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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 374 a 402): 
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PRIMEIRA PARTE - PRELÚDIOS DA INDEPENDÊNCIA

Capítulo V - O Fico (cont.)

[..]

As diatribes de Varnhagen

VARNHAGEN, tratando da representação de S. Paulo, de 24 de dezembro, emprega, como acabamos de ver, o melhor de seus malbaratados esforços, com o fim de mostrar que para a resolução de d. Pedro em nada concorreu a nossa Junta Provincial. Isto com o propósito exclusivo de tirar a José Bonifácio, chefe sistemático do brilhante movimento paulista, a gloriosa parte que lhe cabe naquele feito decisivo.

O rancoroso inimigo dos Andradas, vingando-se, como historiador, dos contratempos que, na qualidade de administrador da Fábrica de Ipanema, seu pai sofrera por parte de José Bonifácio e Martim Francisco, quando estes eram membros preponderantes do Governo Provisório (caso que elucidaremos mais para diante, por ter sido a gênese dos ódios póstumos do escritor contra a trindade ilustre) - degrada-se a ponto de insinuar contra o primeiro uma pesada e indigna calúnia, com plena convicção e consciência de que estava caluniando, após a morte, um excelso varão que à Pátria tantos serviços públicos prestara.

Para ele, a enérgica representação de 24 de dezembro não exprimia a indignação patriótica que na alma de José Bonifácio logo se levantara, ao tomar conhecimento dos decretos recolonizadores; ao contrário, era simplesmente o brado vil de uma consciência cúpida, que se vingava daqueles que o tinham ferido inesperadamente em grandes interesses pessoais de natureza monetária, em rendas que auferia ilegalmente do Tesouro Real e que acabavam de lhe ser tiradas.

PORTO SEGURO, se fora sincero ao formular semelhante acusação, nem por isso mereceria menos a severa condenação de todas as almas íntegras, porque estaria julgando as virtudes de seu imáculo compatriota segundo a estreiteza lógica de seus próprios sentimentos individuais.

A mesma análise, porém, do fato calunioso leva-nos à certeza de que ele bem sabia que estava urdindo uma repelente calúnia contra a memória de um homem de bem, que podia ter, e tinha de certo, alguns defeitos ligados talvez ao excessivo desenvolvimento do órgão do orgulho - defeitos que, na opinião do próprio acusador, "foram qualidades recomendáveis, na crise que o Brasil atravessava" [1] - mas cujo talento, ilustração e probidade só podiam contestar ou amesquinhar os energúmenos e os despeitados que a glória alheia incomodava.

Pulverização de uma calúnia

Acha o tenaz difamador do Patriarca que a referida representação não tem "nenhum outro mérito mais que o da energia e veemência da linguagem", e esta mesma "tem a desculpá-la" o fato de ter sido "redigida em momentos de ira e despeito, por haver justamente então recebido carta de seu irmão António Carlos, contando-lhe o que a seu respeito se havia passado nas mesmas Cortes, em sessão de 30 de outubro anterior propondo o deputado Borges Carneiro se mandasse sustar o pagamento dos diferentes vencimentos, na importância de uns 12.000 cruzados que o mesmo José Bonifácio, apesar de achar-se ausente... no Brasil, havia mais de um ano, seguia percebendo como lente, como inspetor das Minas e como diretor das obras do Mondego. O fato da proposta de Borges Carneiro é verdadeiro; mas faltam-nos recursos para verificar por que navio pôde António Carlos escrever a carta de que se trata, para vir a estar em S. Paulo antes de 24 de dezembro".

E acrescenta em nota: "Por enquanto, nos nossos exames, temos chegado apenas a apurar o fato de que no Rio de Janeiro, a 10 de dezembro, as folhas de Lisboa, chegadas pelo brigue São Sebastião, alcançaram a 26 de outubro" [2].

Raramente se encontra concentrada em tão poucas linhas tanta insídia e tanta malignidade! VARNHAGEN transmite ao público um infame vitupério por tê-lo ouvido somente; e, sem examinar e verificar escrupulosamente a sua procedência e verossimilhança - já não dizemos veridicidade - passa-o para as páginas de sua História da Independência, limitando-se a dizer, à guisa de desculpa, que não teve tempo para constatar em que data António Carlos poderia ter escrito a José Bonifácio, com tempo de receber este a sua carta na capital de S. Paulo, antes de 24 de dezembro.

Este é o primeiro elemento que nos leva à convicção de que VARNHAGEN estava caluniando cientemente ao genial paulista. De fato, para saber se a suposta carta de António Carlos chegara ao poder de seu irmão antes do dia 24, não era preciso apurar a data da entrada de navios portugueses no Rio durante o mês de dezembro. Bastava-lhe recorrer honradamente às cartas de d. Pedro a d. João, que conhecia, tanto que as cita a cada passo em sua obra, para ter a certeza de que a tal carta sobre a proposta de Borges Carneiro era uma revoltante invenção de algum adversário de José Bonifácio - se não se trata de fábula exclusivamente engendrada pelo próprio historiador sorocabano, pois o supomos capaz de semelhante indignidade, em que pesem as homenagens com que procuram galardoar seu nome, dando-lhe imerecidamente o usurpado epíteto de "pai de nossa História".

Pela carta de 9 de novembro, veria que nessa data António Carlos ainda se achava no Rio e tinha tido com o Regente uma longa conferência sobre os negócios do Brasil e o modo por que deveria tratá-los nas Cortes Constituintes [3]. Ora, ainda que o deputado paulista tivesse embarcado para Lisboa no dia imediato, 10, e fizesse toda a viagem com vento de feição, não levaria menos de 30 dias para chegar a seu destino, pois as travessias marítimas, por esse tempo, gastavam habitualmente 50 dias.

Chegando, pois, António Carlos a Portugal a 10 de dezembro, e acreditando que, no mesmo dia, se tivesse enfronhado a respeito da proposta de Borges Carneiro, escrito em tal sentido com a maior urgência a seu irmão, encontrado navio pronto para fazer-se de vela com rumo do Brasil também no mesmo dia, e que este navio, por uma singular coincidência, também singrasse os mares, em sentido oposto, num favorável curso de 30 dias somente - segue-se que a famosa carta só estaria no Brasil a 10 de janeiro, depois de redigida a representação, depois de entregue ao príncipe, depois, em suma, da declaração do Fico! Isto, na melhor hipótese, porque as viagens transatlânticas então, repetimo-lo, levavam 50 dias e mais.

Outro elemento se nos apresenta ainda, para robustecer nossa convicção de que a calúnia de VARNHAGEN era fruto consciente e perverso de sua implacável odiosidade ao velho Andrada. É que ele, conhecendo como conhecia o Diário das Cortes, que a cada instante cita, não podia de forma alguma ignorar que os deputados por S. Paulo, António Carlos, Nicolau Vergueiro e Padre Feijó chegaram a Lisboa a 7 de fevereiro, prestando o juramento regulamentar e tomando posse na sessão de 13 [4].

Dir-nos-ão, em resposta, que PORTO SEGURO não quis afirmar que António Carlos tivesse escrito de Lisboa a seu irmão, mas sim do Rio, à vista da correspondência e dos jornais e outras publicações chegadas da ex-metrópole. E é por isso mesmo que ele tratou de certificar-se em que navio, proveniente do Reino, seguiu a carta de António Carlos, do Rio para S. Paulo, com escala pelo porto de Santos.

Ora, o próprio VARNHAGEN, na nota 29, que citamos, da página 133 de sua obra, declara que as folhas de Lisboa chegadas até 10 de dezembro ao Rio, alcançavam apenas a data de 26 de outubro. Nelas não podia vir, portanto, notícia alguma de uma indicação, proposta ou requerimento legislativo que só seria apresentado às Cortes quatro dias depois; e as folhas lisboetas e cartas chegadas posteriormente a 10 não podiam ser lidas por António Carlos, porque este deputado, desde o dia 8 do mesmo mês, já não se achava na capital do Brasil e sulcava as ondas oceânicas em busca das deleitosas tágicas paragens.

Efetivamente, naquele dia chegava ao Rio, procedente de S. Pedro do Rio Grande do Sul, a bordo da sumaca União Feliz, outro deputado por S. Paulo - Fernandes Pinheiro. Nas suas Memórias [5] conta-nos ele que a 10 de dezembro, dois dias, portanto, após o seu desembarque, chegara "a deliberação das Cortes mandando recolher a Lisboa o príncipe d. Pedro", notícia que "produzira extraordinária irritação". E acrescenta: "Esta emergência esteve quase a decidir de minha ida para Lisboa".

Ora, se Fernandes Pinheiro ainda tivesse encontrado no RIo, a 8, os seus colegas de representação, claro está que não falaria exclusivamente na sua ida ou não para Lisboa, e escreveria: "Esta emergência esteve quase a decidir de nossa ida para Lisboa", pois não é crível que só à sua pessoa e não ao conjunto da deputação interessassem as notícias chegadas da ex-metrópole.

É impossível que a conveniência em sobreestar a partida de um deputado não fosse extensiva a toda a representação. É claro que se António Carlos e os outros membros da bancada paulista estivessem no Rio, quando chegaram os aludidos decretos, ou teriam retardado sua viagem por ordem superior, como Fernandes Pinheiro; ou desistido definitivamente dela, como procederam os mineiros, em reunião coletiva de 22 de janeiro, segundo VARNHAGEN, ou de 25 de fevereiro, segundo a Comissão do Instituto Histórico, incumbida de rever o manuscrito de sua obra sobre a independência [6]; ou, devidamente instruídos pelo príncipe, teriam levantado energicamente a voz no plenário da Constituinte. Nada disso, entretanto, aconteceu.

Acresce ainda uma outra circunstância de não menor ponderação, e é esta: se Fernandes Pinheiro houvesse encontrado ainda na Corte, quando aí aportou, os seus colegas de deputação, teria necessariamente partido em companhia deles para Lisboa, a bordo da mesma embarcação, preparada para os conduzir com o máximo conforto compatível com os recursos da época, e não se teria demorado até depois da chegada de José Bonifácio, que, já ministro, lhe insinuara a necessidade de adiar a partida. É completamente fora de dúvida, portanto, que a 8 de dezembro António Carlos se não encontrava mais no Rio, não podendo, pois, mandar a José Bonifácio notícias ou informações chegadas de Portugal depois do dia 10.

Um terceiro elemento, e não menos importante, que corrobora a nossa firme convicção de que VARNHAGEN tinha a certeza de que estava caluniando José Bonifácio - encontramo-la à página 13 de sua História da Independência, que parece ter sido escrita especial e exclusivamente para denegar-lhe os méritos intelectuais, reconhecidos universalmente.

Aí proclama ele, e é com razão que o proclama, serem injustas as queixas de Borges Carneiro, porquanto a verdade é que José Bonifácio, naquela data, já não recebia do Tesouro Português os tríplices vencimentos a que a mal informada indicação legislativa se refere [7].

De fato, por decreto de 14 de maio de 1821 - cinco meses antes da indicação Carneiro - o príncipe D. Pedro, "tomando em consideração os bons serviços prestados pelo dr. José Bonifácio de Andrada e Silva... nos empregos que ocupou em Portugal, de intendente geral das Minas e Metais do Reino e superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra", houve por bem fazer-lhe mercê "da metade dos vencimentos que justificar percebia pela Real Fazenda em Portugal, sendo-lhe paga a quartéis, a título de pensão, pela Junta da Fazenda da Província de S. Paulo" [8].

Ora, se VARNHAGEN reconhece que Borges Carneiro não tinha razão, pois que José Bonifácio de há muito já não recebia vencimento algum do Erário Português por aqueles cargos - para quê fez constar na sua História, que a ira e o despeito, por ter sido privado de rendimentos que não recebia mais, é que moveram o Patriarca a imprimir à representação de 24 de dezembro o tom enérgico e resoluto que tão funda impressão causaria na mente, algo indecisa, do príncipe d. Pedro, no ânimo perplexo da população carioca e no alvoroçado espírito dos Constituintes Portugueses, indignados com a varonil conduta de S. Paulo?

É que, tendo o dogmático historiador avançado que o único mérito que cabia à precitada representação era o da energia e veemência de sua linguagem, quis logo demonstrar que esse próprio limitado mérito desaparecia, uma vez que o estilo do documento fora exclusivamente determinado por motivos subalternos, por estimulações da sórdida cobiça, por interesses pecuniários contrariados.

E assim baseado numa inverdade que não ignorava, arroja sobre a impoluta memória do herói imortal um grave insulto que, anos depois, jovem escritor paulista, escudando-se na suposta autoridade histórica do desabusado aviltador dos feitos andradinos, repete, agravado de novas afrontosas inverdades, em livro destinado a investigar qual a comparticipação real que tiveram na obra da Independência os vultos que a Posteridade assinala como principais autores de tão grande empresa.

Mas o sr. ASSIS CINTRA - pois é a ele que nos referimos e ao seu extravagante libelo intitulado derrisoriamente O Homem da Independência - percebendo que VARNHAGEN se contradizia vergonhosamente, ao atribuir a linguagem veemente de José Bonifácio, na representação paulista, a uma supressão de ordenados que de fato o nosso velho conterrâneo não recebia mais, segundo a espontânea confissão de seu próprio impassível caluniador - imaginou sair-se airosamente da dificuldade que o assoberbava, falsificando, sem o menor escrúpulo, o decreto em que d. Pedro instituíra a pensão a que ainda há pouco fizemos detalhada referência!

O discípulo é bem um audaz imitador do mestre ousado. VARNHAGEN reconhecia que a proposta de Borges Carneiro era injusta, porque os motivos em que ela se baseava efetivamente não existiam? VARNHAGEN, apesar disso, atribuía a violenta conduta de José Bonifácio a esses motivos confessadamente inexistentes? Que mal havia, pois, que ASSIS CINTRA, para provar a verdade do que o outro a contragosto afirmava ser mentira, introduzisse criminosamente modificações essenciais no texto do aludido decreto, ao transcrevê-lo à página 77 de seu indigno livrinho? Pois o exemplo não vinha de tão alto?

Um documento oficial falsificado

A verdade é que esse documento assim reza, na íntegra: "Tomando em consideração os bons serviços praticados com muita inteligência pelo dr. José Bonifácio de Andrada e Silva, do Conselho de El-Rei, Meu Senhor e Pai, nos empregos que OCUPOU em Portugal, de intendente geral das Minas e Metais do Reino, superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra, e lente da Cadeira de Metalurgia da Universidade de Coimbra; Hei por bem fazer-lhe mercê da metade dos vencimentos que justificar PERCEBIA pela Real Fazenda, sendo-lhe paga, a quartéis, a título de pensão pela Junta da Fazenda da Província de S. Paulo" [9].

Pois bem: o ardiloso CINTRA, ao trasladar esse decreto para o Homem da Independência, mudou fraudulentamente o tempo dos verbos, que no original estão, um, no passado absoluto, e outro, no pretérito imperfeito, passando-os para o presente do indicativo, de modo a fazer supor que, na data em que lhe foi concedida a pensão pelo Tesouro de S. Paulo, José Bonifácio recebia ainda integralmente os ordenados daqueles empregos, pagos pelo Governo Português!

Onde se lê - ocupou e percebia -, o honrado sucessor do íntegro VARNHAGEN emendou, sutil, arteira e escandalosamente para - ocupa e recebe -; e foi asism que, reunindo a importância da pensão à dos três cargos que o egrégio cidadão já não exercia - declarou que este se locupletava não apenas com os fantásticos 12.000 cruzados, que a perversa imaginação de PORTO SEGURO inventou para deprimir seu adversário, mas com 18.000 cruzados, soma colossal para a época, equivalente a mais de trinta contos de réis na atual moeda brasileira - mas que não seria digna de reparo, porquanto hoje em dia há funcionários federais e estaduais que se aposentam, após longos e honrados serviços, com vencimentos superiores àquela soma.

Mas a verdade é que não havia acumulação alguma, porque o Erário Português não mais pagava a José Bonifácio os vencimentos dos cargos a que erroneamente se refere a indicação de Borges Carneiro: ele apenas recebia, pelos cofres de sua província natal (e não pelos do Tesouro do Rio, como, com sua leviandade e incompetência habituais, assevera CINTRA à página 79 do seu infeliz libelo) a modesta soma de 6.000 cruzados, a metade do que outrora, no desempenho honesto de árduas atribuições diversas, recebia do Tesouro Português.

Aliás, ainda que Portugal lhe continuasse pagando integralmente os vencimentos correspondentes a tais cargos, não faria nada de mais - porquanto, como dissemos em nosso primeiro volume, ele, dos 11 empregos permanentes que exerceu na Europa, apenas recebeu os ordenados relativos a três, tendo servido 11 anos como desembargador ordinário e efetivo da Relação e Casa do Porto, sem nunca lhe pagarem um real [10].

O que do decreto de d. Pedro se torna evidente é que José Bonifácio apenas recebia de Lisboa o que lhe era devido pelos cargos em que se aposentara legalmente, verdade que vemos corroborada pelas seguintes expressões usadas por Borges Carneiro na sua indicação: "... que o governo mande suspender-lhe os pagamentos, à exceção dos que lhe tocarem por jubilação ou aposentadoria".

Com estas considerações fica, pois, devidamente retificada a informação, que no volume antecedente inserimos, quanto a ter ele vindo para o Brasil, no gozo de um afastamento por tempo indeterminado e percebendo os vencimentos integrais dos três empregos referidos [11].

Uma petição de José Bonifácio

Tais vencimentos só lhe foram pagos provavelmente durante o ano de 1820, porquanto em maio de 1821 as suas condições eram tão pouco lisonjeiras que d. Pedro lhe concedeu a pensão de que falamos. Vendo que ele, decididamente, não voltaria mais para a Europa, apesar das vantagens com que buscavam prendê-lo à ex-metrópole, segundo deixamos patente noutra passagem desta obra, e para que não se envolvesse nas lutas políticas de seu país natal [12] - trataram de conceder-lhe, de acordo com a lei, a aposentadoria nos cargos em que poderia legitimamente aposentar-se [13].

ASSIS CINTRA, tão coerente como seu antecessor, que se contradiz a cada passo, declara, indignado, que os milhares de cruzados que o Patriarca recebia de Lisboa, como ordenados por empregos que não exercia - eram um verdadeiro "recebimento de príncipe" (pág. 79); mas, à página 76 informa textualmente que "Tendo conhecimento das condições de pobreza de José Bonifácio, Joaquim Gonçalves Ledo, por intermédio de José Clemente Pereira e do cônego Januário, conseguiu que o príncipe regente lhe abonasse, como recompensa por serviços públicos, uma certa quantia anual, que lhe garantisse a subsistência". E transcreve, em seguida, o decreto de 14 de maio, que ele, com revoltante improbidade, falsificou em pontos capitais.

Seja-nos lícito perguntar-lhe, pois: se José Bonifácio estava locupletando-se então com a indevida soma de 12 contos de réis anualmente, que do Tesouro de Lisboa recebia sem o merecer - que condições de pobreza eram essas que ele atravessava e que despertaram no coração magnânimo de José Clemente e Gonçalves Ledo a idéia de obterem em seu favor a pensão decretada pelo príncipe?!

Um conto de réis por mês era quase o triplo do que recebiam os ministros de Estado, era um ordenado principesco, quase régio; e não se podia acreditar na pobreza do funcionário aquinhoado venturosamente com tão sedutora propina orçamentária; e nem que a tal quantiosa dotação mandasse o príncipe acrescentar novos favores.

A verdade, portanto, ressalta claramente do debate: o velho sábio santista, ao tocar o extremo de sua vida ativa, nobremente consagrada, em grande parte, à sua amada Pátria de adoção, achava-se realmente pobre, porque os magros rendimentos que de sua legal aposentação recebia, não lhe bastavam para as necessidades próprias e as da família que constituíra.

Vem, então, em seu auxílio (como era usual nas Cortes daqueles tempos, em relação aos funcionários prestantes e devotados à causa pública) - a mão generosa do príncipe regente que tanto conhecia de tradição e de renome o valor, o zelo, a probidade, os méritos do velho servidor do Reino Luso.

O que não se compreende é que o mesmo autor que julga extraordinário para a época - e realmente o é - o quantum pago à guisa de vencimentos a José Bonifácio, por funções de que se achava afastado, entenda, ao mesmo tempo, com singular incoerência, que a reconhecida pobreza do Patriarca excitou em corações benévolos a mais tocante comiseração!

Percebe-se que aquilo não passa de engenhosa fábula de CINTRA, visando patentear que sobre outros assinalados defeitos irremediáveis, tinha o nosso famoso conterrâneo o da ingratidão, pois com processos políticos perseguidores pagou mais tarde os benefícios que hipoteticamente lhe fizeram o dito Clemente e o sobredito Ledo.

É fato em que não acreditaremos, se não for devidamente mencionada a fonte insuspeita em que o colheu o autor. A sua facilidade em transcrever documentos apócrifos ou falsificá-los vergonhosamente, em abono de teses preconcebidas, leva-nos a não dar ingenuamente crédito a seus achados históricos, sem a preliminar exibição pública de provas insofismáveis.

São desta espécie, como todos vêem, as ineptas acusações, formuladas outrora, e repetidas hoje, pela inveja de uns e pela arrogante incompetência de outros, ao nome honrado e à obra imperecível do Fundador da Pátria Brasileira. São deste naipe moral os que o difamam, tentando em vão diminuir-lhe o porte e denegrir-lhe os feitos imortais.

***

O ódio de Varnhagem aos Andradas. Suas causas motivas

Mas é nosso dever contar, agora, quais as grosseiras razões que propeliram o VISCONDE DE PORTO SEGURO a desenvolver contra José Bonifácio a odiosa campanha impatriótica a que se dedicou, com invejável pugnacidade, digna sem dúvida de mais nobre causa, nos seus copiosos trabalhos de reconstituição histórica do Passado pátrio.

É geralmente conhecida hoje a sensata opinião de nossos melhores críticos e historiadores a respeito das deficiências mentais e morais de VARNHAGEN para tomar a peito uma tarefa sobreexcedente de suas forças e limitado cabedal teórico. Ele não passava de investigador tenaz e perseverante, que descobre para os outros os documentos em que a verdade histórica de apóia; não possuía, porém, o senso claro, a inteligência precisa, o critério exato para proferir sobre os acontecimentos, como pretendia, juízos aceitáveis e arestos definitivos.

Um dos seus mais entusiásticos admiradores, e que é uma das mais puras glórias das letras nacionais, o sr. CAPISTRANO DE ABREU, dizia, em artigo publicado há mais de 40 anos no Jornal do Commércio da antiga Corte, em dezembro de 1878, por ocasião da morte, que considerava irreparável, do célebre autor da História da Independência:

"A falta de espírito plástico e simpático [14] - eis o maior defeito do visconde de Porto Seguro. A História do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário e coerente. É pena que ignorasse ou desdenhasse o corpo de doutrinas criadoras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de Sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo por que se elabora a vida social. Sem isso, as relações que ligam os momentos sucessivos da vida de um povo não podiam desenhar-se em seu espírito, de modo a esclarecer as diferentes feições e fatores reciprocamente.

"Ele poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enigmas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores no terreno dos fatos; compreender, porém, tais fatos em suas origens, em sua ligação com fatos mais amplos e radicais de que dimanam; generalizar as ações e formular-lhes a teoria; representá-las como conseqüências e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem consegui-lo-ia".

E o sr. OLIVEIRA LIMA, numa só frase feliz, sintetizou magistralmente, quarenta anos depois, os justos conceitos de CAPISTRANO DE ABREU: "O visconde de Porto Seguro, do verdadeiro historiador tinha o instinto do documento, mas não tinha a imparcialidade proveniente da ausência de paixão" [15].

O pretenso "pai da nossa História", como lhe chamam com postiça reverência os modernos jornalistas que nunca lhe leram a obra, não passava, entretanto, de um instintivo farejador de documentos esparsos na confusão e na poeira de venerandos arquivos desorganizados; um meticuloso e pachorrento catador de papéis velhos, mero rato de biblioteca, dispondo de aptidões subalternas para decifrar enigmas caligráficos, lançados em carunchosos e pulverulentos alfarrábios e para empacotá-los, rotulá-los e empilhá-los regularmente na prateleira austera das estantes... Para historiador faltavam-lhe absolutamente todas as qualidades requeridas em quem se abalança a tal ofício: a arte literária de escrever bem e belamente; a amplitude da visão filosófica; a cultura geral das várias disciplinas do saber teórico; a elevação moral dos sentimentos pessoais; a fim de não cair na parcialidade ditada pelo orgulho, na mentira inspirada pelo ódio, na falsidade gerada pela inveja...

O pai de Varnhagem. Suas desavenças com Martim Francisco

Luís Frederico Varnhagen - pai do nosso herói - fora contratado em sua pátria natal, para servir ao Governo Português, como ajudante do condutor dos fornos junto à fábrica de ferro existente em Figueiró dos Vinhos, vencendo o ordenado anual de 200$000 réis que foi, pouco tempo depois, elevado ao dobro. Era ele então um simples funcionário civil, um paisano, a quem se deu em Portugal o posto de tenente de Engenharia,  para maior prestígio de sua autoridade na fábrica.

Andava-se no  Brasil às voltas com a Fábrica de Ferro do Ipanema, em Sorocaba, a qual, apesar das mil e uma providências e gastos da Administração, não lograva produzir o rendimento que de sua capacidade se esperava.

Lembrou-se, então, o ministro conde de Linhares, de mandar vir do velho reino o ajudante de Figueiró dos Vinhos, que lá trabalhava havia aproximadamente uns oito anos. Veio, pois, para o Brasil, o tenente Varnhagen que, na Corte do Rio, se apresentou ao ministro, a 16 de setembro de 1809, seguindo, em dia não sabido do mês de abril de 1810, para o Ipanema, em companhia do governador e capitão-general de S Paulo Franca e Horta e de Martim Francisco, que exercia, desde agosto de 1801, o cargo de Inspetor de Minas e Bosques da capitania, com jurisdição extensiva àquela fábrica, e o posto de sargento-mor de Milícias.

Depois de uma estadia de três semanas no estabelecimento, elaborou Varnhagen um plano de reorganização geral dos serviços, propondo, em minucioso relatório, a constituição de uma sociedade ou companhia anônima por meio de ações, metade das quais seriam tomadas pelo governo, que ficaria com a fiscalização da fábrica, e a outra metade por particulares.

O proponente foi escolhido para membro da Junta Administrativa que, após a organização da sociedade, instalou-se nesta capital, Junta de que também faziam parte Franca e Horta, o marechal José Arouche de Toledo Rendon e Martim Francisco. Com o fim de dar impulso ao trabalho, mandou-se buscar na Europa uma turma de vinte e quatro operários suecos, dirigidos pelo seu compatriota Carlos Gustavo Heldeberg, que gozava da reputação de abalizado mineralogista em seu país.

Ou porque essa reputação não correspondesse à realidade, ou por outro qualquer motivo que jaz sepultado no arquivo da correspondências e contratos oficiais da época, a verdade é que Heldeberg não pôde continuar na direção técnica da fábrica, que passou então a ser confiada a Varnhagen.

Este, que tomou posse de seu novo cargo em 1815, e que já tinha conseguido "com o socorro do mestre sueco" levantar os dois fornos altos, lograra três anos depois fundir o primeiro ferro, com o qual se modelaram três cruzes que foram eretas nas imediações do estabelecimento. Varnhagen, que viera de Portugal simples tenente e já galgara o posto de major quando investido da suprema direção, foi então elevado a tenente-coronel [16] e nesse feito preliminar parece que estacaram suas façanhas de metalurgista.

José Bonifácio era o intendente geral das Minas Portuguesas, quando por lá andara Varnhagen, e foi quem repôs em funcionamento a antiga Fábrica de Ferro de Figueiró dos Vinhos, em cumprimento do decreto régio de 8 de julho de 1801. Conhecia, pois, de perto, as aptidões do ajudante do condutor de fornos e tinha incontestável capacidade para ajuizar da sua competência técnica. Martim Francisco, na sua qualidade de inspetor geral das Minas e em particular da Fábrica de Ipanema, acompanhou também de perto os trabalhos profissionais de Varnhagen.

É desta época que datam as desavenças entre este e os Andradas, principalmente Martim Francisco - desavenças que no filho, transformado em historiador na idade adulta, irradiam-se em "reflexo das questões paternas com o antigo superintendente das Minas de S. Paulo" [17].

Para Martim, não tinham sido relevantes os serviços prestados por Varnhagen à fundição do Ipanema: os fornos eram imperfeitos; e os produtos fundidos e as obras moldadas eram de péssima qualidade e obtidas à custa de exorbitantes despesas, de modo que a fábrica, em vez de lucros, dava prejuízos contínuos, obrigando o governo a "emendar todos os defeitos e corrigir todos os erros".

Estas opiniões encontramo-las num documento inédito, que adiante reproduzimos integralmente em nota e que se acha registrado no Livro de Correspondências do Governo Provisório, existente no Arquivo Público do Estado. É uma longa informação ministrada em outubro de 1821 ao conde da Louzan, ministro do Reino da Regência; informação que, pela própria natureza especial do assunto, devia ter sido dada e redigida por Martim Francisco, que era ainda o intendente das Minas e ocupava no governo o cargo de secretário da Fazenda, por cuja Pasta transitara o documento informado - uma petição do velho Varnhagen pedindo recompensas pecuniárias por serviços relevantes que alegava ter prestado ao estabelecimento que dirigira... [18].

Pretensão audaz que os Andradas repelem

Desgostoso com a severa fiscalização de Martim, retirou-se para Portugal, no gozo de uma licença ilimitada, demitindo-se pouco tempo depois. Entretanto, julgou-se com o direito de pedir ao príncipe regente que, pelos cofres da Fazenda Provincial de S. Paulo, lhe fosse concedida "uma pensão para sua numerosa família", em remuneração de seus serviços.

Veio o seu requerimento ao governo para informar e este se opôs fundamentadamente à indevida pretensão do suplicante, que já fora generosamente compensado de seus trabalhos com o recebimento de respeitáveis honorários, a graduação em altos postos militares vencendo soldo e com a mercê de títulos honoríficos que a graça real lhe concedera. Ao tempo em que, molestado pela incessante vigilância do intendente geral das Minas, abandonara o diretor técnico as suas funções no Ipanema, eram estes os vencimentos que cumulativamente recebia:

Vencimentos de ajudante do condutor de fornos em Figueiró dos Vinhos 200$000
Aumento que se lhe concedeu depois que veio para o Brasil 200$000
Soldo anual de tenente-coronel (posto que atingiu em virtude mesmo das funções que na fábrica exercia 579$996
Para combustível 36$000
Ajuda de custo à razão de 2400 réis diários 876$000
O que tudo somado perfez a encantadora cifra ânua de 1:891$996

Tão avultado honorário, "em parte nenhuma da Europa venceu jamais o administrador ou diretor de uma só fábrica" - elucida terminantemente a informação. José Bonifácio, quando no Reino ocupava o cargo de intendente geral das minas de Portugal e Algarves, recebia de vencimentos apenas 800$000 réis anualmente; e Martim Francisco tinha, por igual cargo na província, o mesmo ordenado de seu ilustre irmão, acrescido de uma ajuda de custo de 200$000 réis.

Documento oficial sobre as aptidões do pai de Varnhagen

De maneira que o simples diretor de uma fábrica vencia ordenados muito mais quantiosos que seus superiores hierárquicos. Entendia, por isso, o Governo Provisório que, por lei, além do soldo de sua patente, ele só tinha direito à metade do primeiro ordenado por que viera justo de Portugal (100$000 réis) ou, quando muito, à metade desse ordenado mais a metade do aumento que se lhe deu posteriormente aqui [19], devendo-lhe, entretanto, fazer tais pagamentos pelo Tesouro de Lisboa ou do Rio, repartições com as quais contratara seus serviços e não pela Fazenda Provincial de S. Paulo "que nunca o pediu, nem o propôs, e que de mais não recebeu os relevantes serviços que alega".

Ao contrário: as obras do Ipanema eram defeituosas, erradamente construídas, não produziam rendimento útil e consumiam esterilmente quantias elevadas para seu custeio. Se se dissesse que o ex-diretor se retirara de S. Paulo sem perceber ordenados de qualquer espécie, concordaria o governo que a munificência real o amparasse com sua graça privativa. Mas Varnhagen, além de ter ganho durante mais de 10 anos ordenados tentadores, que sobejamente o compensaram de todos os seus esforços, ainda ficara com o soldo de sua patente e a metade de seus primitivos vencimentos - o que tudo montava a 779$996 réis, quase tanto como Martim Francisco percebia em plena atividade profissional. Era uma excelente aposentadoria para a época.

A oposição feita pelo Governo Provisório à descabida pretensão de Varnhagen - oposição que partiu dos irmãos Andradas, não só pelos motivos que já expusemos, como porque eram eles inquestionavelmente as figuras predominantes da administração paulista -, e as desfavoráveis apreciações feitas com a maior franqueza, a respeito dos problemáticos méritos paternos, eis a dupla razão pessoal por que o VISCONDE DE PORTO SEGURO, empunhando o gládio da justiça histórica, tentou derrocar a fama dos heróis que tinham negado, por motivadas razões compridamente expostas, a pensão para a família de um funcionário feliz e bem aquinhoado de pingues rendas que usufruía sem trabalho algum.

Dissemos noutro lugar deste capítulo, que o segundo VARNHAGEN julga José Bonifácio e seus irmãos pela estreita lógica de seus próprios sentimentos pessoais. De fato, ele procura reverter sobre os Andradas o juízo que estes faziam do ex-diretor da Fábrica de Ferro. Não podendo contestar a José Bonifácio seus grandes talentos e copiosa, profunda ilustração, porque seria uma insensatez que o cobriria publicamente de ridículo, atribui seus atos principais a motivos de ordem pecuniária, a interesses materiais pouco nobres, a impulsos grosseiramente egoísticos.

Os Andradas provaram que Varnhagen senior percebia, sem trabalhar, uma dupla aposentação militar e civil e ainda pleiteava, com muito ardor e pouco juízo, uma pensão suplementar para sua família, já fartamente amparada dentro da Lei? Pois bem: VARNHAGEN filho, em represália, imaginou, ou antes, inventou, conforme demonstramos esmagadoramente com os documentos na mão, que José Bonifácio recebia sem trabalhar dez vezes mais que seu pai...

Os Andradas afirmaram que os serviços prestados por Varnhagen na Fábrica do Ipanema, além de errados e maus, foram dispendiosíssimos e jamais compensados por qualquer espécie de lucro real: Pois bem: o filho, para rebater a imputação de incompetente, irrogada ao pai, por quem entendia da matéria, tanto que era Fiscal das Minas e Matas em S. Paulo, veio a público, longos anos passados, em livro com pretensões a história, mas que não passa afinal de um odioso panfleto mal escrito contra os Andradas, afirmar, com a sobranceria inata nos incapazes que protege a audácia, que Martim Francisco, quanto à Mineralogia, "apenas possuía tinturas pedantescas", e de Finanças e Economia Política não possuía noção alguma [20].

Menos talentoso que os outros dois irmãos, era, mais que qualquer deles, vingativo e imprudente [21]. Mas, da mesma forma que não pôde negar a José Bonifácio a força de seu talento e a vastidão de sua sabedoria, não se atreveu a desconhecer que Martim, "felizmente para sua memória, granjeou sempre reputação da mais ilibada probidade" [22].

***

Conclui-se das nossas considerações que a publicação da História da Independência, pelo Instituto Histórico Brasileiro, para comemoração do centenário de nossa principal data política, foi mais prejudicial que útil à projetada glorificação.

Obra nutrida de ódio e sedenta de vingança contra a figura dominante em todas as fases do movimento emancipador, ela, procurando deprimir e ridicularizar a imponência dessa grandiosa figura, só serve para despertar nos brasileiros de hoje, não o justo sentimento de veneração pelo passado que a efeméride recorda, mas o menosprezo por quem tão abaixo se revelou da missão que o conjunto de nossos destinos lhe confiara.

Ainda mesmo que se colocasse José Bonifácio em plano inferior ao de outros fatores da patriótica jornada, é imperdoável atrair sobre ele, que governou o País no meio do estalar das maiores tormentas, o desrespeito da geração do Centenário, e muito principalmente quando os malevolentes juízos emitidos por VARNHAGEN não se originaram de uma convicção insuspeita, mas dos pequeninos assomos de seu orgulho ferido, em procura de uma desforra covarde.

Alguns detalhes novos que acrescentou ao que daquele período histórico se sabia, alguns documentos que compulsou nos arquivos e que ainda não tinham sido divulgados talvez - não compensam a erronia de seus conceitos, a falsidade de suas proposições, o mau exemplo dado a seus compatriotas, que no seu critério acreditaram, exemplo funesto cujos frutos aí estão patentes na publicação de tantas obras condenáveis pelas suas idéias e pela baixeza de sua linguagem, que apareceram durante as comemorações do ano do Centenário, e nas quais o ínclito varão, o portentoso Andrada, é tratado como o mais vulgar dos nossos homens antigos, por sua notória insipiência, por seu excessivo apego aos bens materiais, por suas insofridas ambições de mando, pela deficiência de seus sentimentos morais, por sua índole bajulatória, por seu atraso, por seu caráter refalsado e dúplice...

E como não apareceriam tais frutos, se VARNHAGEN, na insensatez de seu ódio e na sua desatinada preocupação de vingança, não poupa sequer os defeitos físicos de seu genial antagonista?!

Em nota acrimoniosa à página 140 de sua obra de difamação histórica e pessoal, refere-se ao hábito que tinha José Bonifácio de falar demais. Espírito vivo, impregnado de idéias; alma de artista, suscetível das mais apaixonadas emoções, deixava-se ele arrastar pelos estos de seu entusiasmo quando expunha uma questão, narrava um fato ou debatia um princípio que o impressionasse ou interessasse em dado momento.

A esse propósito, fala-nos o antipático escavador sorocabano, da voz roufenha do Patriarca, "acompanhada de alguns borrifos e perdigotos, que me amedrontaram". Não se pode ser mais irreverente nem mais medroso. Nessa ocasião, VARNHAGEN via José Bonifácio pela primeira vez, na casa do Ipanema. Batizava-se uma irmã do pretendido historiador futuro, que foi o incumbido da derrama dos confeitos; mas tanto medo lhe causaram os borrifos, os perdigotos e a voz roufenha do venerando ancião, que o atrevido fedelho, então com cinco anos de idade, desapareceu da festividade e não mais reapareceu a José Bonifácio, que era hóspede de seu pai.

Aliás, o medo era um dos fracos peculiares à alma do feroz detrator andradino. Aos cinco anos fugia espaventado dos perdigotos de um velho respeitável; e ao chegar à idade adulta, para além dos mares, fugia do campo da honra, para onde o emprazara uma adversário leal, por ele duramente maltratado em seus foros de homem de letras e em sua própria dignidade pessoal.

Polêmica. Perspectiva de duelo. Fuga

No correr de 1839, em plena fase do romantismo português, era uma das mais festejadas mentalidades da época, principalmente no gênero teatral, a que se dedicava com sucesso, o jovem escritor Ignácio Pizarro de Moraes Sarmento, que, além de dramaturgo, era romancista, manejava com perícia o verso, e cultivava com inteligência a história, sobretudo de seu país natal. Naquele ano, acabava de representar-se em Lisboa um dos seus dramas que maior sucesso alcançaram - Lopo de Figueiredo.

A opinião pública estimulou-se vivamente na apreciação desse trabalho, dividindo-se em campos opostos, enchendo o teatro, comentando a peça, louvando ou desaprovando intenções do autor. Na imprensa jornalística travou-se aspérrimo combate entre dois denodados campeões - o Correio e o Director.

A estas alturas, VARNHAGEN, que por lá se achava, estudando Matemática, entendeu de intrometer-se no debate a que era totalmente estranho, não só por lhe faltar competência e notoriedade para isso, como também pelos seus verdes anos ainda mui desassisados. Mas, abelhudo, metediço e audaz como sempre se revelou, não mediu as conseqüências de sua indiscreta intromissão em luta alheia, e saiu a campo, brandindo o rude e pesado espadagão de seu estilo brutal, contra Moraes Sarmento, que se encontrava no apogeu da glória literária.

O dramatista luso voltou-se indignado contra a insolência do crítico brasileiro; e mandou desafiá-lo para um duelo, a que VARNHAGEN vergonhosamente se furtou, fazendo-se inesperadamente de vela para o Rio de janeiro, corrido de medo diante dos aparatos impressionantes de um encontro pelas armas e da perspectiva de um golpe magistral de florete manejado com destra elegância e justificado rancor.

Naqueles tempos de romantismo, os duelos eram de verdade - matava-se a sério; na quadra positiva em que hoje vivemos, quando os contendores levam sua coragem ao ponto de amanhecerem no campo para se bater - simula-se o ataque e dá-se a honra por desagravada em ata que se lavrou antecipadamente.

O gratuito ofensor de Moraes Sarmento não quis sujeitar-se à delicada prova, e só ficou restabelecido de tamanho susto quando pisou, feliz e desafrontado, o grato chão da natalícia Pátria. A alma do prodigioso infante que se arrufara trêmula de medo, ao ouvir, no vasto casarão colonial do Ipanema, a voz roufenha de José Bonifácio, não se tonificou de energias morais no decorrer dos anos que se sucederam; e, em plena e vigorosa mocidade física, fugiu da espada vindicativa de Moraes Sarmento, como na idade meninil fugira dos perdigotos do varão preclaro [23].

As falhas morais, entretanto, revestem-se de uma gravidade que os defeitos físicos não têm: estes podem incomodar o irritado e precoce orgulho das crianças mal educadas e servir de pasto à maledicência de velhos malignantes e despeitosos, que o merecido triunfo dos inimigos perturba; ao passo que aquelas causam fatalmente à sociedade males, muitas vezes irremediáveis, pela nociva prática de atos contrários às elevadas sugestões do altruísmo e pela divulgação de juízos opostos à verdade das doutrinas demonstráveis, à realidade dos acontecimentos havidos e à honorabilidade dos repúblicos verdadeiramente egrégios.

É este precisamente o caso de VARNHAGEN que, no seu inglório e malogrado afã de derrocar o prestígio e empalidecer a auréola do Patriarca, não trepida em adulterar os fastos da vida nacional, em sofisticar documentos, em confundir datas, em baralhar sucessos, em imaginar hipóteses despropositadas e ilógicas, em escrever uma história com o fim preconcebido e antipático de deprimir, de anular talvez, perante a Posteridade, a gigantesca figura desse vulto acolhido pela glória.

Nada, porém, ó conterrâneo ilustre, paulista emérito, patriota insigne, conseguirão, com a força de seu ódio atroz, teus implacáveis detratores vis! Teu nome há de fulgir, em perpétuo resplendor, na grata recordação de todos os dignos brasileiros que te agradecem a obra sagrada em que se empenhou teu gênio; e teus feitos, registrados nos anais verídicos de nossa verdadeira história, hão de atestar a todas as gerações que tu foste o herói que fez a independência e o estadista que fundou a Pátria!


NOTAS:

[1] Obr. cit., pág. 140.

[2] Obr. cit., pág. 132, notas 27 e 28, e pág. 133, nota 1.

[3] Cartas de d. Pedro a d. João (edição E. Egas), pág. 33.

[4] DJALMA FORJAZ - Terceira Conferência sôbre o Senador Vergueiro; Rio Branco - Nota nº 6 à pág. 97 da Hist. da Indep., de VARNHAGEN.

[5] Página 20, primeira parte.

[6] D. Pedro, segundo sua carta de 15 de fevereiro ao pai, recebeu nesse mesmo dia a deputação mineira que lhe dirigiu uma fala, pedindo-lhe para ficar, "exigindo a mesma fórmula de governo que S. Paulo" e igualmente "Participo a Vossa Majestade - continua ele - que soube pela mesma deputação que Minas não manda os seus deputados de Cortes sem saber a decisão de tudo, e, seja qual for a decisão sobre minha retirada, ela sempre se oporá a que eu regresse a Portugal, custe-lhe o que custar" (Edição E. Egas, pág. 81). Donde se vê que a ilustrada Comissão do Instituto não tem razão: o gesto dos mineiros é anterior a 25 de fevereiro.

[7] O projeto de Borges Carneiro, apresentado em sessão de 30 de outubro de 1821, e publicado no Diário das cORTES, nº 213, é assim concebido: "Sou informado de que o doutor José Bonifácio de Andrada, há muito tempo ausente no Brasil, recebe anualmente de ordenado coisa de doze mil cruzados de ofícios públicos, que tem neste Reino, como, por exemplo, de inspetor do Encanamento do Mondego, de inspetor geral das Minas, de lente de Metalurgia, etc. etc. Ter muitos ofícios e não servir nenhum; tê-los em Portugal e estar no Brasil, e fazerem-se tais remessas de dinheiro para o país onde ele nasceu, são coisas que não entendo. O dinheiro público é muito precioso para assim se desperdiçar. Ordenados são tributos impostos à Nação; não sei que se possam impor tributos para semelhantes fins. Proponho, portanto, se diga ao governo que, enquanto o dito doutor Andrada não vier, efetivamente, para o Reino, servir seus ofícios, mande suspender-lhe os pagamentos, à exceção dos que lhe tocarem por jubilação ou aposentadoria" (ASSIS CINTRA - O Homem da Independência, pág. 78).

[8] Leis e Decisões do Brasil, vol. de 1818 a 1822, pág. 82.

[9] Leis e Decisões do Brasil, vol. cit., pág. 82.

[10] O dr. A. D'ESCRAGNOLLE TAUNAY (Grandes Vultos da Independência Brasileira, pág. 23), na biografia do velho Andrada, diz que este foi desembargador honorário da Relação do Porto. É equívoco. A petição de José Bonifácio a d. João VI, que citamos no volume anterior e que transcrevemos adiante em nota deste volume, prova cabalmente o contrário. Ele foi desembargador efetivo.

[11] Páginas 319 a 404.

[12] Volume I, págs. 418 a 421.

[13] Transcrevemos in integro a petição que o sábio Andrada, antes de partir para o Brasil, dirigiu a d. João, e que é uma importante página de sua biografia: "Senhor. Representa a V. A. R. o des.º José Bonifácio de Andrada e Silva que ele suplicante se acha muito falto de saúde e de forças, como é de notoriedade pública e já por atestação do médico o mostrara perante o Governo de Portugal, e sem esperança alguma de completo restabelecimento, por serem as moléstias que padece de natureza crônica e já envelhecidas, a que a medicina não sabe curar, mas só quando muito paliar com dieta e sossego, que não pode ele ter no exercício ativo que requerem os empregos e comissões com que V. A. R. progressivamente se tem dignado de o honrar.

"Vê-se pois o suplicante na triste necessidade de ir implorar segunda vez de V. A. R. a graça de o mandar aposentar pelo modo que mais convier à Bondade e Alta Magnanimidade do Real Coração de V. A. R., lembrando-se de que o suplicante tem mulher e duas filhas e que em todo o tempo do seu longo serviço nunca o suplicante pode ou soube fazer casa para lhes deixar, mas apenas sustentá-las honradamente sem empenho e dívidas, com os ordenados que vencia.

"Para merecer de V. A. R. esta graça que implora humildemente, permita V. A. R. que o suplicante exponha em breve quadro os pequenos serviços que tem feito ou procurado fazer ao Estado em todo o tempo do exercício dos seus empregos e ocupações.

"O suplicante, depois de se ter habilitado na Universidade de Coimbra, formando-se nas Faculdades de Leis e Filosofia para servir nos lugares da magistratura, deixou a sua carreira em obediência às ordens da Rainha Nossa Senhora, Augusta Mãe de V. A. R., que o nomeara para viajar pela maior parte dos países da Europa e visitar todos os seus estabelecimentos montanhísticos e metalúrgicos, a fim de se instruir prática e teoricamente na administração e economia pública e particular deste ramo; no que empregou dez anos e três meses com bastantes sacrifícios e incômodos seus, mas teve a ventura de merecer de estrangeiros estimação e nome, como se mostra na escolha que dele fizeram para seu sócio várias academias e sociedades literárias da Europa.

"Voltando a Portugal em setembro de 1800 se dignou V. A. R. acolhê-lo com aquela Régia Benignidade que é tão própria ao Generoso Coração de V. A. R. e imediatamente o fez viajar em companhia do cavaleiro Carlos António Napio pela Extremadura e parte da Beira em várias diligências do Real Serviço. Voltou em janeiro de 1801 e foi mandado imediatamente a examinar os pinhais reais dos Medos e das Virtudes, sitos nos terrenos de Almada e Cezimbra.

"Pela carta régia de 15 de abril de 1801 foi V. A. R. servido despachá-lo para ir criar a Cadeira de Metalurgia na Universidade de Coimbra, por proposta do Reitor Reformador; ao que obedeceu como vassalo fiel, bem que não fosse este lugar de gosto e vontade sua. Por outra Carta Régia de 18 de maio do mesmo ano foi V. A. R. servido nomeá-lo para membro do novo Tribunal de Minas, que se propunha criar para direção das Casas de Moeda, Minas e Bosques de seus vastos domínios com o cargo e título de Intendente Geral das Minas e Metais do Reino; mas aquele Tribunal não se criou até hoje e até hoje não se verificou a dita nomeação e mercê no suplicante.

"Pelo decreto de 8 de julho do mesmo ano determinou V. A. R. que o suplicante fosse tomar posse das antigas minas de carvão de pedra de Buarcos, cuja administração tinha vagado pela morte do tenente-geral Bartholomeu da Costa; e ordenou outrossim, que o suplicante fizesse logo restabelecer as antigas ferrarias de Figueiró dos Vinhos e Avellar, que tinha criado o Senhor Rei d. João I.

"Por outro decreto de 12 de novembro do mesmo ano foi o suplicante nomeado diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa, que devia criar de novo para ali se darem lições e se fazerem as experiências necessárias em química e docimásia metalúrgica; estabelecimento este, que apesar de não estar inteiramente acabado pelas circunstâncias do tempo, é todavia um dos melhores laboratórios que tem a Europa.

"Pelo Alvará de Minas de 30 de janeiro de 1802 dignou-se V. A. R. dar regimento aos estabelecimentos metálicos que em Portugal mandara criar; em cujo desempenho apesar de ter o suplicante lutado constantemente até hoje com mil embaraços, faltas de cabedais precisos, e mil trabalhos e aflições, já tem conseguido criar de novo e por em atividade duas ricas minas de carvão de pedra, uma grande fábrica de ferro, uma mina de ouro e outras mais que se vão começar.

"Pela carta régia de 1º de julho de 1802 foi novamente encarregado o suplicante de dirigir e ativar a sementeira de pinhais nos areais das costas marítimas, começando pela sementeira do Couto de Lavos a que só pode dar princípio em janeiro de 1805, mas que findou desgraçadamente em 28 de março de 1806 pela falta dos dinheiros consignados, pela usurpação pérfida dos franceses e guerra devastadora que se lhe seguiu. No desempenho desta comissão fez também arrecadar e entrar no Real Erário perto de nove contos de réis, que andavam distraídos e perdidos por mãos particulares; assim como pôs em ordem a cobrança da dízima nova do pescado de Lavos, que monta, uns anos por outros, em 600$000 até 700$000.

"Pelo alvará de 13 de julho de 1807 se dignou V. A. R. honrar o suplicante com mais um testemunho da sua Real Contemplação e Benignidade, nomeando-o para os lugares de superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas da Cidade de Coimbra, que servira o des.º José de Magalhães Castello Branco, e para diretor hidráulico das obras do encanamento que servira o dr. Estêvão Cabral; e como não havia então provedor dos Maralhões que arrecadasse a finta que pagam as terras do campo de Coimbra para as obras dos seus reparos, desde esse tempo até hoje tem servido o suplicante de provedor dos Maralhões. As obras hidráulicas do Mondego, apesar de faltas de dinheiro, da invasão do inimigo e falta de meios e socorros, durante a última longa guerra, já vão em grande aumento e têm merecido a aprovação e agradecimentos sinceros de todos os povos daqueles campos.

"De todos estes lugares e empregos com que V. A. R. quis honrar o suplicante, só tem recebido os ordenados dos seguintes: do de lente da Universidade pelo cofre da mesma; do de intendente geral das Minas e Metais desde 1803 por diante, pelo Real Erário a princípio, e depois pelo cofre da direção da Fábrica de Seda e Águas Livres, com interrupção porém de dois anos que foram 1808 e 1809; o de superintendente do Rio Mondego, a 2$400 por dia, pelo cofre particular do Real d'água de Coimbra de que se lhe estão ainda devendo mais de nove mil cruzados. Todos os mais lugares tem servido gratuitamente assim como desde 1805 em que V. A. R. o nomeou desembargador ordinário e efetivo da Relação e Casa do Porto, de que pagou os novos direitos, nunca até hoje recebeu ordenado algum.

"Em 1808, sacudindo Coimbra o jugo detestável dos franceses e aclamando de novo V. A. R., o suplicante imediatamente se pôs à testa da revolução e procurou com intrepidez e fidelidade ajudar o vice-reitor da universidade, então governador civil e militar, com os seus conselhos, exemplo e atividade, como é constante e de notoriedade pública. Em 1809, formando-se por ordem superior o Corpo Militar Acadêmico foi o suplicante nomeado major e depois no posto de tenente-coronel fez a campanha de Vouga e Douro, servindo também de presidente do Conselho de Polícia de Segurança da Divisão comandada pelo general Nicolau Trant. Neste arriscado mas glorioso serviço mereceu os elogios mais lisonjeiros do seu general, que constam do seu ofício de 22 de agosto de 1809 e os do marechal-general marquês de Campo Maior, como se vê da ordem do dia ao Exército, de 4 do mesmo mês e ano, que anda impressa.

"Conquistado o Porto e tendo fugido a maior parte dos magistrados daquela cidade, foi o suplicante nomeado intendente interino de Polícia, superintendente da Alfândega e da Marinha, em que serviu gratuitamente e foi também encarregado de arrecadar e tomar posse dos armazéns do inimigo, e de restituir aos donos legítimos o que se lhes tinha roubado e se achava sonegado em diferentes mãos particulares; e só para o Real Erário remeteu o suplicante mil e trezentas sacas de algodão, salvo erro, que livrou do descaminho que levariam em tais circunstâncias.

"Além disto desempenhou muitas outras comissões civis e militares, de que era quase diariamente encarregado. Em 1810, quando os franceses ameaçavam Lisboa, reuniu de novo o Corpo Militar Acadêmico, de que tinha sido nomeado comandante, e o fez marchar para se opor ao inimigo no posto militar de Peniche e suas vizinhanças, onde existiu até a retirada do inimigo.

"Tudo isto consta das numerosas ordens e avisos do Governo, que param nas suas mãos e se acharão registrados na Secretaria dos Negócios da Guerra. No mesmo tempo, por ordem do Governo, escolheu os objetos e produtos de maior valia do Real Museu da Ajuda, os quais classificou, inventariou e fez embarcar com a maior diligência possível e sem a menor gratificação pecuniária para as despesas que fez. Deu também o suplicante e dirigiu o fabrico da nova moeda de bronze, de que já tem seguido grande utilidade ao Erário Régio.

"Além de todos estes pequenos mas numerosos serviços desde 1800 para cá, procurou sempre o suplicante desempenhar com o acerto que lhe permitiam suas fracas luzes os objetos de governo e economia pública e particular em que mui repetidas vezes fora mandado ouvir e consultar pelas secretarias de Estado e tribunais.

"Estas são em breve, Augusto Senhor, as razões em que se funda o suplicante para ir agora implorar humildemente da Alta Piedade e Magnanimidade de V. A. R. a mercê de que se digne, visto a falta de forças e de saúde do suplicante, mandá-lo aposentar, de modo que a sua família possa subsistir para o futuro parca, mas honradamente, de cuja graça não duvida um só momento o suplicante porque está certo que o Generoso e Augusto Coração de V. A. R. nunca foi escasso e insensível aos rogos dos vassalos amados e fiéis que têm procurado servir a V. A. R. e a Pátria com zelo e probidade; e mais agora que temos a ventura de ver a V. Majestade sentado no trono de seus augustos antepassados para felicidade de seus bons vassalos de ambos os mundos. - Coimbra, 26 de agosto de 1816".

[14] Julgamo-lo o mais antipático de nossos historiadores, por sua parcialidade e falta de probidade literária (vide nosso primeiro volume, páginas 508 e 509).

[15] O Movimento da Independência, págs. 53 a 54.

[16] Engana-se AZEVEDO MARQUES (obra cit., vol. 1º, pág. 138, col. 1ª) quando afirma que Frederico Luís Guilherme Varnhagen, já então tenente-coronel, foi elevado ao posto imediato em reconhecimento dos serviços que nessa ocasião prestou fazendo correr o ferro. Em tal ocasião era ele major e foi então guindado a tenente-coronel, patente com que se retirou para Portugal.

[17] A. D'ESCRAGNOLLE TAUNAY - Os Grandes Vultos da Independência, pág. 62.

[18] O original manuscrito encontra-se no Arquivo Público deste Estado.

[19] Eis na íntegra a informação de que tratamos: "Ilmo. e Exmo. Senhor - O Governo Provisório, em cumprimento do aviso de 21 de agosto passado, expedido por V. Exa., que acompanhou o requerimento do tenente-coronel engenheiro Frederico Luís Guilherme Varnhagen, administrador da Fábrica de São João do Ipanema, em que pede uma pensão para a sua numerosa família, em remuneração dos seus serviços, informa o seguinte: Que quando o dito Varnhagen chegou a Portugal, para servir de ajudante do condutor dos Fornos da Fábrica de Ferro, de Figueiró dos Vinhos, veio vencendo, em conseqüência dos seus ajustes, 200$000 anuais, e depois de algum tempo passou a 400$000, os quais S. Majestade lhe conservou a título de metalurgista; que de um simples particular passou a tenente de Engenharia, posto em que se conservou perto de oito anos, e, na sua retirada para o Brasil, foi tendo contínuos acessos, de maneira que hoje se acha tenente-coronel do mesmo Corpo, com o vencimento anual de 579$996, além de 36$000 por ano para combustível, 876$000 de ajuda de custo ânua à razão de 2$400 por dia, o que tudo faz o cômputo de Rs. 1:891$996, honorário que em parte nenhuma da Europa venceu o administrador ou diretor de uma só fábrica, honorário tanto mais extraordinário quanto, no mesmo tempo, o intendente geral das Minas dos Reinos de Portugal e Algarves vencia apenas 800$000.

"Não obstante isto, se ele continuasse no mesmo serviço, tinha direito a perceber o mesmo que se lhe tinha dado; mas hoje que ele obteve licença para retirar-se deste serviço, o que lhe fica pertencendo legalmente é o soldo de sua patente, e 100$000 de pensão, metade do primeiro ordenado por que viera justo, e que S. Majestade lhe havia prometido, ou, quando muito, 200$000, a metade do honorário que depois vencera em Portugal, os quais parece lhe devem ser pagos, ou pelo Tesouro Nacional de Lisboa, ou pelo Erário do Rio, onde ele teve tais acesos, e fez tais ajustes, e não pela Fazenda desta província, que nunca o pediu, nem o propôs, e que de mais não recebeu dele os relevantes serviços que alega, como se passa a mostrar.

"Com o socorro do mestre sueco e de outros, levantou os dois fornos altos e outras obras, que formam a Fábrica nova, porém tudo está ainda tão imperfeito, e os produtos de suas fundições e refinos, e as suas obras moldadas, são ainda de tão má qualidade, e obtêm-se com tanto dispêndio, que a Fábrica, em vez de ter dado lucros, perde continuamente; e é por isso que o Governo vai cuidar agora em emendar todos os defeitos e corrigir todos os erros, que tem encontrado neste Estabelecimento, com o fito de o tornar, para o futuro, útil e proveitoso.

"Se o dito tenente-coronel Varnhagen tivesse, pois, corrigido todos estes defeitos, e deixado a Fábrica em um pé de verdadeira utilidade, tinha sido mais que pago com o grande ordenado de 1:891$996 que percebera. Abandonando o serviço da Fábrica perdeu todo o direito que tinha aos seus vencimentos, e a Província só tem a perdoar-lhe, ou as despesas estéreis que fez, ou os erros que a vão obrigar a novas despesas.

"Quanto ao exemplo da pensão concedida por S. Majestade ao diretor sueco Heldeberg, que ele cita para abonar a justiça do que pede, supõe o Governo, que de nada lhe vale, porquanto, graças especiais privativas da vontade do Soberano são superiores à autoridade dos Governos, que só devem seguir a lei; além de que Heldeberg era um simples particular, sem meios de subsistência, e por isso excitou a compaixão de S. Majestade; e o tenente-coronel Varnhagen tem o soldo de sua patente, e de mais a pensão de cem, ou duzentos mil réis, a metade de um dos seus ordenados. É tudo quanto o Governo pode informar a este respeito, sem falar no miserável estado das rendas desta Província. S. A. R., no entanto, mandará o que for servido. Palácio do Governo de S. Paulo, 1º de outubro de 1821. - Ilmo. e exmo. sr. conde de Louzan - Com três assinaturas dos Srs. do Governo".

[20] Obr. cit., pág. 169.

[21] Obr. cit., pág. 263.

[22] Idem, pág. 169.

[23] A catástrofe sucedida com o futuro visconde de Porto Seguro em Portugal é assim narrada pela pena incomparável de Camillo Castello Branco: "Seguiram-se os dramas, que tiveram grande voga, e sugeriram debates mais ou menos facciosos na imprensa de Lisboa, nomeadamente o Lopo de Figueiredo. Foi notável a altercação de dois jornais de 1839, o Correio e o Diretor. Francisco Adolpho de Varnhagen, moço de vinte anos, e sedento de glórias, com armas débeis para conquistá-las, agrediu, mais apaixonado que douto, o drama de Ignácio Pizarro, exposto às provas públicas, e galardoado de aplausos. Saiu o autor em defesa de seu escrito, e tão acesa afinal correu a refrega, que já não houve o terminar-se, sem entrarem armas neste certame literário. O certo é que Francisco Adolpho de Varnhagen, algum tanto desairado no fecho da pendência, fez-se de vela para o Rio de Janeiro, sua Pátria, e lá, mais enriquecido de saber e mais discretamente aconselhado no exercício de sua ciência, vingou altear-se à posição de créditos literários, que já agora podem emparelhar com os mais prestadios de Portugal. Se a consciência de Ignácio Pizarro houvesse de molestar-se da catástrofe literária, que ocasionou ao seu contendor da mocidade, o sucesso daquela aventura deve hoje redundar-lhe em muito contentamento" (Esboços de Apreciações Literárias, 2ª edição, págs. 239 e 240).

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