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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Império (5)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 806 a 830):
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SEGUNDA PARTE - INDEPENDÊNCIA OU MORTE!

Capítulo III - Fundação do império (cont.)

[...]

Embarque de tropas na Praia Grande de Niterói, para a expedição contra Montevidéu

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Da dissolução à abdicação

Dissolvida a Assembléia Constituinte, para cujo atentado influiu poderosamente no ânimo de d. Pedro a ambiciosa amásia paulistana que para isso recebera alta soma, segundo contamos - achava-se d. Pedro incapaz de resistir aos caprichosos impulsos de seu temperamento desordenado. Além da favorita, ávida por dinheiro e apetitosa de gloríolas, cercavam-no os lacaios do Paço, em cuja ordinária convivência muito ele se comprazia, e os políticos sem escrúpulos que queriam subir por amor das posições e para melhor se vingarem dos que os tinham afastado das eminências da Corte. A maioria dos homens sinceros e dignos não freqüentavam São Cristóvão.

A Assembléia Constituinte cumprira nobremente os deveres de seu mandato até o fim. Se - ouvindo as insinuações do imperador, sugestionado pela concubina, pela Tropa e pelo bando famélico dos políticos que as ambições devoravam - tivesse ela decretado a expulsão dos Andradas de seu grêmio, com toda a certeza não teria sido dissolvida, mas se desonraria perante a História e cobri-la-ia de merecidos anátemas o juízo irrevogável da Posteridade.

Eliminado, pois, esse entrave oposto aos planos dos que visavam postos, embora sacrificando a Pátria, começa rapidamente a decomposição do primeiro reinado. Entra-se na fase típica do deboche, das prodigalidades e da irresponsabilidade governamental. Enquanto os cortesãos se afogam na ebriedade dos festins palacianos, a integridade da Nação é ameaçada, os patriotas são perseguidos, a liberdade é violentada, e, nos patíbulos que se levantam nas províncias rebeldes, os partidários da Independência estrebucham executados sem forma jurídica de processo.

Dona Domitila é elevada a viscondessa e depois a marquesa de Santos, a filha havida de seu concubinato com o imperador é reconhecida pelo pai, que lhe dá o título de duquesa de Goiás, e a leva para o Paço a fim de educar-se ao lado dos príncipes de sangue, atormentando com a presença odiosa da princesa espúria a alma sofredora de dona Leopoldina.

Os progenitores da nova titular são também agraciados com um viscondado. O cunhado de dona Domitila - Rodrigo Delphim Pereira - com cuja esposa, irmã daquela, o imperador mantivera na mesma quadra relações ilícitas, das quais nasceu um filho, que foi contemplado no testamento do pai adulterino - viu-se guindado ao nobre título de barão de Sorocaba, em compensação de sua marital benevolência.

A 25 de março de 1824 jurava-se a Constituição outorgada pelo imperador e elaborada pelo Conselho d'Estado, propositadamente nomeado para esse fim, e que nada fez senão copiar o projeto em andamento na Constituinte, dando-lhe melhor forma quanto à redação, instituindo o Poder Moderador, permitindo a dissolução da Câmara dos Deputados, sob a condição de convocar outra imediatamente, e ampliando mais satisfatoriamente a liberdade de cultos, que era estreitamente limitada no primitivo projeto.

Sob esse tríplice aspecto, a Carta de 1824 é superior, inquestionavelmente, ao Projeto de 1823. Segundo afirma VASCONCELLOS DE DRUMMOND [1], o Projeto que o imperador submeteu à discussão no Conselho d'Estado e que foi convertido na Carta Constitucional de 1824 - era da lavra de Martim Francisco, que o tinha apresentado em tempo ao Apostolado.

Ao se efetuarem as buscas e apreensões de papéis na sede daquela sociedade, por ordem do Governo, após o golpe d'Estado de 12 de novembro, o Projeto de Martim foi encontrado e levado ao imperador que, na forma de seu inveterado costume, o teria submetido a debate no Conselho como obra pessoal de seus admiráveis e espontâneos talentos de jurisconsulto ingratamente menoscabado pelos invejosos.

Acrescenta DRUMMOND ter sido ele próprio quem passou a limpo a respectiva minuta antes da apresentação ao Apostolado. Jurada no Rio a 25 de março de 1824, pelos imperantes e autoridades civis e eclesiásticas, foi o exemplo da Corte seguido pelas províncias [2].

Para algumas destas - as mais importantes - havia o imperador nomeado presidentes em substituição das Juntas Provisórias. A presidência de S. Paulo coubera a Lucas António Monteiro de Barros (depois visconde de Congonhas do Campo), que serviu de 1º de abril de 1824 até 4 de abril de 1827.

Para Pernambuco foi nomeado Francisco Paes Barreto (mais tarde visconde do Recife), com o que se não conformaram os naturais da província, cujo civismo tradicional a dissolução da Constituinte exacerbara contra o imperador. Rebela-se heroicamente o povo, chefiado por Manuel de Carvalho Paes de Andrade, presidente da Junta Governativa, e separa-se do Império, proclamando a  2 de julho a Confederação do Equador, sob a forma republicana, com a adesão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.

Jugulado a 18 de outubro pelas forças imperiais de terra e mar, foram seus promotores julgados breve, verbal e sumarissimamente por terríveis comissões militares nomeadas para este fim por carta de 16 de outubro do mesmo ano. Foram executados no Recife, no Ceará e no Rio 17 réus, entre os quais o literato português emigrado João Guilherme Ratclif.

Na Bahia, a 25 de outubro do mesmo ano, dá-se um conflito militar, no qual sucumbe, atirado pela soldadesca, Felisberto Gomes Caldeira Brant, comandante das Armas, suspeito principalmente ao Batalhão dos Periquitos, fatos principal da sedição e declaradamente simpático à República Pernambucana.

Ainda não cessara a agitação das províncias do Norte e já no extremo Sul, a Cisplatina, aproveitando-se da excelente oportunidade que se lhe deparava, separa-se do Brasil, proclama um governo provisório e declara-se independente sob a proteção das Províncias Unidas do Prata, que depois a incorporam ao seu território. Após reveses e vitórias em mar e terra, entre o Brasil e a Argentina, resolvem ambos os governos reconhecem o Uruguai como nação independente a 27 de agosto de 1828.

Por causa dessa guerra desastrosa, para estimulá-la e dar com a sua presença vigoroso incentivo às nossas tropas, embarcou-se d. Pedro para o Rio Grande do Sul, que era então presidido pelo nosso conterrâneo José Feliciano Fernandes Pinheiro. Enquanto lá se achava, sua dedicada consorte dona Leopoldina sucumbia a 11 de dezembro de 1826, às conseqüências das brutais pancadas que lhe aplicara seu marido antes de partir, e após uma violenta altercação que tiveram por causa da preponderância da marquesa de Santos, quer nos negócios privados e domésticos do imperador como na própria vida política do país.

Entregando ao marquês de Barbacena o comando supremo do Exército, volta ele apressadamente ao Rio, onde modifica o Ministério no mesmo dia de sua chegada, não por motivo de ordem pública, mas porque a orgulhosa concubina lhe escrevera, mostrando-se muito enfadada com os ministros que tinham proibido a sua entrada na alcova onde a abnegada imperatriz agonizava.

O novo Ministério ficou assim organizado: Marinha, d. Francisco de Sousa Coutinho, marquês de Maceió; Estrangeiros, João Severiano Maciel da Costa, marquês de Queluz; Justiça, Clemente Ferreira França, marquês de Nazaré; Império, José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de S. Leopoldo; Guerra, João Vieira de Carvalho, conde de Lajes. Queluz ficou interinamente com a Pasta da Justiça.

Antes de sua viagem ao Sul, estivera d. Pedro na Bahia, para onde partira a 3 de fevereiro de 1826, a fim de restaurar a tranqüilidade desaparecida na província por causa das rivalidades entre portugueses e brasileiros. Regressa ao Rio, tendo conseguido seu desiderato, a 1º de abril; dias depois recebe a notícia de que fora aclamado rei de Portugal, em lugar de seu pai, falecido a 10 de maio, em conseqüência de um tóxico que lhe propinara, segundo se afirma, o cirurgião Theodoro de Aguiar, natural do Brasil, e a quem pouco depois aplicaram a mesma pena [3].

A Independência do Brasil fora reconhecida finalmente pelo governo português, a 24 de agosto de 1825, ainda em vida de d. João VI, sob condições onerosas para nós e indignas da altivez e do heroísmo com que efetivamente a tínhamos conquistado de armas na mão e à custa do sangue de tantos abnegados patriotas.

Além de outorgar ao velho monarca o título honorífico de Imperador do Brasil, d. Pedro, aceitando o que dispunha uma convenção secreta aditada ao Tratado, obrigou o nosso Tesouro, sem licença da Nação, a assumir a responsabilidade da importância de 1.400.000 libras de um empréstimo contraído em Londres pelo governo português, justamente para custear as despesas da guerra contra nossa independência, e mais 600.000 libras ao rei seu pai, como indenização pela propriedade da Quinta da Boa Vista e outras que aqui deixara.

Morto d. João, e proclamado para suceder-lhe d. Pedro, este hesitou durante algum tempo se deveria ou não reinar nos dois países e a esse respeito dirigiu a seus conselheiros d'Estado cinco quesitos escritos de seu próprio punho, pedindo-lhes que se manifestassem em relação à matéria.

O visconde de S. Leopoldo opinou por que Sua Majestade reinasse nas duas pátrias. O seu voto acha-se apenso às suas Memórias, coordenadas pelo barão Homem de Mello. Predominou, porém, no espírito de d. Pedro a opinião dos políticos que sensatamente se opunham à sua ascensão ao trono de Portugal; e depois de ter, por decretos: de 25 de abril, concedido uma anistia geral aos réus políticos de Portugal; de 27, outorgado ao velho Reino uma Carta Constitucional vazada nos moldes da Brasileira; de 29, nomeado os membros que deviam formar a Câmara dos Pares; de 30, confirmado sua irmã, a princesa Isabel Maria, na Regência; assinou a 1º de maio outro decreto abdicando a coroa de seus antepassados em sua filha dona Maria da Glória, com a condição de casar-se com o infante d. Miguel e de este jurar a Constituição outorgada. D. Maria, rainha de Portugal, partiu para a Europa, a 11 de junho de 1828, em companhia do marquês de Barbacena.

A agitação popular continuava, entretanto; em Pernambuco, em 1829, deram-se graves conflitos, que foram logo sufocados pela Força, suspendendo-se na província as garantias constitucionais e instituindo-se comissões militares para julgar os sediciosos.

Dona Amélia de Leuchtenberg (segunda esposa de d. Pedro I)

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A 17 de outubro do mesmo ano [4], casou-se d. Pedro, em segundas núpcias, na Capela Imperial do Rio de Janeiro, com a linda princesa dona Amélia, filha do duque de Leuchtenberg (príncipe Eugénio de Beauharnais). Em comemoração desse acontecimento, criou-se a Ordem da Rosa.

Entre o imperador, com suas tendências absolutistas, não obstante seus reiterados protestos de constitucionalismo, e a nova Assembléia Legislativa, que se instalara a 6 de maio de 1826, zelosa de suas prerrogativas, não tardara a manifestar-se a mais absoluta incompatibilidade. Mas a Assembléia mantinha-se, como a Constituinte de 1823, ativa e soberana dentro de suas legítimas atribuições, não se atemorizando com o sobrecenho carregado que lhe mostrava com freqüência o imperador, irritado com seus assomos de independência legislativa.

A 28 de fevereiro de 1830, o presidente da Bahia, visconde de Camamu, é assassinado a tiros, sintoma de que perdurava a agitação ao Norte. Notícias chegadas da França, a 14 de setembro, dão conta da revolução de julho que destronara Carlos X; e os liberais brasileiros mostram-se exaltados e esperançosos com esse acontecimento político, tal a influência que Paris exercia e exerce ainda hoje sobre o ânimo dos nossos compatriotas.

Em S. Paulo, é assinado de emboscada, à porta de sua casa, o jornalista Libero Badaró, na noite de 26 de novembro. Imputou-se ao ouvidor Cândido Ladislau Japiassú a autoria do crime como seu mandante imediato, e a opinião pública acusou d. Pedro de ter influído para sua perpetração.

No entanto, a província de Minas, cada vez mais desassossegada, pregava abertamente a federação republicana como uma necessidade política inadiável. O imperador, persuadido enganosamente de que ainda se achava em meados de 1822, para lá partiu com a imperatriz e uma grande e pomposa comitiva, a 30 de dezembro, na esperança de conseguir pôr um termo feliz à agitação reinante. Recebido com a mais significativa frieza por parte das populações que visitou, observando de perto o mau efeito que produzira em Ouro Preto a sua proclamação de 22 de fevereiro de 1831, regressa, apreensivo e desgostoso, à Corte, a 11 de março.

Cerimônia do segundo casamento de d. Pedro I

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Noite das garrafadas

Os portugueses, em vista do silêncio com que a população nacional o recebera, resolveram promover-lhe grandes manifestações, o que fizeram ruidosamente a  13 e 14 de março, travando-se, durante a noite desses dias, tremendos conflitos entre os dois elementos rivais, conflitos esses provocados pelos negociantes lusos das ruas da Quitanda, do Rosário e do Hospício, os quais, munidos de fundos de garrafas, agrediram os cidadãos brasileiros, que repeliram como puderam tão insólita quão petulante agressão.

No dia 17, reuniram-se em casa do padre José Custódio Dias, o senador Nicolau Vergueiro e mais 23 deputados, que resolveram encarregar Evaristo Ferreira da Veiga de redigir uma enérgica representação ao imperador contra o procedimento dos portugueses e pedindo-lhe que desafrontasse a dignidade nacional.

Como única e insuficiente providência, d. Pedro substituiu o Gabinete por um outro, composto exclusivamente de brasileiros natos. Eram eles: Bernardo José da Gama (visconde da Goiana), na Pasta do Império; Manuel José de Sousa França, na da Justiça; José Manuel de Almeida, na da Marinha; e brigadeiro José Manuel de Moraes, na da Guerra.

Permaneceram na Pasta dos Estrangeiros, Carneiro de Campos, e na da Fazenda, António Francisco de Paula Hollanda Cavalcânti de Albuquerque (depois visconde de Albuquerque), que vinham do Gabinete anterior.

O novo governo foi mal recebido pela opinião mais exaltada, por lhe faltar a energia necessária para enfrentar corajosamente a situação que se agravava dia a dia. Depois de sua organização, incrementou-se mais fortemente a propaganda federalista. O País, inteiramente desiludido de d. Pedro e dos que o dominavam, reatava as suas tradições, apelando novamente para a solução republicana.

A obra de José Bonifácio estava prestes a ruir por terra, estrondosa e desastradamente. As demonstrações públicas a respeito eram inequívocas. As facções radicalistas, organizadas militarmente, alastram-se pelos diversos distritos da Capital, pregando abertamente a revolução mesmo em frente dos Quartéis, cujos soldados coroam de aplausos a audaciosa propaganda.

Evaristo da Veiga, pelas colunas da Aurora Fluminense, concita o governo a atalhar, por meio de medidas aceitáveis, o incêndio que lavra entre a população e já começa a dominar as fileiras das Tropas legais. D. Pedro, descontente com a inércia de seus novos ministros, resolve dar-lhes substitutos a 5 de abril, mas, com tamanho descaso pelo clamor dos povos, que foi escolhê-los fora da Assembléia Legislativa e entre os mais retrógrados elementos da facção áulica que a população carioca detestava.

Para a Pasta do Império, chamou Pereira da Cunha (marquês de Inhambupe); para a da Marinha, Villela Barbosa (marquês de Paranaguá); para a da Guerra, o conde de Lajes; para a da Justiça, João Ignácio da Cunha (visconde de Alcântara); para a dos Estrangeiros, o último capitão-general de S. Paulo, João Carlos de Oeynhausen (marquês de Aracaty); e para a da Fazenda, Nogueira da Gama (marquês de Baependi).

Era um desafio temerário à opinião liberal do País. Parecia mesmo que o imperador timbrava em dar uma solução definitiva à crise que vinha perturbando a marcha de seu governo desde a queda do Ministério Andrada. Desta vez - ou, vencedor, esmagaria as facções rebeldes, ou, vencido, retirar-se-ia de seu posto para todo o sempre.

De há muito que lhe vinham apelos da outra banda do Oceano para que fosse libertar sua pátria de origem, do regime absolutista que lhe impusera o infante d. Miguel, dissolvendo as Cortes, revogando a Carta Constitucional e usurpando à sua sobrinha e noiva, a rainha dona Maria da Glória, a coroa que nela abdicara seu pai.

A esses apelos insistentes, devemos juntar o desejo de desforra que se despertara no coração de d. Pedro, indignado com a traiçoeira conduta de seu irmão; e, por fim, a própria luta permanente em que vivia no Brasil, onde sua impopularidade aumentava a cada momento, aconselhava-o a regressar a Portugal.

Era preciso, porém, que os próprios brasileiros lhe dessem um pretexto para a retirada, a fim de que não parecesse que ele os abandonava ingratamente à sua triste sorte, em circunstâncias tão críticas. Esse pretexto aparecera agora e convinha aproveitar-se dele. Melhor oportunidade não se lhe apresentaria para salvar-se das dificuldades que o atormentavam aqui e de prestar ao seu amado país natal um assinalado serviço - o de restaurar o constitucionalismo e reconquistar para a filha o trono que lhe fora arrebatado de surpresa, pela ilegitimidade de um golpe de força. Obedecendo a tal ordem de pensamentos, visam todos os seus atos agravar a situação da capital do Império.

Logo que, no dia 6, foi conhecida a imprudente modificação ministerial, principiou o povo a reunir-se, em ondas cada vez mais frementes, no Campo da Aclamação. Oradores patrióticos excitavam-no a reagir contra aquela agressão afrontadora de sua dignidade; e uma comissão composta dos juízes de paz de Sant'Anna, S. José e Sacramento levou à presença de d. Pedro uma respeitosa representação popular, pedindo-lhe para demitir o novo Gabinete e reintegrar o que fora demitido, caso não preferisse nomear um Ministério novo, constituído de elementos liberais.

Às 7 horas da noite, dava entrada no Paço de S. Cristóvão a aludida comissão, à qual o imperador, estribado na sua prerrogativa constitucional de nomear e demitir livremente seus ministros, declarou que não podia atender ao que se lhe pedia, acrescentando textualmente: "Estou pronto a fazer tudo para o povo - nada, porém, pelo povo..."

Essa impolítica resposta mais exacerbou a multidão em revolta; pelo que, a pedido de cidadãos influentes, dirigiu-se pessoalmente ao monarca o próprio comandante das Armas, brigadeiro Francisco de Lima e Silva, a quem, entretanto, respondeu d. Pedro que preferia a abdicação ou a morte à desonra de submeter-se à imposição do povo. Quando o emissário regressou com a resposta imperial, já encontrou, no Campo, em fraternidade com a multidão, o 1º Batalhão de Infantaria de Linha e o 2º Corpo de Artilharia, aos quais logo se agregou o 1º Batalhão de Granadeiros.

Até a Guarda de Honra ou o Batalhão do Imperador, comandada pelo coronel Manuel da Fonseca Lima e Silva, ao ter conhecimento do que ocorria na cidade, abandonou o Paço da Boa Vista e incorporou-se aos outros Corpos que se achavam no Campo, ao lado do povo insubmisso.

Cerca de meia noite, todos os outros contingentes militares da Guarnição da Corte havia aderido expressamente ao movimento. Resolveu nessa ocasião o comandante das Armas mandar ao imperador seu ajudante de ordens solicitar-lhe que anuísse quanto antes à vontade popular.

Compreendeu então d. Pedro que tinha perdido a cartada e profunda depressão moral o abateu subitamente. Só via uma saída airosa: a abdicação, em que ele mesmo pensara tantas vezes. No momento, porém, de dar-lhe execução, faltou-lhe o ânimo. Àquela natureza amorável e efetiva acudira de repente uma revoada de recordações ligadas à sua longa existência neste hospitaleiro torrão. Para aqui viera ainda na infância; aqui crescera, fizera-se homem, amara, constituíra família, tinham-lhe dado o trono de um poderoso império juvenil. Em contato com os nossos maiores vultos, e sob a imponente sugestão deste meio físico tão belo e tão caroável - transcorrera-se a quadra porventura mais deleitosa de sua acidentada existência, aquela em que, vigoroso de espírito e bondoso de coração, seus sentimentos foram-se abrindo para os doces prazeres da afetividade e para as asperezas da luta.

Uma como que saudade antecipada daquilo que estava prestes a perder para sempre anuviava-lhe os olhos planturosos, cerrava-lhe o peito agoniado e punha-lhe na palidez do semblante profundos sulcos de melancolia. Resolve, então, conjurar a crise que ele mesmo agravara e complicara irremediavelmente; e manda procurar o senador Nicolau Vergueiro para organizar um governo de acordo com os insistentes votos da população.

O intendente de Polícia, desembargador Lopes Gama, que saíra à procura do egrégio varão paulista, regressou ao Paço pelas duas e meia da madrugada de 7, declarando que não tinha podido encontrá-lo. A uma pergunta do imperador, sobre a marcha dos acontecimentos, respondeu que, à exceção de dois Regimentos, toda a Força da Guarnição estava ao lado do povo. Entendendo bem o sentido exato da resposta, não mais hesitou em executar sua meditada resolução. Desde que nomeara no dia 5 o Ministério composto apenas de áulicos, tinha tomado as providências indispensáveis para o pleno êxito de seu ato.

Casa de propriedade e residência de José Bonifácio, na Ilha de Paquetá, no Distrito Federal (estado atual) (N.E.: em 1922)

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Os Andradas já tinham voltado do exílio. António Carlos e Martim Francisco, submetidos a processo por crime de sedição, apresentaram-se às autoridades, sendo recolhidos a uma prisão da Ilha das Cobras - a 4 de julho de 1828 -, e de lá somente saíram depois de absolvidos pelo tribunal competente [5], a 6 de setembro do mesmo ano. Ainda na prisão, Martim, convidado para aceitar uma pasta ministerial, recusou o convite. Fazia questão de que, primeiro, a justiça pública proclamasse sua absoluta inocência. José Bonifácio tinha-se recolhido a uma vivenda rústica que adquirira na Ilha de Paquetá e ainda hoje lá existe, sem merecer a mínima atenção efetiva por parte dos Poderes Públicos da pujante Nação que ele fundou.

Fomos visitá-la, em certa manhã do mês de janeiro de 1919. Pertencia nessa época a um irascível compatriota nosso que, ao empossar-se dela, mandou arrancar-lhe de um dos lados do portão a placa que aí fora colocada em recordação de seu primitivo e ilustre morador. Quem quiser prestar-lhe homenagens - disse-nos, com um sorriso ácido no rosto azedo, o dono da chacrinha histórica, um certo capitão Ascendino - que lhe adquira primeiro a propriedade. E a muito custo deixou-nos transpor o portão, mas não nos permitiu o ingresso dentro da casa, que só pudemos observar de fora.

O corpo da frente é de construção relativamente moderna. Dos tempos do Patriarca só existem os cômodos interiores - da sala de jantar à cozinha - baixos, acanhados e sombrios, como de fora se nos afiguraram. À frente, aos lados e aos fundos há uma vasta área não cultivada. Vêem-se no antigo quintal algumas frondosas mangueiras venerandas, à cuja refrigerante sombra descansava o Patriarca nos dias cálidos, contemplando os descuidosos folguedos de seus amados netinhos ou meditando, nas horas de apreensões patrióticas, sobre a complexidade e a dificuldade de nossos problemas políticos, sobre a tristeza da situação presente, sobre os desatinos irrefreáveis do imperador, sobre o espírito insurrecional predominante na generalidade das facções chamadas liberais, sobre os perigos sem conta que corria a Pátria [NOTA SUPLEMENTAR].

Foi a essa casa histórica - que um povo mais venerador de suas glórias reais teia de há muito convertido em verdadeiro templo de civismo - que, pelas três horas da tarde de 6 de abril de 1831, chegou o sr. Henrique de Gazotte, vice-cônsul da França, levando para o consagrado ancião a seguinte carta de d. Pedro: "Amicus certus in reincerta cernitur. É chegada a ocasião de me dar mais uma prova de amizade, tomando conta da educação de meu muito amado e prezado filho, seu imperador. Eu delego em tão patriótico cidadão a tutoria do meu querido filho e espero que, educando-o naqueles sentimentos de honra e de patriotismo com que devem ser educados todos os soberanos, para serem dignos de reinar, ele venha um dia a fazer a fortuna do Brasil, de quem me retiro saudoso. Eu espero que me faça este obséquio, acreditando que, a não m'o fazer, eu viverei sempre atormentado. Seu amigo constante - Pedro".

José Bonifácio, posto minuciosamente a par dos fatos pelo sr. Gazotte, respondeu sem hesitar a d. Pedro que aceitava a honrosa incumbência que lhe deferia naquela hora de extrema gravidade para os destinos do País. O emissário, que partira do Rio, em bote, às 9 horas da manhã, só pôde regressar ao Paço de S. Cristóvão, onde o imperador impaciente o aguardava, cerca das 10 horas da noite [6].

A resposta nobre, generosa e tocante do sábio amigo, de cujos conselhos se afastara nos momentos críticos, encheu de grande satisfação a alma do atribulado monarca. Quando, pois, o intendente de Polícia voltou com a nova de que não conseguira descobrir Vergueiro, já d. Pedro, de posse da reconfortadora carta daquele que jamais deixara de ser seu amigo e paladino de sua autoridade majestática, não mais podia contemporizar com os homens nem se iludir com o desfecho da crise.

Chamou a um gabinete os representantes diplomáticos da Inglaterra e da França, que se achavam no Paço, e depois de ter conferenciado com eles por espaço de dez minutos, voltou, e procurando com os olhos rasos d'água o ajudante de ordens do comandante das Armas, entregou-lhe uma folha de papel aberta, dizendo-lhe a soluçar: "Aqui tem a minha abdicação; espero que sejam felizes. Eu me retiro para a Europa e deixou um país que muito amei e amo ainda".

O Sete de Abril

Era o decreto de abdicação, redigido laconicamente nos termos seguintes: "Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui voluntariamente abdicado na pessoa de meu muito amado e prezado filho, o sr. d. Pedro de Alcântara. - Boa Vista, 7 de abril de 1831".

O decreto da véspera, investindo da tutoria a José Bonifácio, era assim concebido: "Tendo maduramente refletido sobre a posição política deste império, conhecendo quanto se faz necessária minha abdicação, e não desejando mais nada neste mundo, senão glória para mim e felicidade para a minha Pátria, hei por bem, usando do direito que a Constituição me concede no Cap. 5º, art. 130, nomear, como por este meu imperial decreto nomeio, tutor de meus amados e prezados filhos ao muito probo, honrado e patriótico cidadão José Bonifácio de Andrada e Silva, meu verdadeiro amigo. Boa Vista, aos 6 de abril de 1831, décimo da Independência e do Império. - Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil".

Sabe-se - diz o sr. ROCHA POMBO [7] que este decreto foi lavrado depois da abdicação, a bordo da Warspite, e antedatado; isso mesmo se colige dos termos em que d. Pedro fez, a 8 de abril, participação de seu ato à Assembléia Legislativa: "Não vos hei feito esta participação, logo que a Augusta Assembléia Geral principiou seus importantíssimos trabalhos, porque era mister que meu amigo fosse primeiramente consultado, e me respondesse favoravelmente, como acaba de fazer..."

Entretanto, a redação do ofício imperial visaria talvez apagar, por uma desculpa bem achada, qualquer má impressão que colhesse a Assembléia pelo fato de não ter tido comunicação alguma da nomeação do tutor, o que poderia redundar talvez na não confirmação da escolha.

No meio dos trabalhos e das emoções daquelas últimas noites, esquecer-se-ia o imperador de cumprir essa obrigação constitucional, e quando dela se lembrou, quis repará-la cabalmente. Nem se concebe facilmente que d. Pedro, que tinha o instinto da paternidade assaz desenvolvido, se esquecesse, naquele grave momento, de seus filhos e do futuro que os aguardava, se não tomasse a respeito providências oportunas e acertadas.

Além disso, CRUZ LIMA, que era militar de serviço permanente no Paço e muito devotado ao imperador, conta-nos, como já vimos, que o decreto da abdicação só foi entregue, ao emissário do comandantes das Armas, depois que a resposta de José Bonifácio chegara ao Paço. Na sua amorosa preocupação pelos filhos, hesitaria talvez o monarca entre o afetivo impulso de levá-los consigo para Portugal, abandonando o Brasil à sua sorte, e o dever de deixá-los no Brasil para que não perecesse ingloriamente a obra que ele mesmo com seu forte braço levantara e não o acoimassem de ingrato e leviano os brasileiros que lhe tinham dado um vasto império e uma brilhante coroa na livre América republicana.

Não fosse a escolha de José Bonifácio para tutor, não fosse a inteira confiança que ele lhe inspirava, não fossem os solenes compromissos que ele tomou de defender, à custa de sua própria vida, os direitos dos príncipes menores - e talvez a crise brasileira não tivesse tido a pacífica e airosa solução que teve. Foi ainda, portanto, o Patriarca da Independência que, com o seu prestígio e a sua austera reputação junto de d. Pedro, salvou mais uma vez o Brasil, da anarquia de que estava ameaçado, pois, graças a ele, aqui ficou o centro em torno do qual tinham de congregar-se os elementos políticos que do trono do primeiro imperador se iam afastando sistematicamente nos últimos anos de seu curto reinado tempestuoso.

Ao romper do dia, retirou-se d. Pedro, com a imperatriz, a rainha de Portugal, o duque de Leuchtenberg, os duques de Loulé e os criados do Paço para a nau inglesa Warspite. As conduções para esse vaso de guerra tinham sido pedidas, desde a véspera, pelo citado CRUZ LIMA [8], por ordem de d. Pedro, ao almirante Barker, comandante da Esquadra Britânica, e residente à Praia do Flamengo. No dia 12, passaram-se o imperador, sua esposa e o duque de Leuchtenberg para bordo da fragata inglesa Volage e dona Maria 2ª e os duques de Loulé para o navio de guerra francês La Seine, partindo todos no dia seguinte com destino à Europa.

A Regência Provisória e a Permanente

O povo recebeu com delirantes aplausos o decreto da abdicação, às 4 e 1/2 da madrugada de 7; e 26 senadores e 36 deputados que se encontravam no Rio reuniram-se em Assembléia no Paço do Senado, nomeando uma Regência interina para tomar conta do Governo durante a minoridade do novo imperador, que contava então apenas seis anos incompletos.

Foram eleitos o marquês de Caravelas, o brigadeiro Francisco de Lima e Silva e o dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. A 17 de junho, a Assembléia elegeu a Regência Permanente, que ficou constituída pelo brigadeiro Lima e Silva, pelo dr. José da Costa Carvalho e João Bráulio Muniz.

***

A 14 e 15 de julho irrompeu uma dupla sedição militar e popular no Rio, que foi abafada pela energia do padre Diogo António Feijó, ministro da Justiça. Da legislatura que principiava então faziam parte José Bonifácio, que tomou assento como suplente pela Bahia, em lugar do efetivo, dr. Honorato José de Barros Pahim, e Martim Francisco, eleito por Minas.

Ao passo que sua província natal os olvidava, a Bahia prestava homenagem àquele a quem tantos serviços devera durante a calamitosa dominação de Madeira de Mello, e Minas se não esquecia de memorar na pessoa de Martim Francisco o desvelado empenho com que os Andradas tinham trabalhado pela independência e pela manutenção da integridade territorial do Brasil.

Agitações populares

Mas a agitação continuava lavrando intensamente nas províncias: levantes, convulsões, tiroteios, assassinatos se davam no Pará, no Maranhão, em Pernambuco, no Ceará, em Minas Gerais, e até na longínqua província central de Mato Grosso. Era a desordem material produzida pela anarquia das convicções mentais. Dos vencedores com a abdicação de 7 de abril, uns queriam a federação ampla, outros a república; estes a simples reforma constitucional, aqueles uma Constituição nova, elaborada diretamente por uma Assembléia Constituinte.

No meio dessa divergência de opiniões e desses desvairados processos de agir, arrastou a Regência Permanente uma vida difícil e arriscada no decurso do ano da abdicação. No ano seguinte, em abril, os liberais exaltados promoveram na Corte uma sublevação que foi dominada pelo governo; mal sufocada ela, vê-se a braços com outra, promovida no mesmo mês pelos partidários da volta de d. Pedro 1º ao trono, mas vence-a em toda a linha.

No Rio Negro (Amazonas), que se emancipa do Pará, e no Recife, rebentam graves e sanguinolentos distúrbios. Julgando-se impotente para restabelecer a ordem, a Regência renuncia, mas a Câmara dos Deputados não aceita sua renúncia. Entra-se em 1833 e declara-se em Ouro Preto uma revolta, que depõe o vice-presidente da Província; no Pará, opondo-se o partido então dominante a que tomassem posse o novo presidente e mais autoridades nomeadas pela Regência, dá-se uma tremenda carnificina; instala-se no Rio a Sociedade Militar, destinada a restaurar d. Pedro 1º; irrompe no Ceará uma sedição logo abafada.

O partido restauratista, em fins de 1833, tinha tomado grande incremento no Rio. A incapacidade do governo regencial para restabelecer na capital e nas províncias, por meio de medidas justas e adequadas, uma ordem estável, dá àquele partido grande prestígio.

Além disso, aos espíritos ponderados e essencialmente organizadores como José Bonifácio, parecia tender a Regência para a realização, talvez precipitada, de atos mais próprios do regime republicano, do que para fortalecer a autoridade do governo monárquico abalada pelas contínuas insurreições dos radicalistas de todos os matizes e pela insubmissão permanente da Força militar.

Para os restauradores, aflitos com o que se passava, e temerosos de que a Regência não fosse capaz de impedir que a República derrocasse o trono do imperador menor ou que a Pátria, convulsivada por constantes revoluções regionais, se desagregasse - só a volta do imperador abdicante, regendo em nome de seu filho, garantiria as instituições constitucionais.

A fraqueza do governo regencial podia levar-nos a uma reforma da Carta ou até a uma Constituição nova, suscetível de dar ao regime, no fundo, uma organização republicana, embora mantendo, na forma, a aparência do regime monárquico. Bastava, para isso, diminuir de modo sensível as prerrogativas que a Constituição assegurava ao imperador.

Tentativa restauradora

É hoje caso positivamente averiguado que os Andradas faziam parte do partido restauratista e que Martim Francisco e António Carlos influíam poderosamente nas suas deliberações. O último chegou a ir à Europa, entender-se com d. Pedro, no sentido de sua volta ao Brasil. Quanto a José Bonifácio, se bem que de acordo com as aspirações do partido, não consta, entretanto, que tivesse aconselhado, para vitória delas, a prática de quaisquer atos de natureza revolucionária. O certo, porém, é que foi ele tido pelos liberais como um dos chefes principais do restauratistmo.

Ouvindo o rumor das vozes correntes, o deputado padre Henrique Venâncio de Rezende apresentou à Câmara, a 28 de junho, um projeto banindo do território nacional o ex-imperador, aprovado a 3 de junho do ano imediato, mas rejeitado pelo Senado, por grande maioria, na sessão de 18 do mesmo mês.

Tal projeto fora apresentado, em vista de ter a Regência, em mensagem de 5 de junho, comunicado ao Poder Legislativo que recebera de seus diplomatas nas diversas Cortes européias informações exatas de que se tramava a restauração de d. Pedro 1º.

A 5 de dezembro, partidários exaltados atacaram, em grande número, sem oposição da Força pública, a Sociedade Militar e destruíram as tipografias de onde saíam jornais adversos ao governo. Dias antes, constando a este que José Bonifácio, que residia com seus pupilos no Paço da Cidade, ia freqüentes vezes a S. Cristóvão para confabular com elementos facciosos, mandou que o chefe de Polícia, Eusébio de Queirós Matoso Coutinho Câmara, abrisse inquérito a respeito. Enquanto a diligência policial seguia seu curso normal, pessoas de confiança do governo foram postas no Paço da Cidade para vigilar sobre os passos do tutor e informar do quanto lá por dentro se passava.

José Bonifácio é deposto da tutoria

Indignado com a espionagem, transfere-se José Bonifácio para a Quinta da Boa Vista, apesar de que a Regência lhe não permitia residir com os pupilos fora do Paço da Cidade.

Uma representação popular levada ao governo pelo juiz de paz do Sacramento, após o ataque ao edifício da Sociedade Militar, pedia-lhe a dissolução dela e a destituição do tutor da família imperial.

A 15 de dezembro é publicado o decreto cassando a José Bonifácio a tutoria, até a próxima reunião da Assembléia Legislativa, que resolveria definitivamente sobre a matéria. O ato era ilegal, pois escapava totalmente às atribuições constitucionais da Regência, e só mesmo a gravidade da situação e a singular premência dos acontecimentos o poderiam justificar.

O tutor, em resposta ao ofício do ministro da Justiça, que lhe foi levado por uma comissão de juízes de paz, declarou por escrito que não cumpriria a ordem ilegal. "Cederei à força, pois que não a tenho, mas estou capacitado de que nisto obro conforme a lei e a razão, pois que nunca cedi a injustiças, a despotismos, há longo tempo premeditados e ultimamente executados para vergonha deste Império. Os juízes de paz fizeram tudo para me convencerem, porém a tudo resisti, e torno a dizer que só cederei à força".

Em vista dos termos categóricos da recusa, José Bonifácio foi preso e transferido para a sua residência particular da Ilha de Paquetá, que lhe foi dada por menagem. Sentinelas rondavam a rua dia e noite, para impedir quaisquer comunicações não autorizadas devidamente.

Para desagravo de sua honrada memória e confusão dos que o apontam como ganancioso por dinheiro, assinalaremos que o nosso egrégio concidadão jamais recebeu um ceitil pelo desempenho de suas funções de tutor, deixando intactos os honorários anuais de 12.000 cruzados que a lei consignou para tal fim. Igual procedimento não teve, entretanto, seu sucessor, o marquês de Itanhaem [9].

Informado dos acontecimentos, escrevia d. Pedro a José Bonifácio a seguinte significativa carta: "Porto, 28 de setembro de 1832 - Meu amigo. Com grande mágoa e menoscabo de meus paternais e inalienáveis direitos, recebi a notícia da despótica resolução tomada pela Câmara dos Deputados, por 45 votos contra 31, para se lhe tirar a tutoria do meu querido filho e adoradas filhas. Triunfa a Intriga, a Inveja e a Ignorância da Honra, da Paternidade e do Patriotismo; impera o Despotismo, a Desmoralização e a Tirania onde devia imperar a Razão e a Lei, a Boa-fé e a Moral, a Segurança e a Liberdade; postergam-se todos os foros e direitos ainda os mais sagrados, a despeito de todas as considerações; finalmente querem-se entregar os príncipes brasileiros a homens conhecidamente incapazes e que, de modo algum, poderiam, mesmo querendo, concorrer para dar-lhes uma educação como convém, principalmente às princesas, e que tivessem um decidido interesse por suas pessoas.

"Ah! meu caro amigo, que desgraça é a minha, longe de meus amados filhos, e estes, a estas horas, entregues ao cuidado de pessoas minhas inimigas, incapazes de os educarem! Não sei se o Senado anuirá pela sua parte; mas é impossível que, existindo nele invejosos da Tutoria, ele não vote conformemente com a Câmara dos Deputados. O partido dominante, que hoje tiraniza o Brasil, deseja acabrunhar o meu amigo, só porque é meu amigo, só porque me ajudou, na luta da Independência, em que nenhum dos que hoje atroam os céus e a terra, tomou parte ativa e muitos contra...

"Peço-lhe que faça os meus cumprimentos a seus manos; e que não se esqueça do que me disse a bordo da nau. - Quando a Assembléia não aprove a nomeação, esteja certo que, como brasileiro, lhe hei de defender meus filhos; e que se quiserem atentar contra eles, lá lh'os levarei. - A sua palavra para mim é sagrada, e conto que ainda que, por segunda vez, e contra a sua pessoa, prevaleça a Intriga e a Ingratidão, à Honra e ao Patriotismo, o meu amigo olhará por esses desgraçados inocentes. Seu verdadeiro amigo - D. Pedro" [10].

Último retrato do duque de Bragança (d. Pedro I do Brasil e IV de Portugal)

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Restauração do Constitucionalismo em Portugal. Morte de d. Pedro

Promulgado em 12 de agosto de 1834, o Ato Adicional à Constituição, chega daía pouco uma notícia que parece fadada a por um termo final às nossas até então intermináveis dissensões internas: no Porto, pouco depois de ter, de armas na mão e em brilhantes combates, restabelecido o regime constitucional em seu país e reintegrado no trono dona Maria da Glória - expirava, a 24 de setembro, o ex-imperador d. Pedro, que era a bandeira de guerra dos restauradores brasílicos.

Morria ainda na pujança da mocidade, aos 36 anos de idade, coberto de justas glórias pelo papel histórico eminente que nos dois Hemisférios lhe fora dado representar. A Posteridade, bem pesando as fatalidades do sangue, a mórbida herança psíquica, a educação falha e quase nula e a influência do meio social defeituoso que sobre ele reagiu - absolveu-o de todos os seus erros mesmo capitais, tendo em vista o incomparável serviço que prestara à causa da liberdade política e da civilização hodierna, com a fundação, que ele poderosamente auxiliara, da nova Pátria americana.

Contemplemos seu último retrato. Refletem-se, nas suas linhas angustiadas, as lutas dolorosas, com seu inevitável epílogo de decepções e desenganos, que naquela alma tempestuosa se travaram. Quem descobrirá, no seu conspecto desconfortado e tristonho, na magreza do rosto melancólico e no esmorecido olhar quase sem luz - os traços varonis do jovem príncipe tumultuoso e entusiasta, leviano e generoso, arrogante e afetivo, que encheu amplamente, com o porte singular de sua bizarra individualidade, um dos períodos mais agitados da história americana; que escreveu, com a ponta de sua espada, páginas sugestivas da epopéia política moderna nos dois mundos; que amou a liberdade com o sincero fervor de um paladino e a maltratou covardemente como um rufião?

Monumento de d. Pedro I no Rio de Janeiro

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Processo, julgamento e absolvição do Patriarca

Entretanto, o processo instaurado contra José Bonifácio e outros, por crime de conspiração, prosseguia; e a 20 de fevereiro de 1835 era o venerando cidadão notificado pelo juiz de paz António Luís Pereira da Cunha para comparecer à barra do Tribunal do Júri e nomear advogados que o defendessem; recusou-se ele a uma e outra coisa, deixando à consciência dos próprios jurados a sua defesa.

Eis a carta em que o Patriarca da Independência responde, com a mais cívica altivez, à notificação do magistrado: "Ilmo. sr. juiz de paz - Acuso a recepção de sua carta de 20 do corrente, em que V. S. me participa que, no dia 2 de março, tinha de comparecer no Tribunal do Júri. Duvido muito que o estado de minha saúde me permita ir à Corte; porém, como todo o cidadão honrado não pode hoje duvidar que a minha remoção do lugar de tutor, e, depois, o processo informe, e ridículo a que se procedeu, e por fim a declaração de minha criminalidade, são todos efeitos de uma cabala pueril, eu, confiado na Justiça, e luzes dos meus juízes, não preciso da formalidade de defender-me, ou pessoalmente ou por advogados.

"Os crimes que cometi são de outra categoria, em que muito amor próprio gratuito se ofendia, mas perante a Lei nunca foi crime. Não preciso, portanto, de defesa, que não seja o negar positivamente o de que sou acusado em um processo irregular, injusto e absurdo.

"Se, porém, para não demorar o julgamento de outros meus chamados co-réus, é de absoluta necessidade que eu tenha advogado, então nomeio a todos aqueles homens de probidade que queiram oficiosamente encarregar-se de minha defesa bem curta, e fácil. Deus Guarde a V.S. - Paquetá, 24 de fevereiro de 1835 - Ilmo. sr. Luís António Pereira da Cunha".

Lendo esse documento, o desembargador Cândido Japiassú, ex-ouvidor de S. Paulo ao tempo do assassinato de Libero Badaró, e que respondia a processo conjuntamente com o Patriarca, obteve deste, a rogo insistente seu, uma procuração especial para defendê-lo no plenário; mas o juiz municipal presidente do Júri, dr. Justino José Tavares, recusou-se aceitá-la, por entender que José BOnifácio não podia nomear procurador, e seria julgado à revelia, por não ter comparecido ao Tribunal. Tomando a palavra, Japiassú declarou que, diante da decisão do presidente, uma vez que o Patriarca não podia defender-se, ele também se não defenderia, entregando o julgamento da causa à reta consciência e imparcialidade dos julgadores.

Em sessão de 14 de março, José Bonifácio, Japiassú e mais 20 acusados foram absolvidos unanimemente, prorrompendo os espectadores, que se elevavam a mais de dois mil, em vivas ao Patriarca da Independência e aos jurados que o absolveram.

O Conselho de Sentença, que se honrou, e dignificou a Nação, livrando dos furores do despotismo o fundador da Pátria, aos 72 anos de uma existência inteira de devotamento altruístico aos mais altos ideais humanos, estva assim constituído: Luís Affonso de Moraes Torres (presidente), Joaquim José Telles, João Bernardes Machado, José Pereira Monteiro, Tristão de Sá Cherem, Constantino Dias Pinheiro, Manuel Affonso Gomes, António José Pestana, Joaquim José da Costa, António José Pereira Guimarães, João Justino de Araújo e José Felix [11].

A 7 de abril é eleito Regente do Império, de acordo com o novo dispositivo do Ato Adicional, o padre Diogo António Feijó, que presta juramento e entra em exercício a 12 de outubro. No Rio Grande, rebentara a 20 de setembro uma revolução republicana e separatista, que o padre Feijó foi impotente para dominar. Desgostoso, renunciou à Regência, sendo interinamente substituído pelo ministro do Império, Pedro de Araújo Lima, ulteriormente marquês de Olinda, a 19 de setembro de 1837. Logo depois - a 7 de novembro - rebenta na Bahia uma revolução que só pôde ser jugulada em março do ano seguinte. Ainda estávamos longe de conseguir a pacificação almejada pelos espíritos conservadores e tão necessária à estabilidade do regime e ao progresso da Nação.

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NOTAS:

[1] Obra citada, pág. 91.

[2] Juramento da Constituição em Santos - Em Santos o compromisso prévio dos cidadãos começou desde o dia 4 de fevereiro de 1824, data em que o juiz de fora do Termo, dr. João de Sousa Pereira Bueno, inaugurou na Câmara Municipal um livro especial para que nele os indivíduos de "todas as classes, nobreza e povo, assinando os seus nomes, declarem se querem que se jure e observe o Projeto arranjado no Conselho d'Estado sobre as Bases oferecidas por Sua Majestade Imperial, como Constituição Política do Império".

Nesse livro, encadernado em veludo escarlate e com dizeres em ouro sobre a face da encadernação, e que se acha recolhido ao Arquivo Municipal, lêem-se 192 assinaturas, entre as quais as dos seguintes cidadãos: vereadores Francisco Xavier da Costa Agujiar e Cypriano da Silva Proost, vigário José António da Silva Barbosa, governador das Armas Joaquim Aranha, tenente-coronel comandante do Batalhão de Artilharia José Olyntho de Carvalho e Silva, padres Manuel Ângelo Figueira de Aguiar, Joaquim José de Sant'Anna e João Cardoso de Menezes e Sousa, padre capelão-mor do hospital Francisco Rosa de Assis,  capitão António Botelho de Carvalho, tenente João dos Santos Bandeira, tenente Manuel Pereira dos Santos, capitão Venâncio José da Rosa, alferes Domingos José Rodrigues, escrivão da Alfândega António Cândido Xavier de Carvalho e Sousa, administrador da Alfândega coronel Bento Thomás Vianna, Barnabé Francisco Vaz de Carvalhaes, alferes António Martins dos Santos, capitão António José Vianna, conferente da Alfândega Ignácio Joaquim de Azevedo Marques, João do Monte Bastos, Joaquim Maria da Costa Aguiar, João da Silva Oliveira, alcaide Bento António do Carmo, sargento José António Pereira dos Santos, capitão Manuel Marques de Carvalho, sargento da 2ª linha José Feliciano da Costa Aguiar, 1º cadete José Joaquim Xavier Pinheiro, António Freire Henriques, Francisco Xavier da Silveira, escrivão interino do Almoxarifado, Leocádio José Ferreira, tenente Lourenço António Braga, José Teixeira Coelho, Romão José Florindo, José Carvalho da Silva, António Ferreira da Silva, Manuel José Florindo, António Venâncio da Rosa e Joaquim Xavier Pinheiro.

[3] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 69.

[4] E não a 16, como escreve o sr. AFFONSO de TAUNAY, nos seus Vultos da Independência, pág. 14. A 16 desembarcou dona Amélia, que veio a bordo da fragata de guerra Imperatriz, comandada pelo capitão-de-mar-e-guerra João Carlos Pedro Pritz.

[5] HOMEM DE MELLO - Esboços Biográhicos, 1º vol., pág. 70, nota 10. ROCHA POMBO (obr. cit., vol. 8º, pág. 213, nota 1) informa que os dois irmãos ainda se achavam presos a 6 de junho de 1829, segundo requerimentos de queixa que apresentaram à Câmara dos Deputados. HOMEM DE MELLO publica na íntegra o Acórdão da Relação, datado de 6 de setembro do ano anterior, absolvendo-os.

[6] J. D. DA CRUZ LIMA - O Segundo Reinado, pág. 144.

[7] Obra citada, vol. 8º, pág. 263, nota 1.

[8] Obra citada, pág. 137.

[9] Desembargador CÂNDIDO LADISLAU JAPIASSÚ - Defesa do Illustríssimo e Excellentíssimo Senhor Conselheiro Desembargador José Bonifácio de Andrada e Silva, Pae da Pátria, Patriarcha da Independência do Brasil (1835), pág. 21.

[10] Os grifos são nossos (N.E.: do autor).

[11] CÂNDIDO JAPIASSÚ - Defesa citada, págs. 72 e 73.

 


NOTA SUPLEMENTAR

CASA DE JOSÉ BONIFÁCIO - A casa da Ilha de Paquetá é situada na Praia da Guarda, e tem atualmente o número 119.

A placa de mármore, que lá existia ao lado do portão, à esquerda, continha os seguintes dizeres: Nesta casa residiu / o Patriarcha / José Bonifácio de Andrada e Silva / 1831-1838.

Devia ser mais completa a inscrição, declarando-se nela que a casa tinha pertencido a José Bonifácio.

No prédio, que ainda existe, e onde ele morou quanto ministro, à atual Praça Tiradentes, esquina da Rua do Sacramento, devia-se também colocar uma lápide comemorativa. Assim igualmente no Quartel da Força Federal em Sant'Anna, nesta Capital, rememorando que foi aí que José Bonifácio redigiu a célebre representação de 24 de dezembro de 1821, que determinou a ficada do príncipe no Brasil.

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