabendo que a tradução anônima era de um dos "melhores helenistas e filólogos" de seu tempo, "homem muito douto". Isso não nos bastava ainda. Prosseguimos na investigação e entre notas resumidas sobre as diferentes traduções do Périplo encontramos o nome de Th. Barbosa, como sendo o autor de uma versão portuguesa que José Bonifácio reputava "boa". Recorremos ao douto Innocencio da Silva, e lá encontramos as seguintes linhas que nos deixam em dúvida sobre se Th. Barbosa era português ou brasileiro:

"Thomé Barbosa de Figueiredo Almeida Cardozo - Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. - Ignoro a sua naturalidade e nascimento, bem como a data precisa do óbito, que se não me engano ocorreu entre os anos de 1820 e 1822. À vista do assento respectivo, que deverá existir na igreja paroquial de Santa Catharina [11], em cujo distrito residiu [12], fácil seria porventura aclarar estes pontos, porém faltou-me até agora a possibilidade de entrar nesta como em outras muitas indagações do mesmo gênero, já por escassez de tempo, já porque não tendo tido à minha disposição o auxílio oficial de que necessitara e que a outros se facilita [13] só poderia supri-lo à custa de despesas para mim incomportáveis! [14] Balbi no Essai Statistique tom. II pág. CXXIX fala de Thomé Barbosa, como de um homem que sabia perfeitamente as línguas grega, latina, francesa, italiana, espanhola, inglesa, dinamarquesa, sueca, alemã, holandesa, turca, árabe [15]; e (o que é mais) que igualmente conhecia a literatura da maior parte destas línguas [16]! Mas de tão vastos conhecimentos lingüísticos e filológicos restam apenas como documentos impressos as seguintes produções, e essas publicadas anônimas nas páginas já pouco lidas de um antigo jornal; de sorte que, ao cabo de mais alguns anos, perder-se-ia talvez de todo a memória e o nome do seu autor, que a minha diligência descobrira, se não tomasse o cuidado de aqui o resgistrar: 231) Periplo ou Circumnavegação de Hannon, transladada do grego, e annotada - Acha-se no Jornal de Coimbra, vol. V, a pág. 65 e seguintes. - 232) Resumo historico dos principaes portuguezes que no seculo decimo-sexto compuzerão em latim - Artigo publicado no mesmo jornal, vol. VI, de pág. 84 a 104. Nele se encontram algumas particularidades curiosas, próprias do assunto. Pode bem ser que neste jornal ou em outra parte existam impressos mais alguns trabalhos de Thomé Barbosa. Se alguém acaso os conhecer, e quiser transmitir-me os necessários esclarecimentos, aproveitarei com gosto essa notícia, para dar-lhes ainda lugar no Supplemento".

Há ainda um autor, cuja tradução se perdeu; dele nos dá notícia a segunda nota que vem na introdução do trabalho de Thomé Barbosa. Eis a nota:

"Assim o podemos dizer em verdade; pois conquanto sabemos que um piloto do nosso anônimo no meado do século sexto-décimo fez deste Périplo uma tradução em português, referida por João Baptista Ramusio na coleção das viagens que publicou, não nos consta contudo que hoje em dia ela exista impressa, ou que jamais existisse deste modo".

Ribeiro dos Santos e Thomé Barbosa (seja este último filho de Portugal ou do Brasil - que eram então partes de um mesmo todo), traduzindo e comentando o Périplo de Hannon, foram inspirados por desmedido, embora justificável, orgulho cívico. E se não, vejamos.

O trabalho de Antonio Ribeiro dos Santos, que existe em manuscrito (original, cópia talvez) na Biblioteca Nacional, entre os papéis de José Bonifácio ainda não classificados, aos quais nos referiremos adiante, tem, como já dissemos, por título as seguintes palavras:

"Analyse do Periplo de Hannon - Porque se mostra ter sido a sua Navegação e Descobrimento muito menor que o dos Portuguezes nos tempos do Infante D. Henrique. - Pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Sanctos".

Veja-se agora o exórdio do referido trabalho:

"Analise & - Em nossas Memórias sobre alguns Matemáticos, que floresceram nestes Reinos e Conquistas, dissemos que o descobrimento de novas terras e mares da Costa d'África, que mandou fazer o infante d. Henrique, fora mais longe, que o outro de Hannon; e porque pode haver quem ponha isto em dúvida, julgando porventura que a viagem do capitão cartaginês, por várias que são as opiniões ou conjecturas de alguns críticos sábios, que têm interpretado e ilustrado o seu Périplo, foi maior e mais extensa, que a nossa debaixo das ordens do Infante, ou pelo menos igual, será muito a propósito, e de honra para ele e para nós, demonstrar pela análise do mesmo Périplo até onde se estendeu a navegação cartaginesa, para que cotejada com a nossa, melhor se veja quanto esta 2ª sobre-excedeu à primeira".

Leiam-se agora os capítulos IV e VI do trabalho do sr. Ribeiro dos Santos:

"Cap. IV - Diversas interpretações sobre o curso e termo da viagem de Hannon. - Os escritores que particularmente interpretaram o Périplo de Hannon, ou dele falaram em suas obras, e os geógrafos em geral, variam notavelmente em sus opiniões acerca dos limites desta antiga navegação dos cartagineses, o que os põem com mais estreiteza é o moderno e douto Gosselin, membro da Academia das Inscripções e Bellas Letras, e do Instituto Nacional de França, o qual no Tomo 1º das Indagações sobre a Geographia Systematica e Positiva dos Antigos, que já citamos, lhe não dá mais extensão, que até o Cabo de Nam. Outros conduzem aquela frota a Sanagá, e até Cabo Verde, como foram o nosso Cordeiro na sua Historia Insulana, o qual julgou que Hannon chegara a avistar aquele cabo, e mr. Francheville que também ali o leva na sua Dissertação da Navegação dos Paveis no Tom. 17, das Memorias da Academia de Berlim.

"Alguns adiantarão mais o seu curso, crendo que ele entestara com a Serra Leoa, e tais foram Luiz Marmol Carvajal, autor clássico na história das coisas d'África, o nosso Damião de Goes, que ainda o leva mais adiante daquela serra na sua Historia do Sr. Rei D. Joao 2º sendo Principe, e mr. Bougainville, que na sua Memoria sobre os descobrimentos de Hannon no Tom. 26 da Collecção da Academia das Inscripções e Bellas Letras p. 10 entende que pelo menos chegou a Serra Leoa.

"O Cabo de Santa Anna, ou Cabo das Palmas no Golfo de Guiné, foi outro termo que se assinalou a esta navegação; e é esta a própria opinião, para que mais inclina o mesmo Bougainville. Mais adiante foram outros, que a estenderam ao Cabo das Tres-Pontes, 5 graus ao Norte da Linha sendo um deles mr. Court de Gebelin no Tomo Iº das suas Dissertações, que é o 8º do Mundo Primitivo no Ensayo sobre a Historia Oriental. Art. 5º § 8. p. 49.

"Houve quem a lançasse ainda para mais longe fazendo-a passar a equinocial às Ilhas de S. Thomé, e alargando-a até o Cabo Lopo, onde acaba o Reino de Gabão, e começa o de Guiné; e foi deste parecer o erudito espanhol Campomanes na ilustração do Périplo, que vem nas suas antiguidades marítimas da República de Cartago. Alguns finalmente não duvidarão de prolongar aquela carreira marítima ao Cabo da Boa Esperança, e ainda até o golfo do mar Roxo, que assim fizeram Florião de Ocampo na crônica de Espanha, Bochart no Chanaan Livro 1º c. 37, e João Alberto Fabricio na sua Bibliographia Antiquaria; o que também foi parecer do nosso Antonio Galvão no Tratado dos Descobrimentos p. M. Tanta e tão notável tem sido a variedade das opiniões dos Sábios nesta matéria! Qual de todas elas adotamos como a mais provável, ver-se-á agora na Illustração que fazemos deste Périplo, sem a qual não podemos formar juízo dos verdadeiros limites daquela antiga navegação, e da vantagem que muito a excedeu a que mandou fazer o nosso infante d. Henrique, que é o fim principal a que nós a dirigimos (a) [17]".

"Cap. VI - Resultados da Expedição e Ilustração do Périplo e das mais circunstâncias daquela navegação - Combinando pois por este modo o Périplo, e as circunstâncias desta viagem, acharmos por último resultado que o almirante cartaginês não passou do Cabo de Nam, que foi o que depois ficou sendo o limite, que os navegantes de Espanha puseram à navegação daquelas partes, e que em lugar de se dar àquela viagem 500 léguas marítimas, como outros lhe deram, ela somente se deve reduzir a obra de 214 léguas: opinião que tínhamos em tempos passados, quando lemos e combinamos o Périplo, e em que nos confirmamos depois com maior firmeza, quando vimos que ela é a mesma do moderno e erudito escritor Gossellin nas suas Indagações sobre a Geographia Systematica e positiva dos Antigos.

"Verdadeiramente a carreira de Hannon havia de ser de necessidade vagarosa, e inferior à de um navegante, que só tivesse de seguir uma rota livre e conhecida; porquanto ele ia ao longo de uma costa que ignorava, ou de que não tinha senão notícias incertas, ou imperfeitas; levava uma frota considerável de bons navios, que o obrigou a ir sempre em sua conserva, e tinha de reconhecer todas as abras, portos, sítios e lugares, que se lhe ofereciam na sua carreira; não só para haver notícia deles, mas também para observar aonde mais conviria estabelecer suas novas colônias ou feitorias.

"Depois disto o estado de imperfeição em que ainda então estava a Marinha, e os perigos que ele tinha de temer, de necessidade o obrigariam a não se adiantar se não com grandes precauções por evitar a sua perda, e tudo isto concorreria para que a sua viagem fosse vagarosa e lenta. Donde não era possível que em tais circunstâncias pudesse avançar tão longe, como se pretende, em tão pouco tempo.

"Além disto, convém considerar os grandes obstáculos que teriam que vencer, e que só se poderiam superar por navegação de muitos dias; quais seriam os que Hannon acharia navegando ao longo de uma costa tão sujeita, como é a ocidental de África, aos ventos que ali sopram quase sempre do Oeste, e à fúria e braveza dos mares, que por ali quebram com fragor e violência. E em verdade quanto não era preciso para os cartagineses passarem o Cabo Bojador, que boja para o Oeste perto de 40 léguas? Quanto ele os não faria apartar do rumo que levavam de Levante a Poente, para salvarem os perigos de um mar aparcelado, e da restinga do resto do mesmo cabo, que corre para o mesmo rumo obra de 6 léguas; vencerem as águas, que ali correm impetuosas, e salvarem os baixos e bancos de areia, que os movem de tal sorte, que parecem saltar e ferver?

"Como não seria esta passagem difícil aos cartagineses, se ela foi tão temerosa aos nossos, que por muitos tempos, e por muito valentes capitães se não ousou cometer, desesperando todos de poder dobrar o cabo? Como montaria Hannon em tão pouco tempo, e até sem fazer menção no seu Périplo daquela dificuldade, quando os nossos só nesta passagem gastaram 12 anos de tentativa com imensos trabalhos e despesas, quando a ação de Gil Eanes, que por fim se animou a abandonar a costa, cortar ao largo, e dobrar aquele promontório, foi tamanho espanto e maravilha a todos, que houveram a façanha por igual a um dos grandes trabalhos de Hércules (b) [18].

"Que diremos dos obstáculos na passagem do Cabo Branco, do Cabo Verde, no meio dos arrecifes e dos inumeráveis escolhos, de que a costa está semeada no GOlfo de Guiné, desde o rio de Gâmbia até o Cabo de Santa Anna? Nem por certo era menos difícil de navegar em tão pouco tempo o que corre desde Cabo Verde até o Cabo da Boa Esperança; porque esta costa é mais desigual, mais longa, e muito cortada das correntes, exposta à impetuosidade dos ventos, e à violência das vagas; e o cabo muito escarpado, e cheio de baixos, e mui fragoso de dobrar, o que tudo embaraçava muito a navegação. Depois de todas estas reflexões, bem se vê que a navegação cartaginesa, sendo única, e pela primeira vez, e ao acaso, não é verossímil que pudesse fazer o costeamento de todas aquelas costas e mares no período de tão poucos dias.

"A nada disto atendeu Bougainville, e menos Campomanes, nem nenhum dos outros, segundo bem adverte Gossellin; como o navegador cartaginês não indicou os cursos, ou as longitudes respectivas, se não por dias de navegação, entenderam arbitrariamente as distâncias que ele correu em cada dia, sem se lembrarem da inverossimilhança, que podia resultar da sua avaliação; assim, por exemplo, Bougainville conduz em 2 dias a frota cartaginesa do Cabo de Espartel, ao Cabo Cantin, promontórios distantes um do outro mais de 90 léguas marítimas de 20 ao grau; de maneira que ela teria feito além de 45 léguas por dia; e com tudo os antigos por uma jornada de navegação não entendiam senão 12 horas de marcha.

"Ele faz passar a frota em 3 dias o intervalo compreendido entre o Cabo Cantin e o Cabo Bojador, distante um do outro 185 léguas; donde a frota inteira teria feito por dia quase... léguas que corresponde a uma rota de 124 em 24 horas.

"Se fossem possíveis semelhantes carreiras, diz com razão Gossellin, forçoso era assentar que a presteza e velocidade dos vasos modernos estava muito longe de se comparar com a dos antigos: a marcha ordinária dos nossos computa-se pouco mais ou menos em 30, ou 35 léguas em 24 horas; e se alguma embarcação ligeira, levada por vento impetuoso, e entregue a toda a sua presteza, tem ido alguma vez no mesmo espaço de tempo a uma extraordinária distância, é fenômeno tão raro em fato de navegação, que não pode entrar como elemento, na avaliação das marchas habituais (c) [19].

"Digamos por fim de tudo, que era impossível a embarcações de remos, quais eram os pentecontórios cartagineses, fazer em tão pouco tempo tão longa e embaraçosa viagem, qual apenas poderiam fazer navios à vela cheia, e em largo mar; porque posto que indo elas a remo, e ao abrigo da costa, seriam menos retardadas dos ventos contrários; todavia por outra parte deixariam sempre de ser navegadas com muito atrasamento pelas correntes, que mais se cruzam nas vizinhanças das costas, do que no alto mar, pelo combate das ondas, que nelas quebram com mais força; pela mesma direção da rota não reta e livre mas oblíqua e sinuosa, como apertada, cingida servilmente às praias, angras, cerros e promontórios da costa, e ao mesmo tempo desviada dos bancos, restingas e baixos, que tinham de ressalvar; e assim também pelos rodeios e voltas, que eram obrigados a fazer de uma para outra parte; pela escolha dos lugares, em paragens, em que deviam recolher-se, e pernoitar; pela inação conseqüente, em que ficavam metade do tempo, não fazendo navegação de noite; e finalmente pela espera da hora da maré para saírem dos portos onde se houvessem recolhido; o que tudo não podia deixar de retardar muito os progressos da sua navegação.

"Se à vista desta análise do Périplo, e de tudo o que temos ponderado, se não pode sustentar os pareceres tão diversos dos que levam a navegação do almirante cartaginês além do Cabo de Nam, aonde nós a terminamos, menos se pode admitir o daqueles que entenderão (e foi um deles Florião de Ocampo) que ele costeara toda a África e chegara até os confins do Golfo do mar Roxo (d) [20]. Deu motivo a este dito o lugar de Plínio, que no Livro 2 c. 67 falou desta maneira: Et Hannon Carthaginiensium potentia florente, circumvectus a Gadibus ad finem Arabiæ, navigationem eam prodidit scripto (e) [21].

"Contudo Plínio contou isto por fé de Xenofonte de Lampsaco, escritor suspeito, como outros gregos acrescentadores de fábulas, com que carregaram a narração do Périplo, que Plínio copiou. Depois disto Xenofonte é desmentido autenticamente pelo mesmo Périplo de Hannon, que não só demarcou o termo da viagem no Cabo do Austro (ou seja o Cabo de Nam, ou Cabo das Três Pontes, ou o Cabo Lopo, ou a Serra Leoa) mas até dá no fim a razão de não prosseguir por diante na sua expedição por lhe escassearem os mantimentos; circunstâncias que também apontou Pomponio Mella no Livro 3º c. 9 p. 195, anterior a Plínio coisa de 50 anos antes; demais, é provável que Xenofonte não leu o Périplo, ou que de propósito se apartou do seu texto para ornar a sua narração com mais enfeites e maravilhas, e que Plínio incautamente o seguiu, sem embargo de se queixar desta fábula no Livro 5º c. 1, e com ele também Marciano Capella no seu Livro 4º, que conta também o mesmo.

"Finalmente, faz-se incrível semelhante navegação em tão pouco tempo; Arriano assinou-lhe 35 dias; e não era possível que a frota indo em conserva, e desabrindo e registrando os lugares da costa para estabelecer colônias e feitorias, pudesse em tão curto prazo dobrar o Cabo da Boa Esperança, e navegar toda a costa oriental de África; devendo aqui ter ainda mais lugar as reflexões que fizemos sobre os obstáculos e dificuldades desta navegação pela costa ocidental, que por certo seriam ainda muito maiores em uma mais larga e dilatada carreira, que se lhe desse até os fins do Golfo Arábico.

"Assomemos por fim a viagem e descobrimento de Hannon, porque se veja por um só lançar de olhos toda a sua derrota.

Tábua

de todas as posições do Périplo

Estreito das Colunas de Hércules Montanhas de Gibraltar e Ceuta (N.E.: enclave espanhol no litoral mediterrâneo do Norte do Marrocos)
Thymiatherion sobre um cabo Antiga Tinjis (Tânger) (N.E.: capital da atual região Tanger-Tétouan, no Norte do Marrocos) e o cabo Mollabat
Soloe, ou Soloente, promontório da Líbia, onde se erigiu altar a Netuno Cabo Espartel
Lagoa ou baía, onde a frota fundeou Baia de Jeremias
Costa em que se fundaram 5 colônias ou feitorias cartaginesas Costa da Baía de Jeremias até Larache
Caricus Theichos, ou Caricus Murus Almadronis

Gytte.

Acra.

Melitta.

Arambe

Rio e lugar de Arzila
Lixo, rio. Lixitas Rio Lucus e lugar de Larache
Cerne, Ilha, costa deserta Ilha Fedal, costa que corre entre os rios Lixose Chretes
Grande rio cheio de crocodilos e hipopótamos na mesma costa deserta Rio Subú
Lagoa, ou golfo na mesma costa Lago e Forte dos Negros
Chretes, rio Rio Buragrag, ou rio de Salé, e cidade de Salé
Costa habitada pelos etíopes Costa que corre entre Cerne e o cabo Ger
Grande cabo, ou promontório, e altas montanhas cobertas de arvoredo Cabo Ger
Grande golfo Golfo de Santa Cruz
Lugar em que se fez aguada Ribeira de Sus
Cabo do ocidente Cabo de Guilo, ou Aguilon
Golfo Golfo de Guilo, ou Aguilon
Theon Ochema Uma das montanhas ou braço do Atlas, que correm entre o cabo de Guilo, e o de Nam
Cabo do Meio Dia Cabo de Nam
Golfo Golfo de Nam
Lugar das Gorilas Ribeira de Nam

"Isto é o que nos parece o termo da expedição cartaginesa; de que se pode ver quanto a navegação e descobrimento, que o nosso claro infante mandou fazer, foram mais longe, que os do capitão cartaginês; porquanto começaram do Cabo de Nam por diante, e descobriram-se muitos mais cabos, terras, portos e ilhas pelas costas (sic) de África, a saber:

Ilha do Porto Santo.

Ilha da Madeira.

Costa desde a Ribeira de Nam até o cabo Bojador.

Terra do Cabo Bojador.

Angra, ou Havra dos Ruivos, 30 léguas avante do Cabo Bojador.

Porto do Cavaleiro

Cabo Branco

Rio do Ouro.

Uma das Ilhas de Arguin chamada Adeget.

Ilha das Garças (N.E.: no golfo de Arguim, na Mauritânia).

Ilha de Nav.

Ilha de Tider.

Ilha de Arguin.

Ilhas de Cabo Verde.

Cabo do Resgate.

Ilha da Palma, e algumas outras das Canárias.

Cabo de Gué.

Cabo de Santa Catarina.

Mina (N.E.: São Jorge de Mina, atual Elmina, em Gana).

Ilha Formosa, e outras menores.

Terra de Guiné.

Rio de Sanagá, em Canagá.

"Com o que veio o Infante a deixar-nos descoberto tudo o que corre desde o Cabo de Nam, onde terminou a Viagem de Hannon, e em que começou a sua até a Serra Leoa na Costa de Guiné; penetrando assim pela viagem que mandou fazer para o Sul até 5 graus da Linha Equinocial; e deixando-nos descobertas 1.500 milhas da Costa de África adiante da navegação e descobrimentos do capitão cartaginês; e isso era o que pretendíamos demonstrar à vista da análise que temos feito do Périplo de Hannon".

Esses mesmos sentimentos de orgulho cívico ou vaidade nacional que Ribeiro dos Santos lealmente confessa, levaram um anônimo que, como já dissemos, sabemos ter sido Thomé Barbosa, "homem mui douto" e um dos "melhores helenistas e filólogos" de seu tempo, a publicar uma tradução, com exórdio, e notas ilustrativas ou comentários do mesmo Periplo de Hannon.

Esta tradução, única que foi até hoje impressa, segundo cremos, tem, como já dissemos, o seguinte título e foi publicada no Jornal de Coimbra - núm. XXI - setembro de 1813 - pág. 65:

"Periplo ou Circumnavegação de Hannon trasladado de grego em lingoagem por ***."

Como Ribeiro dos Santos, este tradutor com lealdade confessa a sua vaidade cívica, dizendo na Introducção:

"Dois são os motivos que nos demoveram a publicar o Periplo ou Circumnavegação de Hannon, acompanhando-o de uma nossa tradução em vulgar.

"1º A raridade do texto, seja original ou vertido, que escapou à voracidade do tempo e que por mais de um título devera ser familiar a nossos nacionais instruídos e curiosos de saber até onde levaram os cartagineses, nação marítima e ousada, seus conhecimentos da Costa Ocidental da África, para lhes poderem opor as arriscadas e gloriosas navegações que desde o século quinto-décimo tanto nos engrandeceram e imortalizaram e ver ao par o muito que nesta parte nos avantajamos dos Antigos, e riscamos por cima de todos eles. 2º O não se haver até aqui dado à luz em linguagem sequer uma só tradução deste curioso documento da Antiguidade".

O nosso José Bonifácio, tanto quanto podemos deduzir da leitura das notas obscuras e confusas que, manuscritas e inéditas, encontramos, não participava do exclusivismo cívico que guiava os dois anteriores tradutores, não obstante haver delineado e começado o seu gigantesco trabalho quando viajava pela Alemanha, a expensas e comissionado pelo governo português, e tê-la terminado anos antes da Independência do Brasil, para a qual poderosamente concorreu.

José Bonifácio, como os leitores terão ensejo de ver, combateu as afirmativas de Ribeiro dos Santos, o qual, de resto, não fez senão repetir as asserções de Gosselin, também calorosamente refutadas pelo nosso patrício, que pertence ao número dos que colocam mais ao Sul o termo da viagem de Hannon.

Coube a nós a grande ventura, ou melhor a grave responsabilidade de estudar, decifrar, interpretar e coordenar uma diminuta parte dos preciosos inéditos do Patriarca referentes ao assunto.

Receosos do êxito da empresa, não obstante folgamos que a sorte no-la tivesse reservado.

Crítica injusta e apaixonada atribuiu-nos, há poucos meses, sentimentos que nunca tivemos, de menosprezo à memória dos ilustres irmãos Andradas. Verberou-se-nos o grande crime de haver exumado "as calúnias meticulosas de Evaristo da Veiga - calúnias que haviam provocado gargalhadas, e que deveriam ter sido sepultadas com o seu autor, e cujo encerramento foi o pedido de perdão do caluniador, nobremente repelido pelas vítimas".

Quem tais palavras disse, em defesa dos seus, pelo correio no-las mandou como uma reprimenda discreta à nossa imprudência juvenil.

A resposta que damos à injustiça daquela crítica é o presente trabalho, que será, quando menos, um outro título de glória ornando a memória augusta e respeitada do literato notável e do cientista conspícuo que foi José Bonifácio, nome querido e lisonjeado por toda a Europa culta de seu tempo.

Desde os anos escolásticos José Bonifácio cultivou com amor as coisas antigas e a leitura dos clássicos gregos e latinos. Conhecemos quanto estas línguas eram familiares ao inspirado Americo Elysio pelas traduções que publicou de Hesíodo, Píndaro, Virgílio e outros [22].

Para a quase totalidade dos brasileiros, José Bonifácio é apenas o patriota eminente ao qual devemos a nossa emancipação política [23].

Entretanto, a verdade é que só depois do sábio "ter completado o seu currículo" nele se evidenciou "o estadista para lustrar veloz a sua carreira" [24].

Tentaremos um dia restaurar em toda a sua grandeza e plenitude a glória científica do ilustre brasileiro, que pisou a arena política não como tantos outros nulos de espírito, mas armado cavaleiro, com um largo e profundo preparo enciclopédico, que o habilitava a dirigir com mão segura e firme os negócios do Estado.

Com o presente trabalho, iniciamos por assim dizer aquela grata e espinhosa tarefa.

Na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, entre papéis não classificados, por não ter ainda chegado até eles o zelo, a dedicação sem limites, a competência indiscutível do eminente chefe da referida seção, sr. Jansen do Paço, verdadeiro modelo de funcionário, encontramos um maço de notas confusas, a granel, envoltas em uma folha de papel capeada por uma outra. Na primeira capa lemos, escritas a tinta, as seguintes palavras: "História Antiga de Portugal e de seus descobrimentos - Notas do punho de José Bonifácio acompanhando a leitura de várias obras".

Por baixo, a lápis, o falecido chefe da Seção de Manuscritos, sr. Valle Cabral, escreveu: "Notas do Conselheiro Octaviano".

Na segunda capa lê-se o seguinte, escrito igualmente pelo punho de Octaviano: "O Périplo de Hannon - Tradução, notas e estudos de José Bonifácio".

Começamos a revolver aquela Babilônia de apontamentos, e ao primeiro exame verificamos que, sendo o Périplo de Hannon a base do trabalho projetado pelo sábio varão, não era entretanto o objeto único da Obra. José Bonifácio pretendia, sem dúvida, escrever um grosso volume sobre a Geografia Antiga, com especialidade a da África, ligar em um mesmo estudo retrospectivo as navegações primitivas com as dos portugueses, compará-las depois, fazer em suma um trabalho de proporções amplas, de largo fôlego, não esquecendo a análise minuciosa de certas lendas. (N.E.: Alberto Sousa usa seguidamente a palavra legendas em seu texto, querendo se referir a lendas).

Lamentamos não poder transplantar para aqui todas aquelas preciosas notas manuscritas, ordenar todo aquele caos, construir com aquele rico e opulento material, como o sábio naturalista pretendia, um verdadeiro monumento de Geografia Histórica. Não nos sentimos com forças para o desempenho satisfatório de tal missão, em poucos dias: façam-no outros mais competentes, que não receiem tomar a si a responsabilidade de, em breve tempo, interpretar e dar forma de livro àquele aluvião de notas, vagas e confusas quase sempre, inteligíveis e compreensíveis apenas para quem as redigiu e escreveu, não raro repetidas uma, duas, três vezes, sem que se possa distinguir qual a definitiva.

Dar-nos-emos por muito felizes se conseguirmos aproveitar um pouco da grande pompa, do grande luxo de erudição ostentado naqueles manuscritos, em que José Bonifácio revela toda a sua competência como homem de ciência e como literato.

Antes, porém, permitam que digamos alguma coisa sobre o Périplo de Hannon, que já dissemos ter sido conservado, repetindo as palavras de Church - "not indeed in his own language for of the Carthaginian tongue we have but a few words remaining - but inh a Greek translation."

Na sua já citada obra Essai sur les revolutions, Chateaubriand considera o Périplo de Hannon "l'unique monument de litterature punique qui soit échappée aux ravages du temps", e acrescenta em uma nota: "Il nous reste une scène en punique dans Plaute, et des fragments d'un ouvrage sur l'agriculture, traduits en latin, ou l'on apprend le secret d'engraisser les rats."

Church, em uma nota, nos dá notícia do manuscrito grego: "The history of the voyage is called Periplus or 'Circumnavigation'. The Greek narratiave exists in a M. S. in the Library of Heidelberg, and was first published in 1533."

A narrativa foi consagrada no templo de Saturno, em Cartago, por Hannon, de volta da expedição; assim consta do próprio Périplo, logo nas primeiras palavras, que Chateaubriand traduziu da seguinte forma: "Voyage par mer et par terre, au delà des colonnes d'Hercule fait par Hannon, rei des Carthaginois, qui à son rétour, vous dans le temple de Saturne la relation suivante."

Church diz a mesma coisa, explicando mais o que era o Saturno dos cartagineses: "This account was set, we are told, by Hanno on his return to Carthage, in the temple of Chronos or Saturn - the same, as has been already said, as the Moloch of Scripture."

Divergem os eruditos na fixação da data em que o ilustre cartaginês fez a sua famosa viagem. Carl Müller inclina-se para 470; Heeren e Kluge querem que fosse em 509 ou 510; Bougainville e Vivien de Saint Martin adotam a data de 570.

Chateaubriand, na obra que temos citado, diz: "Il est réconnu que ce voyage n'est pas de l'Hannon auquel on l'attribue, et qui devoit vivre vers le temps de l'expédition d'Agathocles en Afrique. Les uns font l'auteur de ce journal contemporain d'Annibal; d'autres le rejettent à un siècle qui approcheroit de la révolution de la Grèce dont nous parlons: peu importe au lecteur."

Ouçamos a voz autorizada de Church: "The date of Hanno is not certain. He is supposed to have been either the father or the son of the Hamilcar who fell at Himera. There is little to make the one supposition more probable than the other. On the whole, I am inclined to accept the earlier time. Carthage was certainly more prosperous, and therefore more likely to send out such an expeditions before the disaster of Himera than after it. In this case the date may be put as 520 B.C."

Vejamos agora qual a opinião de José Bonifácio, colhida aqui e ali, entre as notas manuscritas que deixou:

"Dodwell põe a idade de Hannon entre a Olimpíada 92 e 129 (N.E.: considerando os jogos olímpicos na Grécia antiga como iniciados em 776 a.C., e realizados rigorosamente a cada quatro anos, a referência é portanto ao período entre 408 e 260 a.C.). Pondo-o no 1º ano da 92ª vem a existir 40 anos antes de Eratorthenes, o que é pouco exato. Falconer segue quanto à idade de Hannon a opinião de Bougainville. Segundo uma Oração no Senado, de Catão o antigo, que traz Solino, Cartago existia há 737 anos. Em 480 a.C. invadiram os cartagineses a Sicília e Xerxes a Grécia; e então estavam as coisas de Cartago na maior flor, pois o Grande Rei, apesar do seu orgulho, os convidava para uma liga.

"Com os ataques de Salmanazar e Nabucodonosor contra os fenícios e Tiro, antes de Ciro, Cartago devia enriquecer em gente e cabedais dos fugidios, e apoderar-se do seu comércio e escalas. Não sabemos quando começaram a estabelecer-se em Espanha, a conquistar a Sardenha e as Ilhas Baleares e a firmar-se na Sicília. Pelo menos monta isto a 700 anos antes de Cristo. Em 509 fizeram o 1º tratado com Roma e já se fala de África e Sardenha como pertencentes, e nos estabelecimentos da Sicília.

"Neste primeiro período há dois Hannones dos quais pode ser um o nosso; o mais moderno é o pai de Amilcar que foi roto por Gelon nas planícies de Himera pelos anos de 480; a ser este o autor, então o Périplo não pode ser mais antigo que 510. Há outro Hannon mais antigo, contemporâneo de Solon e a quem Anacharsis dirigiu uma carta que nos conservou Cícero. Solon floresceu por 594 e Anacharsis chegou a Atenas pelo ano de 589, donde, sendo verdadeira a carta, podemos pôr o Périplo pelo menos no ano 570 a.C. e já então tinha durado Cartago 233 anos. Ora, este Hannon, segundo Plinio lib. 8 c. 21 foi o primeiro que domesticou os leões e segundo Aeliano (Hist. Nat. lib.5 c.39) os converteu em bestas de carga. O mesmo Aeliano (var. hist. lib. 14. c. 32.) ou por vaidade ou para se aproveitar da superstição dos seus, ensinava as aves a dizer em língua púnica que Hannon era um Deus; e quem não vê que estas aves eram papagaios que talvez trouxera de sua viagem?

"Este Hannon sabia o grego e pode ser que traduzisse ele mesmo o seu Périplo. Ora, esta época dos 570 põe a viagem de Hannon entre outras duas, isto é, a de Necho, quase em 610, e a de Satasper no reinado de Xerxes em 475, se tomarmos o meio de seu reinado, que durou 21 anos, e seu predecessor Dario tinha feito examinar o mar da Índia e Arábia por Sylax de Carianda, que gastou 2 1/2 anos neste exame, o que prova certa emulação e moda para descobrimentos marítimos neste período. Gerado Vossio quer que o nosso Hannon fosse o que combateu Agatoclés na Sicília; porém seu filho Isaac Vossio quer que fosse mais antigo - creio que o nosso foi o de que fala Aeliano, que amansava os leões e que ensinava os papagaios a dizer que Hannon era um deus".

Sobre a controvérsia existente a respeito da autoria do Périplo, também se manifesta José Bonifácio na seguinte nota: "Talvez Hannon pusesse no templo dois exemplares, um em cartaginês e outro em grego. Josepho escreveu a sua história em grego e hebraico".

Ribeiro dos Santos, nos dois primeiros capítulos de seu já citado trabalho, nos dá amplas informações sobre Hannon e as diversas edições do seu Périplo, bem como notícia das opiniões dos eruditos. Em verdade, não estamos com a opinião de Ribeiro dos Santos, que aliás não fez senão repetir os conceitos de Gosselin, mas como estes dois capítulos são por assim dizer detalhadas notícias e como ainda não fo ram publicados, oferecendo-os na íntegra aos leitores, poupamo-nos fastidioso trabalho.

Publicamos em seguida os capítulos aludidos:

"Capítulo I - Da navegação dos cartagineses e particularmente de Hannon - De todas as navegações dos antigos, que se dizem feitas pela Costa de África, a que parece menos duvidosa foi a dos cartagineses debaixo do comando do almirante Hannon. Esta gente, que pode por muito tempo disputar a Roma o Império do Mundo, conquistadora por avareza, e menos cobiçosa de glória que de riquezas, tinha feito progressos no mar tão extensos, como rápidos: ela tinha cidades fenícias sobre as costas vizinhas d'África, ligadas a Cartago pela origem e pelo interesse; enviava colônias à Sicília, às Ilhas Baleares e à nossa Espanha; dominava no mar Mediterrâneo até às colunas de Hércules; os seus navios eram respeitados em toda a parte; era realmente a potência marítima de maior reputação naqueles tempos.

"No curso desta prosperidade, e da ambição que com ela se fomentava, foi fácil, conhecendo a importância de aumentar a sua Marinha, para se fazer mais rica e mais formidável aos seus êmulos, empreender descobrimentos de outros climas, cometer mais largas viagens a novos mares e terras, e povoar suas marinhas.

"Com efeito, por aqueles tempos começaram eles de fazer navegações mais ao largo, e de estabelecer novas colônias ultramarinas; assim se conta de Hamilcar, capitão cartaginês, que tentara a descoberta dos mares do Norte, e de Hannon, outro capitão de Catargo, que navegara pela costa ocidental da África, o que foi no tempo mais florescente da República, quando ela recuperou a Sicília de Dionísio o Tirano, passante hoje mais de 2 mil anos.

"Em quanto a Hannon, sabemos que os cartagineses o mandaram almirante de uma esquadra sulcar o Oceano Atlântico, com ordem de descobrir novos mares e terras d'África, estabelecer colônias e feitorias pelas costas ocidentais daquele continente; e formar por aquelas partes uma escala de comércio marítimo entre elas e Cartago. Destinara para esta empresa 60 pentecontórios, ou navios de 50 remos cada um, com 30 mil homens, para fundação das colônias.

"A derrota da viagem que fez este almirante anda escrita sucintamente no Périplo, que corre com o seu nome, ou ele fosse escrito em púnico ou em grego; ou seja original do mesmo Hannon, ou tradução.

"EDste quanto sabemos é o monumento da antiga navegação por uma parte da costa ocidental da África, que parece mais seguro e certo; e um dos escritos mais curiosos que nos transmitiu a Antiguidade, aliás não pouco escassa destas notícias, ou muito pouco segura nas que nos deixou de outras viagens".

"Capítulo II - Sobre a existência da viagem de Hannon, autenticidade, edições, traduções e ilustrações do seu périplo - Desta viagem do general cartaginês fizeram memória alguns escritores antigos, como de uma coisa constante e certa; tais foram: Xenofonte Lampsaceno, escritor grego, que citava este Périplo na sua Geografia, que se perdeu, ma que subsistia nos tempos de Plínio que o refere, mal repreendido por Salmasio em fazer a Xenofonte mais moderno do que Hannon, sendo que na verdade o foi, como adverte Isaac Vossio a Pomponio Mella (pág. 182); ele dizia que a viagem se estendera até as ilhas Górgonas no mar Atlântico, defronte do Promontório Hesperion Ceras na distância de dois dias de viagem do continente.

"Nearcho, outro escritor grego, célebre em Hidrografia no seu Périplo, ou navegação ulterior, que nos conservou Arriano, o qual no fim faz menção do Périplo de Hannon. Pomponio Mella, que não faltou em dar disto testemunho: - Verum et si Hannon Carthaginiensis exploratum missus a suis, cum per oceani astium exiisset, magnam partem ejus circumvectus, non se mari, sed comeatu defecisse memoratu retulerat (Livro 3º C.9 p.310). Plínio, que vai com a mesma tradição: Anno, Carthaginis potentia florente, cicumvectus a Gadibus ad finem Arabiæ, navigationem eam prodidit scripto, sicut ad extera noscenda missus eodem tempore Hamilcar - Lib. 2. Hist. Nat. C. 67, de q1ue torna a falar no Livro 5º C. 1º - Salino no capítulo último da sua História, que se refere a Xenofonte Lampsaceno.

"Os modernos, apoiados nos testemunhos tradicionais de todos estes escritores, não duvidaram haver por verdadeira a Viagem e Relação de Hannon; tais são entre outros: Isaac Vossio, o nosso douto e erudito Damião de Goes na Chronica do Principe D. João, nas observações a Mella, pág. 862, que prometeu ilustrar o Périplo, do qual dizia: Brevem quidem, sed tamen verissimum comemorat; Samuel Bochar no Chanaan; Floriano de Ocampo na Chronica de Hespanha; Luiz Marmol Carvajal na sua Africa; Ramusio no tomo 1 das Navegações e viagens, f. 124; Dappes na sua Africa p.6; M. de Montesquieu no seu Espirito das Leis L. 21 C.8; Pedro Roiz Campomanes nas Antinguidades maritimas de Carthago; M. de Bougainville na Dissertação que vem no tomo 26 das Memorias da Academia das Inscripções; M. Falconer na 2ª Dissertação que vem com a sua tradução impressa em Londres em 1797; M. Peuchet na sua Bibliotheca Mercantil; Court de Gibelin no Mundo Primitivo, tomo 8 do seu Mundo Primitivo; M. Gossellin, membro da Academia das Inscripções e Bellas Lettras, e do Instituto Nacional de França, na obra que publicou em Paris em 1798 intitulada Recherches sur la Geographie Systematique et positive des anciens, tomo I.

"Contudo, não deixaremos de confessar que entre os Antigos e os Modernos alguns houve que duvidaram ou da verdade desta expedição ou da autenticidade deste Périplo; ou o taxaram de pouco exato; porquanto achamos que um Aristides Grego, e Estrabão, de entre os Antigos, tratavam de fabulosa esta viagem do almirante cartaginês; e que Atheneo, no Livro 7º dos Deipnosophistas C. 3 mostrou crer que Hannon fora escritor ou frívolo ou pouco exato. Deu motivo a este conceito acharem no Périplo coisas extraordinárias que lhes pareceram incríveis, as quais contudo se verificaram depois pelas navegações e notícias dos nossos portugueses.

"Dos Modernos, o que apresentou motivos de mais dúvida foi o sábio Henrique Dodwell em uma Dissertação, que pôs na frente deste Périplo, que se acha na edição dos antigos geógrafos menores feita em Oxford; nela quis provar que esta peça não está mais do que uma obra apócrifa e da composição de algum grego, que tomara o nome do almirante Hannon para se fazer acreditar.

"A soma da crítica de Dodwell funda-se principalmente em duas razões.

"1ª Que em nenhuma outra obra havia memória das colônias contidas neste Périplo.

"2ª Que todos os nomes do Périplo eram gregos e não púnicos ou fenícios.

"E quanto à primeira razão, o simples silêncio dos escritores gregos e romanos, isto é, estranhos, em que se não acha memória individual das colônias, é um simples argumento negativo, que não prova; quanto mais não tendo nós hoje escritores cartagineses, que seriam os que mais facilmente podiam e deviam falar disto, e em que o silêncio podia mover desconfiança e incerteza sobre o fato. Depois disto, não é absoluta esta falta, que nos mesmos escritores gregos e romanos se não achem memórias de algumas dessas colônias, como adiante se verá na ilustração do Périplo.

"No que toca à 2ª razão de Dodwell, tirda dos nomes gregos, não faz isto grande peso, pois que Buchart, e depois dele Campomanes, mostraram as origens púnicas de grande parte dos vocábulos que ali vêm; e se entram alguns que claramente são gregos e não púnicos, não admira que se adotassem em uma peça escrita em grego, fosse original, fosse tradução, para melhor que eles se expressar a significação dos nomes púnicos.

"Maior dúvida se nos oferece a dar este Périplo por obra original de Hannon, e não antes por tradução ou cópia dela; porque posto que o grego fosse língua não desconhecida aos cartagineses (sobre o que discorre Campomanes f. 15, que para ali se inclina), todavia não é provável que Hannon escrevesse naquele idioma; porquanto consta da antiga História que os cartagineses recatavam os seus descobrimentos às nações estranhas, e até vedavam aos seus com graves penas, que vulgarizassem as notícias de alguns deles; e nestes termos parece que Hannon não escreveria em grego a sua Relação, mas antes em sua própria língua, que era a púnica, dialeto da Fenícia ou antiga Hebréia; e esta reflexão foi acaso a que demoveu a alguns para crerem que a obra fora escrita originariamente em cartaginês ou púnico.

"Digamos das edições, traduções e ilustrações do Périplo.

"Foi este Périplo impresso a primeira vez por Segismundo Gelenio com os outros geógrafos menores em Basiléia em 1533 em 4º (N.E.: 4º, 8º, são referências ao tamanho das páginas dos livros) na oficina de Trobenio [25]. Saiu também na mesma coleção publicada por Hudson em Oxonia em 1608 em 4º.

"Ramusio deu a sua tradução em italiano no Tomo I das Navegações e Viagens p. 124. Pedro Roiz Campomanes nas Antinguidades Maritimas de Carthago em 1765 o pôs em castelhano [26]. Mr. Falconer nas Dissertações impressas em Londres em 1797 o deu em inglês. Mr. de Bougainville na Memoria que vem no Tomo 26 das Memorias da Academia das Inscripções e Bellas Lettras e mr. Francheville na Dissertação sobre a navegação de Tarseis no Tomo 17 das Memorias da Academia de Berlim.

"Comentadores e ilustradores apresentaram duas traduções em francês [27]. Mr. Gosselin deu depois outra na sua obra das Indagações sobre a Geographia Positiva e Systematica dos Antigos. Mereceu não só ser traduzido, mas também ilustrado pelas doutas reflexões que sobre ele fizeram Florião d'Ocampo, espanhol, que foi o primeiro que o esclareceu; Luiz Marmol Carvajal, também peritíssimo espanhol nas coisas de África; Samuel Buchart, que muito o alumiou nas palavras, considerando-as como relíquias da língua púnica; Abraham Berhelio, que o imprimiu na continuação de Estevão de Urbibus em 8º em Leyden em 1764 e lhe fez notas puramente gramaticais e lhe ajuntou as de Buchart; João Hudson, que o publicou na coleção dos geógrafos antigos menores em Oxonia em 1698 com a Dissertação que lhe ajuntou de Henrique Dodwell e recompilação de todas as notas que os críticos lhe haviam feito.

"Mr. Peuchet nas sábias Indagações sobre os progressos da Navegação dos Antigos na sua Bibliotheca Mercantil. Mr. Francheville na Dissertação sobre a Navegação de Tarseis no tomo 17 das Memorias da Academia de Berlim, e além destes os já citados Falconer, Campomanes, Bougainville e Gosselin [28].

"Nossa língua não tem ainda uma tradução e ilustração desta peça da Antiguidade, que cada uma das nações polidas tem procurado haver na sua; e nós julgamos fazer algum serviço à nossa em lhe apresentar nesta Memória; porque ela tenha mais este fundo de notícias em seu idioma próprio, e se conheça por elas até onde chegaram os cartagineses de Hannon, até onde os argonautas do nosso Infante".

Sobre o grande valor do Périplo de Hannon, convém que ouçamos a opinião de Vivien de Saint Martin:

"Extrémement rémarquable par la grandeur de l'entreprise et la hardiesse de l'éxécution, l'expedition carthaginoise ne l'est pas moins par l'exactitude de la relation que nous en a transmis le souvenir. Cette rélation, dans sa forme originelle, n'etait qu'une inscription commemorative de cent lignes à peine; et cependant, malgré cette concision extrême, il n'est pas un de ses détails, soit de localités, soit de distances, qui ne se trouve rigoureusement conforme á la connaissance très-précise que nous avons aujourd'hui de ces côtes. Si les commentateurs ont si prodigieusement varié dans les explications qu'ils en ont données cela tient, non au document lui-même, mais aux methodes d'investigation et aussi, en certains cas, au défaut de notions précises sur quelques parties du littoral aujourd'hui mieux explorées. Ainsi Bougainville et M. Dureau de La Malle ont conduit Hannon jusqu'au fond du golf de Bénin, tandis que M. Gosselin voulait qu'il se fût arrété au cap. Noun, limite mèridionale du Maro, Mamsert maque le terme de l'expédition aux Bissagos, Heeren á l'estuaire de Gambie, Malte-Brun à la baie de Cintra, M. Quatremére aux environs du Sénègal".

Digamos agora alguma coisa sobre os inéditos de José Bonifácio.

Os intuitos deste novo tradutor do Périplo foram bem diversos dos que inspiraram Ribeiro dos Santos e Thomé Barbosa. O grande brasileiro não conhecia, nos domínios cosmopolitas da ciência, os preconceitos cívicos. Que importava às glórias do lendário Portugal saber que Hannon precedera de séculos as descobertas feitas sob as vistas de d. Henrique, o Infante imortal? Certo estava no interesse histórico da Geografia cotejar as viagens dos cartagineses com as dos portugueses, mas pueril seria, para aumentar as glórias dos últimos, negar a extensão exata dos descobrimentos dos primeiros, reduzi-la com grave ofensa à verdade da História.

Os dois primeiros tradutores e comentadores do Périplo lealmente confessaram que, levando ao cabo empresa de tal monta, queriam provar que os marujos do Infante tinham chegado mais ao Sul do que os nautas de Cartago.

José Bonifácio, que, na região serena das idéias, não admitia essas explosões de orgulho cívico, traduzindo e comentando o Périplo de Hannon, fê-lo com maior elevação de vistas. Não admira que assim procedesse aquele que, propugnando pela adoção do sistema métrico decimal em Portugal, escrevera estas palavras memoráveis: "Talvez pareça aos espíritos acanhados que a adoção do sistema métrico decimal para base das novas medidas ofenda de algum modo o pundonor nacional; porém reflitam que o verdadeiro e o útil não têm pátria, pertencem a todas as nações, pertencem ao universo inteiro. Seria capricho pueril não adotar o que há de bom entre os inimigos, só porque eles dizem que é seu. Que seria da república das letras, se os ódios e guerras das nações houvessem de invadir os domínios pacíficos da verdade e das ciências úteis?"

Ele confessava a importância do Périplo "para a Geografia antiga e para vermos o que verdadeiramente descobrimos os portugueses", mas refutando os absurdos que a vaidade cívica levara Ribeiro dos Santos a cometer, exclamava: "Que tem que fazer a extensão da navegação de Hannon com a extensão dos nossos originais descobrimentos?"

A História diverte-se muitas vezes em repetir; não se negue em sociologia, diante de certos fatos extremamente semelhantes que o mundo nos apresenta, não só na sua marcha evolutiva, como também nos seus momentos reversivos, a lei da reprodução retrospectiva dos tipos anteriores e inferiores na escala animal, proclamada pela embriologia e já universalmetne aceita.

Marujos oriundos da Fenícia continuaram em Cartago a sua missão histórica, levando a longes terras, até então desconhecidas, os seus baixéis fragílimos. Quando a austera Clio acabou de escrever esta página de seu livro, página tão original entre as outras da história da Antiguidade, volveu-a com indiferença e continuou na sua tarefa. Muitos séculos depois teve ela que registrar no seu livro grandioso a história de uma Nova Fenícia que surgira no Ocidente da Europa, os belos feitos dos atrevidos nautas portugueses, continuadores da missão histórica dos filhos de Sidon, Tiro e Cartago.

A princípio, esses fenícios dos séculos XV e XVI, guiados pelo espírito do Infante, costeando o Ocidente da África bárbara e misteriosa, não foram além dos seus antecessores. Mas a semente benéfica, plantada por d. Henrique em Sagres, frutificou ali mesmo sobre o escarpado dos rochedos, e sobre as areias osculadas com carinho pelas vagas marulhosas. pouco depois Vasco da Gama, dobrando o Tormentário, e Pedro Álvares Cabral, lançando as âncoras em Porto Seguro, tinham ultrapassado em audácia, em sucesso e em brilho, os empreendimentos dos navegantes da antiguidade.

Assim sendo, e não precisando Portugal iludir e falsear a verdade da História, roubar glórias alheias para aumentar as suas, que são verdadeiramente gigantescas, bem avisado andou José Bonifácio na orientação que imprimiu aos seus estudos, infelizmente não acabados, sobre o Périplo de Hannon, não participando da vaidade cívica de que deram provas Thomé Barbosa e Ribeiro dos Santos, escudado este último nos argumentos capciosos de Gosselin.

É muito para lamentar que o sábio brasileiro não houvesse concluído o seu trabalho, coordenando as suas investigações e publicando a grande obra que planejara. Nos manuscritos que compulsamos, verifica-se que José Bonifácio estudara a matéria mais profundamente do que qualquer um dos tradutores e comentadores do Périplo que o precederam ou que o sucederam.

Ele leu toda uma biblioteca sobre o assunto; não há um só clássico grego ou latino, nem um só escritor antigo ou seu contemporâneo, que houvesse feito referências ao Périplo, ou cujo conhecimento importasse à história da Geografia da África, não há um só que ele não tivesse lido e estudado - desde Heródoto, Plínio, Políbio, Arriano, Ptolomeu, Estrabão, Scyllax, Pomponio Mella, Gerardo e Isaac Vossio, Avieno, J. Lucilu Junioris (vulgo Corneii Severi), Seneca, Platão, João de Barros, Marciano, Damião Antonio de Lemos, Antonio Maria Carneiro (cosmógrafo-mor, autor do Regimento dos Pilotos e Roteiro de Navegação, publicado em Lisboa em 1653), Faria e Souza, Florian de Ocampo, Campomanes [29], Val-de-Flores, Ramusio (Delli navigazioni e viaggi), frei Luiz de S. Francisco (franciscano português que publicou em 1586 uma obra intitulada Globus Canonum et arcanorum linguæ sanctæ et divinæ scripturæ), Antonio de Lebrija, Smith (Nouveau Voyage de Guinée, Paris, 1751), Antonio de Oliveira Cadornega (Guerra d'Angola), Antonio Cavazzi (Istorica Descrizione dé tré Regni di Congo, Matamba et Angola - Bolonha, 1687), padre Fernan Guerreiro (Relação annual das cousas que fizerão os Padres da Companhia - Lisboa, 1605), Domingos de Abreu de Brito (Summario e Descripção do Reino de Angola e do Descubrimento da ilha de Loanda, dirigida ao muito alto e poderoso Rey D. Felipe), Damião de Góes (Cronica do Principe D. Joan), - até Falconer [30], Dodwell, Rennel, Arrowsmith, Anville, Dnakert, Bellin, Bougainville, Montesquieu, Labat, Gosselin, Ali Bey el Abbassi, Malte Brun e muitos outros franceses, ingleses, alemães, italianos, dinamarqueses etc.

Só mesmo em face da infinidade de notas manuscritas deixadas por José Bonifácio se poderá avaliar a erudição prodigiosa que acumulou antes de iniciar o monumento de geografia histórica que infelizmente não concluiu.

Quando se nos deparou aquele precioso espólio de saber, o nosso primeiro cuidado foi procurar em meio daquelas centenas de notas manuscritas o plano da obra.

Em um quarto de papel encontramos o seguinte:

"Notas para a minha obra do Périplo de Hannon: 1º Introdução ao meu trabalho - 2º Descrição das costas segundo os autores modernos, portugueses e estranhos - 3º Produção em linguagem geográfica moderna - 4º Memória sobre a Geografia das Costas Ocidentais dos Gregos e Romanos - 5º Tradução literal, notas críticas e geográficas".

Outro quarto de papel continha o seguinte

"Notas para a obra sobre o Périplo de Hannon - 1º Introdução sobre os descobrimentos marítimos dos fenícios e cartagineses - 2º Descrição das Costas d'África Ocidental segundo os modernos - 3º Tradução do Périplo, notas críticas gramaticais sobre as diversas versões - 4º Redução da Viagem em linguagem geográfica moderna - 5º Memória sobre a Geografia dos gregos e latinos desta costa - 6º Comentário ilustrativo sobre o Périplo de Hannon".

A seguinte nota parece encerrar o plano do preâmbulo: "Prefação - Interesse do Périplo a todos e mormente aos portugueses - Texto, edições, comentadores (edição de Leyden de 1674, 12º) - Requisitos para a sua inteligência moderna, tanto na tradução como na aplicação e desenvolvimento - Texto, comentário, segundo o método que segui para com o Cap. de Ezequiel - Interesse pela raridade e importância para a Geografia antiga, para vermos o que verdadeiramente descobrimos os portugueses, não só em tempos modernos, mas em todos os outros anteriores".

Outra nota: "O meu fim não é determinar ao justo o sítio dos lugares, mas mostrar as incongruências de todos os geógrafos até aqui".

Outra nota: "Cânones para a inteligência: 1º Medidas itinerárias - 2º Rumo da navegação - 3º Configuração das terras - 4º Comparação com as outras posições que dão Scylax, Políbio, Plínjio, Mella, &, com a descrição dos nossos roteiros e viageiros modernos".

Como se vê, José Bonifácio não assentara definitivamente o plano da obra; ia modificando-o de acordo com os estudos que fazia. Mas ainda, não parecendo definitivos aqueles projetos, por eles se faz idéia exata das proporções grandiosas da obra que o eminente brasileiro desgraçadamente não pôde levar a cabo, absorvido, como foi inteiramente, pela malfadada política que tantos dissabores lhe causou.

Com algum esforço conseguimos aproveitar algumas das notas manuscritas, que estiveram em poder de Francisco Octaviano e hoje se acham guardadas na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

Vamos, pois, publicar o texto grego, para que os eruditos aos quais seja familiar esta língua morta possam avaliar o mérito da tradução que o acompanha, precedida de um prefácio. O texto grego copiamo-lo do Jornal de Coimbra, em que apareceu juntamente com a tradução de Thomé Barbosa, a qual José Bonifácio muito apreciava. Quanto à tradução feita pelo Patriarca, devemos observar que entre os seus manuscritos encontramos três e adotamos a que nos pareceu definitiva, fazendo contudo nesta alterações autorizadas pelo cotejo com as outras duas e pela leitura de outras notas.

No fim da tradução inserimos algumas notas de José Bonifácio, outras nossas, e outras de outros autores. Fecharemos este trabalho, que será posteriormente ampliado, quando mais de espaço pudermos coordenar todos os manuscritos deixados pelo sábio brasileiro - com a publicação das notas que escreveu em oposição às afirmativas de Gosselin, juntando às mesmas notas algumas palavras nossas.

IV

Notas

Como não tivéssemos tempo de coordenar todas as notas obscuras e confusas de José Bonifácio, para boa inteligência do Périplo, vamos ilustrá-lo com algumas observações colhidas aqui e ali com o necessário critério.

Não representará isso a redução da viagem em linguagem geográfica moderna, de acordo com o modo de pensar do cientista ilustre. Em todo caso, os leitores poderão apreciar bem até onde ele pretendia chegar com os seus comentários, pela leitura da refutação de Gosselin, que inseriremos na Conclusão.

A) - Eis uma nota que colhemos entre os manuscritos do Patriarca:

"Segismundo Gelenio publicou o Périplo de Hannon com o de Adriano, Plutarco dos dois, e o Epitome de Estrabão, Grec. 1533, 4º - Conrado Genero o traduziu em latim com umas notas, com Estevão Bisantino das Cidades etc., 1523, 4º - E com a África de Juan de Leon 1558, 8º, e 1674, 8º. Outra edição é a de Abraham Berhelio, 1674 8º. - João Jacob Müller o traduziu e comentou. João Henrique Bœcler fez-lhe notas. Niculáo Ritterhusio fez uma Dissertação inaugural sobre ele comentando um passo de Pomponio Mella em 1638. D. Francisco Lansol de Romani na descrição que fez da África tratou em particular da Navegação de Hannon, tendo em vista as notas que lhe havia feito Florian de Ocampo".

B) Entre os manuscritos de José Bonifácio encontramos três traduções do Périplo; adotamos aquela que julgamos definitiva. Nesta se lê - Navegação de Hannon; em outra Roteiro de Hannon e em outra Cirvunavegação de Hannon. Périplo significa circunavegação e Thomé Barbosa, assim explicando, traduziu. Como, porém, circunavegação dá idéia de viagem feita em redor, saindo de um porto e voltando, por caminho diverso, a este porto - e não é este o caso - preferimos conservar o termo Navegação.

C) Em um manuscrito lê-se - determinaram os cartagineses; mas na tradução que se nos afigura definitiva, lemos - Aprouve aos cartagineses. Conservamos esta última expressão, igual à que Thomé Barbosa adotou em sua versão, pela qual José Bonifácio, como confessa na Prefação, modelou a sua.

D) Estreito de Gibraltar.

E) Church traduz: "and found cities of the Liby-Phenicians" - e acrescenta em nota: "A mixed population springing from marriages of Carthaginians with native Africans, and regarded with much jealousy by the authorities of Carthage".

F) Nota de Church: "This number is probably, exaggerated. It need not, however, be supposed that all the colonists were conveyed in the sixty ships. These were probably ships of war wich convoyed a number of merchantment, which discharged their cargoes of passengers as the various colonies were founded".

G) "Cape Cantin" - diz Church em uma nota.

"C'est un des points - diz um enciclopedista francês - les lus connus et les plus anciennement celébres de la côte Atlantique. Les romains en firent le promontoire Solis; l'appellation punique rappelait, l'aspect frappant de ses hautes falaises. C'est le cap Cantin de nos cartes, qui s'élance abruptement, dit le lieutenant Arlett, à 211 pieds au dessus de la mer.".

H) Nota de Church: "The Latin Neptune, perhaps the Phenician Dagon."

I) Chateaubriand traduz assim: "lac plein de garnds roseaux, où nous vimes des éléphants et plusieurs autres animaux sauvages paissant çà et là" - e explica em nota: "Il se trouve ici une difficulté dans le grec. On croiroit d'abord qu'Hannon a remonté une rivière, en suite on le trouve fondant des villes maritimes. Je suivis le sens qui m'a paru le plus probable."

J) Traduz Church: "Sailing thence we came to Lixus, a great river which flows from Libya" - e explica que o Lixus é o Vadi Draa. Vivien de Saint Martin crê que o Lixus é o Sous das cartas francesas.

K) José Bonifácio, em uma nota que encontramos, acha que Ribeiro dos Santos traduziu mal dizendo "que corre da Líbia".

L) Church traduz: "men of strange aspect" - e acrescenta em nota: "Possibly negroes". José Bonifácio censura Ribeiro dos Santos por ter traduzido - "homens de diversa figura".

M) Explica Church: "Cerné is probably to be placed at the mouth of the Rio de Ouro. Some of the French charts give the name of Herné, which is said to resemble a name used by the natives." Vivien de Saint Martin diz que a ilha de Cerne é a de Herné, na baía de Ouro. Chateaubriand diz em nota à sua tradução: "On croit que cette ile, le terme de la navigation d'Hannon est Sainte Anne".

N) É importante a seguinte nota de Church: "There is some doubt as to the meaning of this expression Mr. Bunbury suggests that it may mean that the distance from Carthage to the Straits of Gibraltar, and from the Straits again to Cerné being equal, these two would be the sides of an icosceles triangle, of which the base would be the line drawn between Carthage and Cerné. It must be remembered that the anciens had nothing like the correct notions which we have since been enabled to form of the relative positions of the various countries of the world. From Cerné Hanno made two voyages of discovery, which he now proceeds to describe." José Bonifácio, nas notas contra Gosselin, que irão na Conclusão, discute com proficiência este ponto.

O) Sobre o Chretes assim se expressa Alfred J. Church: "The Senegal, which, opens out into such an expanse near its mouth. But there is a difficulty about the mountains which it is not easy to identify with anything in the lower course of this river.".

P) "The Gulf of Bissagos", afirma o erudito historiador americano.

Q) "Mt. Sagres", diz o mesmo Church.

R) "Sherboro Island and Sound, a little distance south of Sierra Leone" - afirma Church.

V

Conclusão

Já dissemos que José Bonifácio pertence ao número dos que colocam mais ao Sul o termo da viagem de Hannon.

Entre as notas manuscritas que deixou, muitas são exclusivamente destinadas à refutação dos argumentos de Gosselin e de seu imitador Ribeiro dos Santos, que, julgando aumentar as glórias de d. Henrique, seguiu as opiniões daquele escritor francês, dizendo que Hannon não passara do Cabo Não e falseando assim a verdade da História.

A primeira nota manuscrita que encontramos encerra talvez uma primeira e breve impressão da leitura. Ei-la:

"Gosselin - tom magistral e decisivo. - Paradoxista - Malte-Brun cai às vezes nos mesmos defeitos, deslumbrado pelo prurido parisiense de Gosselin".

Quanto a Ribeiro dos Santos, José Bonifácio limita-se a dizer:

"O A. cita muitos livros que não leu, mas que tirou de outros os nomes e lugares. Santos é um copista de Gosselin e nada mais".

Entre os inéditos do Patriarca sobre o Périplo, freqüentemente se encontram notas refutando as afirmativas de Gosselin. José Bonifácio chegou mesmo a começar a coordenar a sua contradita, como se vê de um pequeno caderno de papel que encerra o seguinte:

"Notas críticas contra Gosselin. - Como a opinião de Gosselin já tem deslumbrado alguns literatos, para diminuírem a extensão e importância da viagem de Hannon cumpre-me demorar algum tanto mais em combater as razões especiosas, porém falsas em que se funda Gosselin para limitar esta viagem até o Cabo de Não, na latitude de 28º.

"Analisando o que a favor de sua opinião traz Gosselin, vemos que os fundamentos mais poderosos em que se funda são dois: primeiro que se deve começar a contar os dias da viagem logo de Ceuta; segundo que por dia de viagem não se pode conceder mais de 5 léguas de vinte ao grau. Vamos mostrar a falsidade destes dois supostos. É falso que se deva tomar absolutamente a expressão do texto - Fora das colunas - por passada Ceuta; primeiro porque a expressão sendo geral, é mais natural entender-se Fora do Estreito; segundo porque se Thymiaterion estivesse em Tânger e ainda dentro do Estreito, como devendo Hannon estabelecer colônias fora das Colunas, e ficando as outras cidades, segundo Gosselin todas fundadas fora do estreito e já na costa ocidental da Líbia, só Thymaterion ficasse dentro. Se estas estavam fora do Estreito, por que não estaria a primeira? Aonde fica claro que a expressão do texto - fora das colunas - é geral e significa fora do Estreito. Demais, sendo Thymaterion Tânger, como podia ser o Cabo Soloeis o Cabo Espartel, cujas posições se opõem ao curso e distância da viagem que traz o texto; e é contrariar ao que diz dele Scylax e Polybio, que merecem toda a atenção na Geografia desta Cota.

"O segundo suposto é igualmente absurdo, porque se opõe a todas autoridades dos antigos, que dão ao dia de viagem marítima setecentos estádios, ou quando menos quinhentos, isto é, vinte léguas, o que é conforme com as nossas viagens portuguesas que fizeram os descobridores desta costa em navios pequenos e pouco diferentes dos cartagineses, isto é, em caravelas e galeotas. O exemplo de Cook, examinando a Costa Oriental da Nova Holanda, não tem aqui lugar porque Cook tinha por fim costear uma costa brava, desconhecida e cheia de arrecifes de coral que o obrigavam a ir com o prumo na mão; pelo contrário, Hannon, apesar de ir com uma frota numerosa, navegava por costa limpa e já conhecida; pois não era possível que os cartagineses mandassem 30 mil homens para fundarem cidades sem de antemão saberem a possibilidade desses estabelecimentos ou terem ao menos pelo grosso conhecimento dos lugares onde deviam estabelecer as ditas cidades.

"Demais, ainda quando a frota por ir muito carregada de gente e petrechos devesse ser mais ronceira; todavia eram muito a seu favor os ventos constantes e quase ponteiros e as correntes do mar, que muito favoreceriam a sua navegação, como mostrou Rennel. Igualmente teriam os cartagineses escolhido bom tempo e moção para esta sua expedição. Tudo isto não se verificava para com Cook. Mas ainda quando concedamos a Gosselin que Hannon não fizesse mais viagem por dia que fez Cook, ainda assim é falso o cálculo de dar somente 5 léguas por dia, porque Cook andava 17 léguas (umas por outras) em 24 horas ou 8 1/2 por dia e devia andar mais, visto que os navios podem levantar âncora logo que começa o primeiro alvor da madrugada e aproveitam do crepúsculo da noite e por esta razão talvez Heródoto dá por viagem marítima do dia 700 estádios; e por noite 600 somente, isto é, um 7º de mais por viagem de dia o que faz no cálculo de Cook perto de 10 léguas por dia.

"Gosselin ignorava ou senão fez carga da força da grande corrente que há ao longo desta costa e favoreceu  muito a expedição cartaginesa. O navio Grenville, partindo da Madeira até ao Cabo Verde, foi lançado fora do rumo para o Sul 97 milhas em 10 dias, ao que dá por dia mais de 9 1/2 para a só força da corrente e partindo da Inglaterra para a Madeira foi lançado 206 milhas de seu rumo para o Sul em 10 dias ou perto de 13 milhas por dia.

"Como poderia Hannon não chegando mais que ao cabo de Não encontrar as baías, o boqueirão de mar desmedido, as ilhas e os golfos, o grande rio que continha crocodilos e cavalos marinhos, os etíopes e os gorilas: Decerto nada disto existe nos reinos de Sul e de Marrocos até o cabo de Não. Bastava isto para se ver que a inteligência que dá ao texto de Hannon é aérea e absurda. Todavia iremos passo a passo mostrando as incoerências de Gosselin. Se ele confessa que a viagem de Acapulco a Manilha, que é em Não por via de regra muito carregada e ronceira, é todavia de 2.665 léguas marítimas em 3 meses; então pelo seu cálculo vem a viagem de 12 horas a ser quase de 15 léguas. Se a frota de Hannon ia carregada, também o vai muito o galeão do Acapulco. Demais, na 2ª viagem já os baixeis iam despejados de gente.

"Se os lixitas moravam em Larache, como podiam acima deles morarem etíopes e trogloditas? Onde estão as grandes montanhas onde nasce o Lixus?

"Não é possível que o pequeno ilhote de Fedal seja a Ilha de Cerne, 1º porque não fica distante ainda mesmo de Ceuta como Ceuta de Cartago; 2º porque Fedal é muito mais pequena que Cerne, sem água alguma nem vegetação, tudo contrário ao que dizem Hannon e Scylax; 3º como poderíamos supor que escolhessem Fedal os cartagineses quando tinham ante os seus olhos uma costa aberta de boas terras até ao Cabo Cantin e dele para diante excelentes portos, e até uma boa ilha que é a de Mogador à pouca distância do Cabo Cantin?".

Encontramos outras observações contra Gosselin; vão publicadas em seguida:

1ª "O pobre Gosselin parece ignorar que Arieno e Prisciano são meros tradutores de Dionysio Pariegetes que no  n. 219 fala de Cerne. Engana-se Gosselin dizendo que Scylax conta 12 dias de navegação das colunas até Cerne, ou somente 7 dias de Soloeis até Cerne. Plinio lib.6 C.36 diz que Polybio põe Cerne contra montem Atlantem; e quer Gosselin que, segundo as medidas de Polybio, a ponta mais apartada do Atlas vem a ficar perto do rio Nun, porém isto não pode ser porque aí não há ilha alguma".

2ª "Confessa que a direção da viagem do Périplo desde Lixus a Cerne 2 dias ao Sul e 1 a leste é mais favorável a Arguin que a Fedal, porém pretende que há erro no texto!!!

"A tradução que dá Gosselin do texto é uma miséria, corta, alonga e faz dele o que quer para os seus fins.

"Quer que os grandes montes que o rodearam (1ª viagem II) seja o cabo de Ger, onde acaba o espinhaço principal do Atlas, que é difícil de rodear por ser em ponta aguda, onde bate o mar, e o grande boqueirão o de Santa Cruz, onde diz que há uma planície de 2 e 1/2 léguas de largura, por onde corre o rio de Sus (talvez onde Arambys).

"Rejeita o calor intransitável das praias, o grande fogo, as torrentes inflamadas, como fábulas! Bravo, assim faz-se o que se quer dos antigos.

"É falso que Plinio no liv.6 C. 35 fale das vizinhanças do Theon Ochema, cobertas de sombras, encantador. Se fora este um vulcão, Hannon o diria, pois conhecia o Etna da Sicília".

3ª "Se Hannon não passou do cabo Non, como quer Gosselin, como os lixitas chegaram a terras cujas língua não entendiam? Como Hannon encontrou gentes de estranha figura? quando sabemos por Estrabão (Lib.17) que os maurusios mopesilos e líbios pela mor parte tinham a mesma fisionomia e os mesmos costumes e se assemelhavam em tudo uns aos outros?".

4ª "Contra Gosselin faz também a autoridade de Heródoto, que conta que em seu tempo os cartagineses tinham navegação até a costa da mina ou do ouro para a qual provavelmente abriu o caminho (Lib.4 C.196): os cartagineses me referiam também que eles costumavam navegar fora das colunas de Hércules a um povo morador na costa da Líbia; e quando ali chegavam levavam as mercadorias para a praia e voltavam para as embarcações depois de terem feito alguma fumaça. A este sinal acudiam os moradores à praia, punham ouro junto das mercadorias e apartavam-se; então os cartagineses saiam outra vez à terra e viam se o ouro era bastante; e neste caso tomavam-no e iam embora. Mas se não era bastante para o valor das mercadorias recolhiam-se outra vez aos navios e esperavam; então voltavam aqueles e punham mais ouro até contentar estes. Nenhuma das partes fazia injustiça à outra pois uma não bulia no ouro enquanto não era igual ao valor das mercadorias; nem a outra pegava nas mercadorias enquanto os primeiros não tinham levado o ouro".

5ª "A tradução do Périplo de Hannon que traz Malte Brun (Precis de la Geog. Univ. vol. I) é pouco exata - defeito que achei também na de Gosselin e vários outros.

"Malte Brun crê que fora uma inscrição grande em um templo, que um grego traduzira provavelmente pouco exatamente pois às vezes omite os dias da navegação. Por esta causa é impossível fixar com exatidão os lugares visitados por Hannon.

"Buchart e Campomanes estenderam a navegação até a Senebia, pois só ali se encontram negros e crocodilos, hipopótamos e os grandes erros mencionados. Gosselin, pelo contrário, fundando-se na posição do Lixus e de algumas medidas itinerárias de Polybio, a limita até o Cabo Non; e acha Cerne na Ilha Fedal; e como as tábuas de Ptolomeu estendem os conhecimentos geográficos dos antigos mais ao Sul, esforça-se a mostrar que os mesmos nomes dos lugares vêm aí repetidos até 3 vezes, porém este procedimento é muito arbitrário e quanto a Hannon não atendeu que fala de duas viagens: a 1ª para fundar colônias e a 2ª para descobrir a costa; e nesta, livre de empachos e gente, devia ser mais rápido, como nota Heeren. Não vale porém o que diz Malte Brun para não crer que a viagem se estendeu até a Guiné, isto é, que não menciona dobrar o cabo Branco e o Verde, pois fala de terem gastado dois dias em rodear uns montes altos depois de 12 dias de viagem de Cerne e os dois golfões do ocidente e do sul deviam ter cabos nas extremidades e que havia no país montes altos mostra o Carro dos Deuses. Demais Keras não são braços de rios, antes os autores posteriores os tomam por cabos".

6ª "Que montes há cobertos de plantas odoríferas que bordam a costa do grande deserto ou como o ar cheio de vapores ígneos podia representar vulcões? Não vale dizer que na Senegambia acharia víveres e não voltaria por falta deles; pois os negros lhos negariam pelo julgar inimigo. Demais, onde na costa do deserto achariam gorilas?".

7ª "O Lixus não pode ser o Rio de Ouro; porque este não é rio, mas um esteiro ou boqueirão de mar, coisa que não podiam ignorar os lixistas. O promontório Hermes de Scyllax não pode ser o cabo Cantin, pois fica antes do Soloeis, que provavelmente o é; demais o seu nome vem dos bancos e parcéis que vão desde o Cabo Espartel, que se chamavam Hermae, segundo Avieno (Ora marit).

"Os montes da lagoa do Chretes devem ser ou antes do deserto, ou, passado ele, onde começam as terras altas, por isso pode ser o Senegal, ou o rio de S. João; o outro rio pode ser o Gâmbia.

"Desde o Cabo Bojador até Arguin a costa é árida, deserta e arenosa e desde Arguin é plaina, sem portos e sem abrigo até o Senegal.

"Será o golfo do Cabo de Sta. Anna o Notu-Keras? onde, voltada a cota, corre para Leste e o golfo fica exposto ao Sul? - As terras são muito baixas; não o creio.

"A circunstância de ser o mar além de Cerne cheio de baixos e de sargaço, que se observam nas alturas das Canárias, indica que Cerne ficava por estas vizinhanças.

"O mar de sargaço dos nossos descobridores começava em 24º da latitude e distava da costa d'África 300 milhas ou 75 léguas".

Vamos concluir o nosso trabalho, que apenas consistiu na divulgação de preciosos inéditos.

Diante do que deixamos escrito e transcrito, é lícito supor que todos os espíritos esclarecidos estarão habilitados a formar, de acordo com o seu próprio critério, uma idéia exata da extensão da viagem de Hannon.

Pensamos com José Bonifácio. Os nautas de Cartago, sucessores dos marinheiros da antiga Fenícia, muitos séculos antes dos portugueses, costearam grande parte do ocidente da África. Passaram-se os anos. Cartago desaparecera, e na memória dos homens já não restava a mais leve recordação do atrevido Périplo.

D. Henrique surgiu, afinal, para escrever uma das páginas mais brilhantes da história das navegações; seus nautas, novos e mais audazes fenícios, reproduziram, com igual sucesso, aqueles feitos esquecidos. Estava dado o vigoroso e fecundo impulso, de que devia resultar, mais tarde, para maior glória da velha e nobre Lusitânia, a descoberta da Índia e a do Brasil.

[...]


NOTAS:

[1] Edouard Cat - Les Grandes Découvertes Maritimes du Treizième au Seixième Siècle.

[2] Chateaubriand - Essai sur les révolutions - Chap. XXI Parallèle de Carthage et de l'Angleterre - Leurs constitutions - Vol. I.

[3] José Bonifácio, em um dos manuscritos que constituem o objeto deste trabalho, refutando Gosselin, que também comparou a viagem de Cook com a de Hannon, acha absurda tal comparação. Adiante terá o leitor ensejo de conhecer esta opinião do conspícuo brasileiro.

[4] Church, cuja obra adiante citaremos mais de uma vez, definindo a posição geográfica da Fenícia, usa de expressão idêntica: little strip of land, que ocupava the south eastern corner of the Mediterranean coast.

[5] Marinheiros fenícios ao serviço de Necháo, rei do Egito, segundo sustentam alguns eruditos, fizeram toda a circunavegação da África.

[6] Sobre essa ultra famosa Atlântida correm as mais desencontradas versões. Pretendem uns, que a Atlântida fosse a terra habitada pelas doze tribos e que o cataclisma, inseparável da referida lenda, diga respeito às ímpias cidades de Gomorra e Sodoma; outros colocam-na bem no centro da Ásia; Rudbek identifica-a com a Escandinávia; Oviedo, Mac-Culloch e outros, constituindo maioria, colocam-na na América, em diversas latitudes.

O nosso José Bonifácio era dos que acreditavam na lenda de Platão.

Entre os seus manuscritos de que adiante falaremos, encontramos algumas notas sobre esse curioso romance geográfico.

Eis essas notas, pela primeira vez publicadas e por nós revistas e interpretadas:

"Muitos têm por fabulosa a Ilha Atlântida de Platão; mas pode defender-se com muita plausibilidade a sua existência, ainda que concedamos que Platão largou as rédeas à sua imaginação poética.

"Em primeiro lugar notaremos as tradições constantes desde Sólon, que refere Platão e se confirma por Diodoro (lib.5, cap.15), que não quis fazer um apólogo aos atenienses. Demais, vislumbram-se notícias da Atlântida em Homero, Hesíodo, Eurípedes, Dionísio de Halicarnasso, Estrabão, Plínio etc. Em todos figura o rei Atlas, sábio astrônomo. O nome de oceano Atlântico vem da mais remota antiguidade.

"Voltaire (Diction. Philosoph.) e Mentelle (Encyclop. Geogr. Ancien.) crêem a existência da Atlântida nos sítios das Canárias, porém Rudbeck e Bailly a colocaram para as terras árticas. Kircher (Mund. subter. Lib.2 § 3) crê como Voltaire, e o mesmo acontece com Bekmann. A submersão da Atlântida devia influir fisicamente nas partes baixas do antigo mundo, até a Grécia. Os restos dos atlantes se refugiaram nas ilhas que escaparam aos terremotos e inundações; abismados, espantados, mortos de fome, sem comunicação entre si e o resto do mundo, caíram em estado de barbaridade e pensaram que o resto do mundo tinha perecido de todo, e que eles eram os únicos homens que existiam. Que barbaridade nos europeus de os acabarem de todo! Com a primeira submersão acabaram os monumentos das artes e ciências, as cidades, que não puderam nem se lembraram de ressuscitar.

"O Critias de Platão é um apêndice do Timeo. Pope Blount nota haver quem diga que Platão tirou as notícias da Atlântida de Philolao Pytagorico, que se acha na Biblioteca Imperial de Viena, e outras. Chacídio fez um comentário sobre o Timeo, que dedicou a Osio, bispo de Cordova.

"Sobre os atlântides vide Diod. Livro 3, págs. 132 e 133, o qual diz que no reino de Ammon os egípcios os conquistaram; e que Uranus fora o seu primeiro rei, que lhes ensinara a morar em cidades e a cultivar a terra, e que este reinou sobre grande parte do mundo e que da sua mulher Titœa teve 18 filhos, entre os quais Hipérion e Basilea, pais de Hélios e Selene; que os irmãos de Hipérion o mataram e mergulharam o seu filho Hélios no Nilo e dividiram o seu reino; e que as terras marítimas do oceano couberam a Atlas; os titanos são todos esses filhos de Urano e Titœa.

"As notícias de Platão no Timeo e Citias foram tiradas de um poema de Sólon, que o não acabara. Diz que os atlântides dois mil anos antes de Sólon reinaram sobre a Líbia, até o Egito, e sobre a Europa até o mar Tirreno; e que, reunindo todas as suas forças, invadiram a Grécia e Egito, e tudo o que se continha dentro das Colunas. Diz que Netuno, a quem tinha caído em sorte a ilha Atlântida, fez rei dela o seu filho mais velho, Atlas, e que uma parte desta ilha se chamava Gadir e que na história das sobreditas guerras se fazia menção de Cecrope, Erecteus, Erichtonius e outros anteriores a Teseu e também das mulheres que guerrearam contra os homens, e do vestido e estátua de Minerva, sendo nesse tempo a arte de guerrear comum a homens e mulheres.

"Parece, pois, que estes sucessos foram no tempo que medeia entre Cecrope e Teseu, e que Netuno possuía a ilha Iadir ou Gadir e toda a Líbia.

"Note-se que Homero diz que Ulisses, depois da guerra de Tróia, estivera na ilha Ogygia com Calypso, filha de Atlas. Esta Ogygia era a ilha de Cadir.

"Netuno com Apolo tinha fortificado Tróia, no reinado de Laomedonte, pai de Príamo.

"Ora, segundo os cretenses, segundo diz Diodoro (livro 5), foi o primeiro que equipou uma frota e Heródoto (2 c.0) diz que ele foi adorado primeiramente na África. Outros dizem que Japeto foi pai de Atlas. Agatareides (apud Photium) refere que os deuses do Egito fugiram dos gigantes até que os titanos vieram em seu socorro, fazendo fugir a Netuno. Higino (fábula 150) diz que houve guerra entre os deuses do Egito e os titanos comandados por Atlas. Donde parece que parte dos titanos seguiram Atlas e outros se lhe opuseram e era por esta razão, diz Plutarco, que sacerdotes do Egito abominavam o mar e não honravam a Netuno. É digno de reparo que Diodoro (livro I) diz que quando Osíris fez a sua expedição bélica deixou por governador da Líbia e Etiópia a Antœo, o que sabemos que edificou Tingis ou Tânger; e Píndaro (Pyth. ode 9) diz que Antœo reinava em Irasa, cidade da Líbia, onde depois se edificou Cirene. Segundo Diodoro, Antœo fora morto por Hércules, em dias de Osiris em Antœa ou Antœopolis, cidade da Tebaida. A fábula de que ele tirava forças de sua mãe terra quer dizer que Hércules interceptara as forças militares que vinham a seu socorro. Nessas guerras tomou Hércules a Líbia de Atlas e o obrigou a pagar tributo dos pomos d'ouro, isto é, das terras africanas.

"Antœo e Atlas, filhos de Netuno são, talvez, pelos seus feitos, uma e a mesma pessoa. As notícias mitológicas mais antigas dos gregos são relativas, pois, ao mesmo tempo, à Grécia, Egito e Líbia".

Entre os mesmos inéditos de José Bonifácio, aos quais vamos nos referindo, existem curiosas notas sobre os guanches, que ainda habitavam as Canárias quando ali chegaram os espanhóis e cujos costumes eram muito semelhantes aos dos egípcios. Como se sabe, os guanches embalsamavam os cadáveres e usavam construir pirâmides.

[7] Ouçamos Justino, traduzido por Church:

"Malgernus, King of Tyre, died, leaving behind him a son, Pygmalion, and a daughter, Elissa or Dido, a maiden of singular beauty. Pygmalion, though he was yet but a boy, the Tyrians made their king. Elissa married Acerbas, whom some also call Sichoeus, her mother's brother, and priest of Hercules Among the Tyrians, the priest of Hercules was counted next in honour to the king. Acerbas had great wealth, which he was at much pains to hide, so that, fearing the king, he put it away, not in his dwelling, but in the earth. Nevertheless the thing became commonly known. Thereupon King Pygmalion, being filled with covetousness, and heading not the laws of man, and having no respect to natural affection, slew Acerbas, though he was brother to his mother and husband to his sister. Elissa for many days turned away her face from her brother, but at last, putting on a cheerful countenance, feignet to be reconcilied to him. And this she did, not because she hated him the less, but because she thought to fly from the country, in which counsel she had for abettors many nobles of the city, who also were greatly displeased at the king. Whith this purpose she spake to Pygmalion, saying 'I have had enough of sorrow. Let me come and dwell in thy house, that I be no more reminded of my troubles'. This the king heard with great joyu, thinking that withy his sister there would also come into his hands all the treasures of Acerbas. But when he sent his servants to bring his sister's possessions to his palace she won them over to herself, so that they became partakers of her flight. Havin thus put alt her riches upon shipboard, and taking with her also such of the citizens as favoured her, she set sail, first duly performing sacrifice to Hercules. And first she voyaged to Cyprus, where the priest of Jupiter, being warned of the gods, offered himself as a scharer of her enterprize on this condition, that he and his posterity should hold the high priesthood for ever in the city which she should found. From Cyprus also she carried of a company of maidens, that they might be wives for her people. Now when Pygmalion knew that his sister had fled he was very wroth, and would have pursued after her and slain her. Nevertheless, being overcome by the entreaties of his mother, and yet more by fear of vengeance from the gods, he let her go; for the prophets prophesied, 'It will go wil with thee, if thou hinder the founding of that which shall be the most fortunate city in the whole world.'

"After these things Queen Elissa came to Africa, and finding that the people of those parts were well affected to strangers, and had a special liking for buying and selling, she made a covenant with them, buying a piece of land, so much as could be covered with the hide of an ox, that she might thereon refresh her companions, who were now greatly wearied with their voyage. This hide she cut into small strips that she might thus enclose a larger piece. And afterwards the place was called Byrsa, which is, being interpreted, the Hide.

"To this place came many of the people of the land, bringing merchandize for sale; and in no great space of time there grew up a notable town. The people of Utica also, which city had been before founded by the men of Tyre, sent ambassadors, claiming kindred with these new comers, and bidding them fix their abode in the same place where they themselves dwelt. But the barbarous people were not willing that they should depart from among them.

"Therefore, by common consent of all, there was built a fair city, to which the builders gave the name of Carthage; and it was agreed between Elissa and the people of the land that she should pay for the ground on which the said city was founded a certain tribute by the year. In the first place where they were minded to lay the fondations of the city there was found the head of an ox. Of this the sooth sayers gave this interpretation, saying - 'This signifieth a fruitful land, but one that is full of labour, and a city that shall ever be a servant to others.' Therefore the city was moved to another place, where, when they began to dig foundations again, there was found the head of a horse. Thereupon the prophets prophesied again - 'This shall be a powerful nation, great in war, and this foundation augureth of victory.'

"After these things, the city greatly flourishing and the beauty of Queen Elissa (for she was very fair) being spread abroad, Iarbas King of the Moors, sent for the chief men of Carthage to come to him; and when they were come he said - 'Go back to the Queen, and say that I demand her hand in marriage; and if she be not willing, then I will make war upon her and her city'. These men, fearing to tell the matter plainly to the Queen, conceived a crafty device. 'King Iarbas, said they, desireth to find some one who shall teach his people a more gentle manner of life; but who shall be found that will leave his own kinsfolk and go to a barbarous people that are as the beasts of the field?' The Queen reproved them, saying - 'No man should refuse to endure hardness of life if it be for his country's sake; nay, he must give to it his very life, if need be'. Then said the messengers - 'Thou art judged out of thine own mouth, o Queen. What therefore thou counsellest to others do thyself, if thou wouldst serve the country.' By this subtlety she was entrapped, which when she had perceived, first she called with much lamentations and many tear on the name of her husband Acerbas, and then affirmed that she was ready to do that which the will of the gods had laid upon her.

"'But first - she said - give me the space of three months that I may lament my former state.' This being granted to her, she built, in the furthest part of the city, a great pyre, where - upon she might offer sacrifices to the dead, and appease the shade of Acerbas before that she took to herself another husband. Upon this pyre, having first offered many sheep and oxen, she herself mounted, having a sword in her hand. Then looking upon the people that was gathered about the pyre, she said - 'Ye bid me go to my husband. See then, for I go'. Thereupon she drove the sword into her heart, and so fell dead.".

[8] Ouçamos agora o tradutor brasileiro de Virgílio:

"Colonia tyria no ultramar, Carthago,

Do Italo TIbro contraposta ás fozes,

Houve, possante emporio, antigo, asperrimo

Na arte da guerra"...

..........................................................

"Não mereço honras taes, replica Venus;

Usam de aljava, e ao bucho as virgens tyrias

Atar das pernas borzeguim purpureo.

Punicos reinos e agenorios muros

Vês, nos confins da indomita e guerreira

Libyca raça. O imperio atêm-se a Dido,

Que, por fugir do irmão, fugiu de Tyro.

É longa a injuria, tem rodeios longos;

Mas traçarei seu curso em breve summa.

Sicheu, Phenicio em lavras opulento,

Foi da misera esposo, e muito amado:

Com bom presagio o pai lhe dera intacta.

Pygmalion, façanhoso entre os malvados,

Barbaro irmão, do estado se empossara.

Interveio o furor: de fome de ouro

Cego, e á paixão fraterna sem respeito,

Perfido, impio, a Sicheu nas aras mata.

O facto encobre, e a credula esperança

Da amante afflicta largo espaço illude

Com mil simulações. Mas do inhumado
Consorte, com esgares espantosos,

Pallida em sonhos lhe apparece a imagem:

Da casa o crime e trama desenleia;

A ara homicida, os retalhados peitos

Desnuda, e á patria intima-lhe que fuja:

Prata immensa e ouro velho, soterrados,

Para o exilio descobre. Ella, inquieta,

Apressa a fuga, e attrahe os descontentes

Que ou rancor ao tyranno ou medo instiga;

Acaso prestes naus, manda assaltal-as;

Dos thesouros do avaro carregadas

Empégam-se: a mulher conduz a empresa!

Chegam d'alta Carthago, onde o castello

Verás medrando agora e ingentes muros:

Mercam solo (do feito o alcunham Byrsa)

Quanto um coiro tourino abranja em tiras."

........................................................

[9] Chateaubriand - Essai sur les révolutions - Vol. I - Cap. XXX.

[10] The Story of the Nations - The Story of Carthage, by Anfred J. Church, M. A. professor of Latin in University College London, Author of the "Stories from Homer", etc. etc., with the collaboration of Arthur Guilman, M. A. Author of "Story of Rome", "History of the American People", etc. etc. Part III. The Internal History of Carthage - I - Carthaginian Discoverers - New York - G. P. Putnam's Sons - MDCCCLXXXIX.

[11] Será a nossa ex-Província de Santa Catarina: Mas esta não poderia ser considerada um distrito. Haverá em Portugal alguma Santa Catarina?

[12] Um "oficial da Secretaria d'Estado dos Negócios Estrangeiros", antes da Independência, nos temos em que d. João veio para o Brasil, poderia residir fora daqui?

[13] Estas palavras fazem pensar em informações que deveriam ter sido pedidas, por via diplomática, ao Brasil.

[14] Uma viagem ao Brasil?

[15] O que está de acordo com o que diz José Bonifácio, que o considerava "um dos nossos melhores filólogos".

[16] Ainda de acordo com José Bonifácio, que o considerava "um dos nossos melhores helenistas", "homem muito douto".

[17] a) Sendo este o único fim, limitamo-nos em nossas Ilustrações a falar tão somente ao que pertence à rota desta navegação, por se saberem os lugares, que nela se descobriram, e os limites em que terminou esta viagem, o mais que se poderá, e tratam os comentadores fica alheio do nossos assunto.

[18] b) Barros Decad. 1 L. 1. c. 4 f. 10, e com ele o autor inglês da Hist. das Viagens, Tom. I.

[19] c) Gossellin confirma que este juízo com exemplos da Navegação do Mar do Sul, com os de Cook etc.

[20] d) Veja-se João Alberto Fabricio no Tom. I, da Biblioteca Grega.

[21] e) Fabricio quer que a passagem de Plínio se entenda de uma segunda viagem; mas não mostra antigo documento donde ela conste, para assim interpretar este lugar.

[22] Conhecia José Bonifácio, como erudito profundíssimo, quanto é fácil o desfigurar em linguagem hodierna e em moderno estilo de pensar e de dizer, as obras primas da antiguidade, e quanto é difícil com as escassas tintas dos nossos presentes idiomas o retratar fielmente o pensamento dos antigos e a sua forma individual e característica. Doía-lhe, porventura, a consciência de que tantos noviços literários, apenas com uns longes de erudição, mal avindos com a linguagem do original, e ainda menos adestrados na boa e castiça fala nacional, ousassem arremeter com a versão dos grandes escritores, que são como sagrados monumentos dos quais a ninguém é dado aproximar-se, sem que venha aparelhado com a preparação sacramental de uma sólida filologia, e quase diríamos em estado de graça literária.

Quem, sem fundados receios de macular a pureza da antiguidade, ou profanar a realeza intelectual dos engenhos de eleição, se atreverá a cometer a empresa temerária de os fazer falar em nosso comum dizer? Quem dirá de si, com aparências de verdade, que levantou de novo a tribuna ateniense, e que elevando a ela o antagonista ardente de Felipe o Macedônio, o fará proferir em português os másculos incisos da Oração da Coroa, da Falsa Embaixada, das Filípicas? Quem poderá verter exatamente nas linguagens analíticas neo-romanas, o Integer vitœ, scelerisque purus, o Nunc est bibendum, o Carmen Seculare, do elegante vate venusino?

Quem, entre os modernos, pode calçar, sem o perigo de uma queda, o coturno de Ésquilo ou de Sófocles? Menos corretos e formosos na pureza do desenho e na casta simplicidade do estilo e locução, se nos afiguram os poetas que cinzelaram os seus cantos nas linguagens meio-bárbaras saídas do latim ou do saxônio, os Dantes, os Shakespeares. E todavia quem, sem tacha de vaidade, se prezaria de entalhar em caracteres semelhantes, em romance do nosso tempo, a inscrição que o vate florentino deixou gravada no sinistro portal do seu inferno: Quem renovaria os furores sublimes de Otelo ou desenharia do natural a jocosa figura de Falstaff nos Merry Wives of Windsor?

Traduzir as obras dos mais altos engenhos literários é como se fora embeber em si o espírito de Homero, de Virgílio, de Milton, de Cervantes. É vestir de novo as armas adamantinas destes guerreiros do pensamento, e entrar com eles em certame desigual. A melhor versão é sempre, comparada com o original, como a gravura, que dá apenas os contornos para o painel, onde a luz e o colorido trasladam vivamente para a tela a inspiração e aa alma do pintor. É como a ave embalsamada, em uma galeria zoológica para a ave animada, que revoa, ostentando ao sol a formosura da plumagem, saltitando nos ramos da floresta, desferindo os seus cânticos de amor e de saudade, e entrando no sublime concerto do Universo com as vivas manifestações da existência individual.

Nas obras da fantasia o pensamento é inseparável da forma, em que o poeta o concebeu e o modelou. O metro, a frase, o próprio lugar de cada vocábulo na textura da oração, a música da palavra, o ritmo e número do período, quem poderia trasladá-los para uma alheia linguagem, dessemelhante na estrutura, na riqueza, na harmonia? Bem podemos das versões, que se jactam de fiéis, dizer o que Horácio futurava dos que buscassem emular com asas inconsistentes e fragílimas os vôos do grande lírico tebano:

"Pindarum quisquis studet œmulari,

Jule, ceratis ope Dœdalea

Nilitur pennis, vitreo daturus

   Nomina ponto."

E se das melhores e das mais corretas versões dos grandes escritores se pode asseverar que são apenas umas descoradas imitações, uns mal enfeitados arremedos, uns painéis de morte-cor, uns como transuntos imperfeitos de estátua de Praxíteles, copiada não em mármore de Paros, mas em basalto ou em granito, onde se perde o macio dos contornos e o aveludado da carnação, que diremos destas mal agouradas trasladações, onde falta a inteligência do assunto, a da linguagem do autor, e a do idioma nacional? Onde míngua sobretudo o gosto e a discrição? Estas serão como caricaturas e grotescos, em que aparecem aleijados e disformes os mestres eminentes da palavra. Serão menos do que os Grilos, aquelas ridículas e estranhíssimas figuras que, na decadência da pintura, os artistas degenerados faziam suceder às formosas criações da arte helênica.

No Discurso historico recitado na sessão publica da Academia Real de Sciencias, a 26 e julho de 1819, pág. XVII, nota, prescreve José Bonifácio as regras que se devem observar para que nas versões dos antigos escritores não fiquem desfigurados os modelos mais formosos das artes da palavra. Como exemplos de versão acurada e primorosa, comemora José Bonifácio, entre outros, os Fenômenos de Arato, vertidos por Cícero, a Ilíada trasladada por Voss, Pope e Cesarotti, Lucrécio interpretado por Marchetti, Virgilio por Annibal Caro e Dryden" - Latino Coelho - Elogio Historico de José Bonifacio de Andrada e Silva - Nota 28.

[23] "José Bonifácio de Andrada e Silva é mais conhecido geralmente em Portugal e no Brasil como o principal e o mais ardente propugnador da independência brasileira do que pela sua glória de profundo mineralogista, inscrita com memórias indeléveis nos fastos da ciência". - Latino Coelho. Obra cit.

[24] Latino Coelho. Obra cit. Entre os manuscritos de José Bonifácio, adiante citados, há, em um pequeno pedaço de papel, a seguinte frase que era naturalmente um tema a desenvolver:

"Deixadas as idéias acanhadas do egoísmo econômico, quem haverá com juízo no mundo moral e civilizado que queira excluir da classe produtora das sociedades civis ao sábio, que engrandece o império das idéias, e ao homem de letras, que enobrece os sentimentos do coração? Não produzem eles verdadeira riqueza de inestimável valor e de eterna duração?"

[25] A Biblioteca Nacional possui um exemplar desta obra preciosa e hoje raríssima.

A oficina não era de Trobenio, como diz Ribeiro dos Santos, mas sim de Froben ou Frobeniana. Eis o que vem no frontispício do livro: "Segismundvs Gelenivs Anselmo Ephorino Medicos. Periplus de Arrianus et Hannonis. Plutarchvs de fluminibus & montibus. Strabonis epitome. Frobn-Basiléa - MDXXXIII."

[26] José Bonifácio dá-nos notícia de uma outra edição espanhola - a do marquês de Val-de-Flores, publicada nos seus Annaes de Hespanha p. 126.

[27] Há ainda a tradução de Chateaubriand, magnífica, e a de Malte-Brun, que José Bonifácio reputava má.

[28] Há outras edições, que Ribeiro dos Santos não cita, e traduções posteriores. Lembramo-nos das seguintes: a de Fribourg, por J. Léon, 1808 in 4º; a de Paris, por Gail, em 1826; a de Chateaubriand; a de Leipzig, por Kluge e C. Müller, em 1829; a de Church, na Historia de Carthago. É preciso não esquecer que Vivien de Saint Martin, no Nord de l'Afrique dans l'antiquité grecque et romaine comentou o Périplo.

[29] A Biblioteca Nacional possui a obra de Campomanes.

[30] O livro de Falconer existe também na Biblioteca Nacional.

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