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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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Portugal e o Ocidente nos séculos XVIII e XIX

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, em sua Introdução Fundamental, com ortografia atualizada (páginas 17 a 31):
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A cidade de Santos é a Pátria dos filhos da liberdade, o berço dos grandes homens de nossa Terra.
Barão Homem de Mello

I - Bosquejo sintético da situação política e social do Ocidente desde os primórdios da transição moderna até os fins do século dezoito

Constituição da Ocidentalidade

ascendência gradual da Fé Católica, através dos longos dez séculos que constituem verdadeiramente a duração histórica da Idade Média, tinha congregado, na derradeira fase desse brilhante período da civilização, os cinco povos mais adiantados do Planeta numa perfeita confederação espiritual presidida pelo papa.

Associaram-se a princípio a esse lento, se bem que espontâneo, trabalho de agregação política e social as nações que tinham diretamente resultado da incorporação romana: a França, a Itália e a Espanha, às quais se vincularam depois a Inglaterra e a Alemanha, que só assimilaram os impulsos daquela incorporação indiretamente, isto é, por comunicação ou transmissão das três primeiras [1].

Apogeu e decadência do poder papal

O Papado, que progressivamente ganhava forças e dilatava ilimitadamente seu poder, começou a atingir, com o advento de Gregório VII ao Sólio Pontifício, o máximo de sua preponderância. A Cristandade, resumida naquele poderoso bloco ocidental, caminhava à testa do conjunto humano. O poder espiritual, nos diversos degraus de sua imponente hierarquia, e o poder temporal, nas suas diferentes ramificações, operavam separadamente dentro cada qual de sua esfera.

O primeiro, pela sabedoria de seus conselhos, pela retidão de seus exemplos, pela severa aplicação da doutrina, pelo brilho de seus predicados mentais e pela grandeza de seus atributos morais, dirimia as contendas, julgava os contendores, apreciava livremente os casos submetidos à sua decisão por dirigentes e por dirigidos, mantendo, assim, uns e outros adstritos a uma justa disciplina, tão conveniente como indispensável às necessidades vitais da comunhão.

Por sua vez, os príncipes, os senhores feudais, os detentores quaisquer da força material, se limitavam à conservação da ordem política nas respectivas circunscrições territoriais, sob a vigilante inspiração do sacerdócio que dispunha unicamente das armas pacíficas de seu apostolado.

É a partir de Gregório VII que essa racionável separação mais se caracteriza pelo crescente predomínio da autoridade pontifical. Com a energia peculiar ao seu indômito caráter, adotou ele medidas tendentes a moralizar o clero em manifesta degradação e a submetê-lo sistematicamente à indiscutível obediência papal. Sem essa dupla medida preliminar, como poderia tal classe fazer que seus conselhos e resoluções fossem ouvidos por governados e por governantes?

Ao mesmo tempo que assim agia quanto à disciplina eclesiástica, tratava de realizar praticamente a completa e digna independência do poder espiritual em relação ao poder civil. As memoráveis lutas que sustentou, longa, tenaz e galhardamente, com o imperador Henrique IV, para reduzi-lo ao seu ponto-de-vista, verdadeiramente positivo, terminaram afinal pela completa vitória do Pontífice.

Decidindo, por essa ocasião, que os povos têm o direito incontestável de insurgir-se contra os príncipes, quando estes cometem abusos ultrapassantes de toda a razão, e que a direta apreciação de casos tais cabe essencialmente ao papa, é certo que reivindicou ele para o poder espiritual, que apenas rudimentarmente se esboçava, uma das suas mais eminentes e gloriosas prerrogativas. Aliás, foi ela exercida, com relativo êxito, por alguns de seus sucessores mais ilustres, durante a fase final da Idade Média.

Entretanto, quando a eficácia política e social do Catolicismo começou a declinar, os povos continuaram a usar daquele direito, reconhecido e proclamado pelo mais alto poder da Igreja constituída; infelizmente, porém, como já lhes faltasse quem tivesse autoridade bastante para soberanamente julgar em cada caso, era o grosseiro influxo do arbítrio popular, expresso pela maioria ocasional das vontades numéricas, quase sempre tumultuárias e sem responsabilidades efetivas, quem deliberava sobre a oportunidade e a necessidade das revoluções.

Mas os belos frutos da atividade pontifícia apodreceram depressa por sua prematuridade. Sugestivo era, sem dúvida, o espetáculo que oferecia então o Ocidente, com as balizas dos seus poderes de tal forma determinadas, que um não podia transpor os domínios do outro, sem profunda perturbação do equilíbrio social.

A partir, porém, do décimo quarto século, com Bonifácio VIII, principiou a decair o prestígio do corpo sacerdotal, porque a doutrina, em cujos princípios ele falava à universalidade das gentes, punha-se, cada vez mais, em contradição flagrante com as vitoriosas demonstrações da ciência real.

O dogma católico, imobilizado dentro do absolutismo de suas concepções tradicionais, revelava-se impotente para disciplinar as novas forças que surgiam e se agitavam, ansiosas de luz, frementes de liberdade.

Surto do espírito científico

À medida que o espírito científico se elaborava, freqüentes conflitos estalavam entre a Razão e a Fé, entre a realidade das leis naturais por ele descobertas e a sobrenaturalidade das concepções em que se baseava o dogma.

Originou-se daí um estado cerebral de dúvida, de incerteza e de incredulidade que, atingindo o próprio sacerdócio, explodiu na revolta protestante do século dezesseis e, prolongando-se e evolvendo no currículo das idades, integralizou-se no negativismo sistemático de Voltaire e Rousseau, em pleno século dezoito.

O motivo aparente da revolução religiosa era o luxo mundanário que o clero católico ostentava com impudência, principalmente na Itália e especialmente em Roma, mas na verdade esse próprio relaxamento dos órgãos eclesiásticos provava que os princípios é que se achavam exaustos e não mais poderiam conter nem mesmo os abusos e imoralidades de seus apóstolos.

O sacerdócio medievo, colocando-se no ápice da direção social, e sujeitando à sua autoridade senhores e povos, estabelecera de modo inequívoco, embora precoce, o eterno preceito de que a política está subordinada à moral. Mas a moral teológica não tinha outra base mais que a revelação divina. À proporção, portanto, que as conquistas da ciência moderna se contrapunham aos mistérios da revelação antiga, a moral que promanava desta ia perdendo sua pureza dogmática, seu prestígio social e sua eficácia política.

Começada a fatal decadência, não houve esforços bastantes a restaurar uma organização que desmoronava pela base. O mesmo digno sacerdócio que, na fase capital do desenvolvimento da Idade Média, independia nobremente dos chefes temporais e exercia com a mais sobranceira liberdade suas funções junto a todas as pessoas, corporações e classes, degenerara de modo tal que por toda a parte se avassalara incondicionalmente ao poder político, passando de agente esclarecido e capaz a instrumento inepto e servil que os reis e os nobres manejavam ao talante de seus caprichos e conveniências.

Assim, pois, a revolução protestante, pondo a descoberto uma situação anárquica que de fato já se vinha caracterizando nitidamente desde o século catorze, serviu para evidenciar o quão urgente se tornava opor a esse trabalho demolitório um franco movimento de reorganização, ao mesmo tempo teórico e prático, isto é, religioso, filosófico e científico e assim também econômico e político.

No século dezessete, Newton, secundando o tríplice esforço anterior de Kepler e completando a lei de Galileu, desfechava um golpe mortal no dogma católico, pela descoberta da lei da gravitação planetária, que explicava o equilíbrio dos astros suspensos indefinidamente no espaço.

No século seguinte, a química, sob o impulso genial de Lavoisier, constituía-se definitivamente; a elaboração biológica lançava os seus fundamentos iniciais com os notáveis trabalhos de Xavier Bichat, retomados e continuados mais tarde por Broussais; e os estudos de Gall sobre as funções nervosas do cérebro, os de Cabanis sobre as relações entre o organismo físico e o moral, os de George Leroy, provando, por uma série de observações eternamente memoráveis, que a natureza mental e afetiva dos animais é idêntica à nossa, apenas se diferençando quanto ao grau de desenvolvimento respectivo, conclusão demonstrativa de que, ou nós não temos alma ou os animais têm alma como nós - aceleraram a evolução de nossa Espécie, fazendo a ciência ascender majestosamente de sua base primitiva, meramente cosmológica, até o conhecimento do homem e deste ao da sociedade, cujos fenômenos, em tentativa admirável, mas imperfeita, Condorcet magistralmente entrevira no seu esplêndido Resumo Histórico do Progresso.

A dissolução política da santa religião de nossos maiores chegara ao seu auge, restando apenas para consolo e ventura das almas atribuladas a grandiosa eficácia moral das sugestões do seu culto.

***

Organização e preponderância do poder temporal

A inevitável decomposição da ordem antiga vertiginosamente se operava desde os extremos finais da Idade Média; e enquanto uma disciplina forte não surgia para reorganizar em novos moldes o Mundo, este, privado inteiramente de uma direção espiritual capaz de orientar as tendências, aspirações e vontades humanas que contraditoriamente se agitavam por toda a parte, caminhava a passos rápidos para uma fase de anarquia completa.

Necessário, portanto, se tornava que o poder temporal, sobrepondo-se à decadência política do sacerdócio católico, tomasse decisivamente o encargo de substituí-lo na direção dos povos sem governo. A força material derrocou todas as resistências, e submeteu o próprio clero desprestigiado à plena dependência do poder civil.

Em conseqüência, o feudalismo logicamente se dissolveu também. A fé comum, pregada, defendida e aplicada por um mesmo sacerdócio, mantinha a unidade moral entre as pequenas mas numerosas circunscrições feudais, desenvolvendo uma vida comum compatível com a independência local de cada feudo. Quebrado, porém, o vínculo religioso que conservava essa unidade, o único recurso para restabelecer uma relativa ordem material, em meio à desordem moral generalizada, era subordinar as forças regionais - os feudos - à autoridade do poder central - a realeza.

Essa magna tarefa realizou-se através de lutas prolongadas, em todo o Ocidente, exceto na Inglaterra, onde os senhores feudais saíram vitoriosos submetendo o rei. Essa é a origem histórica do parlamentarismo inglês, que é o poder que de fato prepondera nesse país típico, onde o rei não passa de um simples espantalho constitucional, sem nenhuma função governativa.

A direção do mundo passa de Roma para Paris

À França coube tomar a direção efetiva do movimento moderno, duplamente assinalado pelo ardor em remover todos os destroços do teologismo decrépito, e pela ansiedade impaciente em fundar uma nova ordem geral sobre alicerces mais estáveis, mais duradouros e mais positivos.

Desde Carlos Magno achava-se ela à frente dos povos que formavam e ainda hoje formam a brilhante vanguarda ocidental, cuja civilização e independência aquele monarca praticamente garantira contra o constante perigo das invasões que os flagelavam.

Daí a missão que lhe coube de fecundar nos seus flancos o germe sagrado da regeneração universal. A crise estendia-se a todo o Ocidente, mas, pelas razões sumárias que há pouco expusemos, a solução relativa só poderia ex-surgir na França, ou mais propriamente em Paris, que já era e ainda é hoje a capital da Ocidentalidade.

Faltava, contudo, aos elementos empenhados em resolver o problema, uma doutrina realmente construtora, que coordenasse, num eficaz impulso coletivo, todos os esforços individuais e sociais que flutuavam dispersos, desempenhando, nesse momento crítico, função equivalente à que o Catolicismo desempenhara na fase culminante da civilização medieval.

A filosofia de Voltaire

O século dezoito decorrera fértil em pensadores eminentes, quer na Metrópole parisiense, quer nos países que em torno do foco regenerador gravitam. Três escolas antagônicas disputavam a supremacia na direção espiritual desse movimento.

A escola de Voltaire, cética e frívola, mais literária do que filosófica, tendia antes de tudo a destruir o altar. Poupava Deus, mas combatia o clero. O famoso argumento de seu fundador - Se não existisse Deus, seria preciso inventá-lo - sintetiza bem o ceticismo doutrinal da escola. Para ela, Deus era antes uma necessidade lógica do que uma verdade real. O seu ideal supremo era a liberdade.

A escola de Rousseau

A escola de Rousseau, declamatória e sofística, pregava a eliminação do trono, substituindo a autoridade real emanada de Deus pela soberania popular emanada do sufrágio. Inconseqüente como a de Voltaire, instituía uma religião civil, entre cujos dogmas figurava, em primeiro lugar, o reconhecimento obrigatório da existência de Deus, poderoso, inteligente, benévolo, previdente e providente [2].

Entretanto, da mesma forma que o seu antagonista aceitava Deus, mas combatia o clero por Deus investido na alta função de representá-lo na terra, também Rousseau guerreava os tronos criados pela Divindade, cuja existência e poder ele mesmo reconhecia e proclamava. A igualdade era a pedra angular do seu sistema.

Diderot e a Enciclopédia

Entre essas duas correntes que fluíam em ondulações pitorescas por álveos pouco profundos, a escola de Diderot, como uma torrente catadupal, tombava rugindo das alturas formidáveis da Enciclopédia; e, levando de vencida todos os obstáculos que a tradição lhe opunha, inundava a Europa com o cristalino esplendor de seus fecundos princípios.

Era uma escola filosófica verdadeiramente ocidental; não se formara apenas de contribuições de sábios e pensadores franceses, mas de notáveis fatores intelectuais da Itália, da Inglaterra, da Alemanha, nomes como Beccaria, como Hume, como Kant...

Uns mais, outros menos emancipados, concorreram todos para que das páginas imortais da Enciclopédia, Diderot, espírito que abrangia a universalidade dos conhecimentos de seu tempo, constituísse uma doutrina homogênea, dispondo de aptidão orgânica bastante para, apesar das suas falhas e imperfeições, presidir à transição revolucionária do Ocidente [3].

Para patentear a sua aptidão prática, basta citar três nomes que saíram diretamente dela: Turgot, o célebre ministro de Luís XVI; Danton, o estadista da Revolução, e Frederico II, que transformou, durante o seu reinado, a monarquia absolutista da Prússia numa ditadura republicana, garantidora da ordem e propulsora do progresso.

Da aptidão filosófica da doutrina fala bem alto a decisiva observação de Diderot ao argumento de Voltaire, a que há pouco nos referimos. Dizia este: Se não existisse Deus, preciso seria inventá-lo, e comentava aquele: Foi isso exatamente o que se fez.

E Hume, o profundo pensador britânico, demonstrava, por sua vez, irrefutavelmente, a completa vanidade de outro argumento não menos famoso e muito em voga e que consistia na comparação do universo a um relógio, cujo mecanismo supõe sempre a existência de um relojoeiro. Nós, dizia serenamente o imperturbável filósofo, vemos o relojoeiro fabricar relógios, mas ninguém viu ainda nenhum universo sair das mãos de um criador.

***

Prelúdios da Revolução Francesa e suas causas motivas

Luís XVI enfeixava nas suas mãos ineptas e timoratas o máximo das prerrogativas peculiares ao exercício do poder absoluto, quando a Revolução tendia para o seu inevitável desfecho.

Tivesse ele a capacidade política de Frederico, o Grande, para agir por si mesmo, ou, ao menos, a perspicácia de Luís XIII, para se confiar das luzes de um homem à altura da situação, e é de supor que a crise se resolvesse de um modo pacífico e racional, poupando-se à Humanidade o horroroso espetáculo das lutas sanguinolentas que de Paris se estabeleceram ao resto da França, à Europa Ocidental, a quase toda terra conflagrada [4].

Ineptidão política do rei

Faltavam-lhe, porém, as mais elementares noções do que seja a arte de governar os povos. O traço principal de seu caráter, segundo o testemunho dos contemporâneos, era a bondade, mas uma bondade incapaz, que degenerava em fraqueza, e que apenas se exercia nos meros domínios da vida privada, sem a menor apreciável reação sobre o conjunto das necessidades sociais.

Isso explica o seu inteiro e lamentável fracasso. Chamara ele, em verdade, para chefe de seu governo, um estadista de reputação mental e moral solidamente firmada perante a opinião do país; mas logo o abandonou às iras dos seus adversários e às intrigas cortesãs, urdidas e fomentadas por Maria Antonieta.

Incapacidade moral de Maria Antonieta

O programa administrativo daquele ministro, propondo-se corajosamente a eliminar o déficit e evitar a bancarrota, sem aumentar impostos nem recorrer a empréstimos, mas economizando com rigor nos gastos públicos e promovendo o desenvolvimento da riqueza geral, contrariava a rainha, habituada às elegantes dissipações de seu fausto perdulário.

Aquela cabeça leviana e caprichosa não percebia o contraste existente, e cada vez mais nítido, entre a miséria da população explorada pelos poderosos e a riqueza crescente do meio respectivo; entre o seu luxo impudente e supérfluo e as duras privações impostas às classes pobres, a quem faltava o estritamente necessário às exigências fundamentais da vida.

O programa governamental de Turgot era um vasto plano de reformação integral, abrangendo a um só tempo a totalidade das opiniões, dos costumes e dos sentimentos da época. Abolia toda a espécie de foros e de privilégios, instituindo a liberdade de comércio e a liberdade de trabalho, criando a organização municipal, e decretando a liberdade de consciência pela separação da Igreja e do Estado.

A aristocracia, o clero, a alta burguesia, feridos nos seus maiores interesses, reagiram coligados contra o audaz reformador, até vê-lo excluído do posto que tanto honrava. Todavia, quinze anos depois, as suas idéias, e outras ainda mais radicais, eram adotadas pela Constituinte. Subiu de baixo para cima, revolucionariamente, aquilo que podia ter descido de cima para baixo, governamentalmente [5].

Estas foram as causas ocasionais ou imediatas da Revolução; que as outras prendem-se remotamente, conforme dissemos, à dissolução da sociedade medieval, pelo exaurimento das concepções católicas à proporção que o espírito positivo triunfava; e à conseqüente exautoração do digno poder sacerdotal, causas essas que demonstraram espontaneamente a necessidade real de reorganizar o mundo sob novas bases, sob o influxo espiritual de outros princípios.

É fora de dúvida que se Luís XVI, em vez de ceder à pressão das classes diretamente visadas por seu notável ministro, tivesse atendido às ponderosas razões que o inspiravam, a Revolução tomaria uma diretriz mais reta e a Realeza, em vez de ser eliminada com seus órgãos pessoais, ter-se-ia transformado, sem grande abalo, numa enérgica ditadura progressista, capaz de conciliar plenamente a autoridade com a liberdade, a ordem com o progresso [6].

Não obstante os recentes reflexos de entusiasmo republicano que a livre organização da América do Norte projetava sobre os revolucionários parisienses, estes não cogitavam de abater o trono nem de sacrificar na guilhotina os membros da família reinante, pois a Constituinte, dotando a França com instituições liberais, mantivera o regime monárquico, modificado de acordo com as aspirações da época.

Incapaz de compreender a realidade da situação em que se via, e dominado pelos elementos retrógrados congregados em redor do trono, preferiu ele trair a Pátria a sacrificar-se por ela. Só depois de sua comprovada aliança externa com os reis estrangeiros, conjurados contra a França para subjugá-la, é que a queda da Realeza e da dinastia dos Capetos foi finalmente decretada pela Convenção [7].

Período inicial da Revolução com os Girondinos

A ação política dos Girondinos, que tinham preponderado na fase preliminar da Revolução, já se achava notavelmente enfraquecida e desautorizada perante o povo, porque a sua indecisão prática e a sua inconsistência doutrinal, inspirada nos princípios de Voltaire, revelavam-se impotentes para resolver a crise.

É quando, em meio da confusão geral, e afrontando impavidamente a borrasca que se aproximava, ergue-se a voz tremenda de Danton, declara a Pátria em perigo e chama para defendê-la todos os corações que a amam.

Sua culminância com Danton

Espírito gerado à grande luz da Enciclopédia, caráter feito de audácia, de resistência e de perseverança, alma inteiriça, cujos sentimentos, pensamentos e atos eram sinergicamente votados à liberdade e à razão, todo ele se dedicou ao serviço da nobre causa, orientou-a de novo no rumo de que ela se desviara; e, apoiado no povo de Paris e na minoria dos Convencionais pertencentes a uma fração da Montanha, que o acompanhavam solidariamente, dominou nas ruas e nas praças, sobrepujou a maioria da Convenção, atônita e perplexa diante de sua indômita energia e de sua atividade incomparável; impôs-se ao conjunto das forças revolucionárias, impediu que a desordem interna lavrasse em proporções mais vastas e organizou admiravelmente a defesa militar da Nação, fazendo recuar para além das fronteiras os soldados que já pisavam o solo da República [8].

A Robespierre, porém, alarmavam os triunfos de seu gigantesco rival. Nos refolhos de sua alma, convulsivada de ambições, germinava o pensamento de perder Danton. Contra ele, e contra seus amigos, trabalhava cautelosamente, insidiosamente, na sombra.

Os jornais a que, direta ou indiretamente, imprimia o cunho de suas opiniões; os agentes que espalhava por todos os recantos de Paris e pelos Departamentos, os partidários com que na Convenção contava, não poupavam o formidável herói de 10 de agosto.

Artigos caluniosos, redigidos com extrema violência; intrigas elaboradas covardemente no segredo dos conciliábulos sinistros e postas depois a circular entre as camadas mais ínfimas da ralé parisiense; ataques contínuos, insistentes, da tribuna dos clubes, das praças e da Convenção, de todas as armas degradantes usou Robespierre até abater o seu antagonista, arrojando-o criminosamente do pináculo da popularidade à infamação do cadafalso.

Seu declínio com Robespierre

O advento de Robespierre e seus fanáticos partidaristas inicia a fase de retrogradação do movimento regenerador. Educado na escola de Rousseau e gozando junto à multidão, de uma fama de austeridade incorruptível, talvez aparente, inaugurou uma ditadura opressiva e sanguinária que, depois de restabelecer o regime teológico-militar, abolido durante o predomínio de Danton, suprimiu em massa todos quantos não pensavam como ele.

O culto obrigatório do Ser Supremo foi estatuído de acordo com os postulados da Religião civil, instituída pelo Contrato Social: "o Governo não tem o direito de obrigar quem quer que seja a crer em semelhantes postulados, mas pode banir do território do Estado quem neles não queira livremente crer" - sofisma indigno, dissimulando a mais perniciosa das organizações tirânicas. Aos que, depois de aceitarem os dogmas daquela pretendida Religião, "perjurarem eles, será cominada a pena de morte" [9].

A Revolução retrovertia. A Robespierre, colhido e despedaçado pela própria engrenagem que concebera e fizera implacavelmente funcionar, com o sacrifício completo de todas as noções de justiça e de bondade, sucederia o Diretório, o Consulado e por fim o Império, tripudiando sobre um povo aniquilado ao termo de tamanhas lutas e privado dos seus defensores mais enérgicos.

O estado de guerra indefinido com o estrangeiro foi o erro capital dos incapazes sucessores de Danton. Este queria que a guerra se limitasse apenas às necessidades intrínsecas da defesa interior, nunca lhe tendo passado pela cabeça olímpica o plano de propagar à força de armas as idéias da Revolução fora da França. Mas, a partir do Diretório, os exércitos da República viviam sempre afastados da Pátria e em contato permanente e exclusivo com seus generais. Foi assim que eles com facilidade se esqueceram de que eram soldados da França, para se tornarem soldados de Napoleão [10].

Sua retrogradação com Bonaparte

A obra execranda do déspota imperial acabou por abater literalmente a França e atrair sobre ela as imerecidas antipatias, o ódio acirrado de toda a Europa, de todo o Ocidente, de quase toda a Terra. No interior suprimira a conquista máxima da brava geração de 89: a liberdade de consciência, na dupla esfera religiosa e civil, pela separação da Igreja e do Estado e pela extinção da Universidade.

Não podendo sentir, por excesso de egoísmo, nem compreender, por deficiência de luzes, que a crise francesa era a conseqüência lógica e natural das necessidades inadiáveis, que não tinham sido atendidas, restaurou, pela Concordata, o regime da união da Igreja com o Estado, nas mais humilhantes condições para o clero, que ficou inteiramente submetido à autoridade temporal.

E os indignos herdeiros do sacerdócio medievo, os ignavos sucessores do intrépido Hildebrando, preferindo garantir sua existência material a manter a independência de suas nobres funções, dobraram a cerviz e receberam o jugo do dominador. Pio VI foi expressamente a Paris para sagrar pomposamente o usurpador em nome de Deus.

A escravização da consciência chegou a tal ponto, a subordinação do elemento clerical ao déspota foi tão completa, que, nos Catecismos destinados às escolas públicas acrescentava-se ao quarto mandamento - Honrarás teu pai e tua mãe - a seguinte recomendação, tão bajulatória quanto imoral: "Os cristãos devem aos príncipes que os governam, e os francesses em particular a Napoleão I, nosso Imperador, o amor, o respeito, a obediência, a fidelidade, os serviços militares, os impostos decretados para a conservação e a defesa de seu Império e de seu trono..." Mais adiante vinha a seguinte pergunta e respectiva resposta: "P. - Que se deve pensar daqueles que faltarem a seu dever para com nosso Imperador?" "R. - Segundo o Apóstolo S. Paulo, eles resistiriam à ordem estabelecida por Deus mesmo e se tornariam dignos das penas do inferno".

Para completar, porém, essa organização opressiva, não bastava a abolição da liberdade religiosa: mister se fazia não só extinguir totalmente o jornalismo adverso, mantendo apenas os escribas oficiais assalariados [11], mas também suprimir a liberdade científica, filosófica e mesmo simplesmente literária.

"Não há Estado político fixo, dizia ele, justificando seus prováveis processos de agir, quando não há um corpo docente com princípios fixos". E restaurou a Universidade, com o programa exclusivo de ensinar às novas gerações, entre outras coisas: a) os preceitos da Religião Católica; b) a fidelidade ao imperador, à monarquia imperial, depositária da felicidade do povo, e à dinastia napoleônica, conservadora da unidade da França e de todas as idéias liberais proclamadas pelas Constituições; c) a obediência aos estatutos que têm por objetivo a uniformidade do ensino.

No exterior, sonhando loucamente com a implantação da monarquia universal, sob o domínio de sua espúria dinastia, paralisou a evolução industrial da Europa, convertendo-a num permanente campo de batalha. Mas, a pequena e varonil Espanha, invadida pelos seus poderosos exércitos, até então invencíveis, opôs-lhe tenazmente uma resistência heróica, que foi o prelúdio da queda do seu poder militar [12].

Assim lamentavelmente fracassava a obra generosa dos renovadores de 89. E esse fracasso é a contestação formal do princípio vitorioso entre os democratas modernos - de que não há homens necessários. É certo que as sociedades são regidas por leis naturais, mas para aplicar essas leis é indispensável o concurso dos homens capazes. Se Danton não houvera sido friamente imolado às tresvairadas ambições de Robespierre, o destino da França, e, portanto, do mundo, teria tomado fatalmente uma direção diversa.

Retraçado, em linhas gerais, o retrospecto sumário da situação política e social do Ocidente, no agitado período da transição moderna, passemos agora a examinar os aspectos principais da situação portuguesa, no transcurso do século dezoito para o décimo nono século. Estas prévias digressões pelo campo histórico dos povos ocidentais em geral, e da Lusitânia em particular, são imprescindíveis para que melhor se compreenda a lógica dos acontecimentos brasileiros e o saliente papel que neles desempenharam José Bonifácio e seus irmãos.


NOTAS:

[1] P. LAFFITE - Saint-Paul ou le Catholicisme. V. I, página 40.

[2] Le contract social, Livre IV, Ch. VIII.

[3] P. LAFFITE - La Révolution Française, pages 8-9.

[4] A. COMTE - Philosophie positive, Vol. VI.

[5] Dr. AUDIFFRENT - Des maladies du cerveau et de l'innervation, page XX.

[6] M. MIGNET - Histoire de la Révolution Française, V. 1, pág. 350.

[7] Dr. E. SÉMÉRIE - La grande crise, páginas 66-67.

[8] "L'ame vivante de la Révolution, était dans un pétit nombre". (ED. QUINET - La Révolution Française).

[9] J. J. ROUSSEAU - Op. et. loc. cit.

[10] P. LAFFITE - La Révolution Française, página 113.

[11] SEIGNOBOS - Histoire de la civilisation contemporaine, pág. 147.

[12] O sr. Rocha Pombo, na sua monumental História do Brasil (V. VII, páginas 15 e seguintes) faz ardorosa apologia e entusiástica defesa da política de Napoleão. Entende o ilustre historiógrafo brasileiro que a resistência oposta pelas nações estrangeiras à vitória das idéias francesas apoiava-se  exclusivamente nas baionetas dos exércitos coligados; cumpria, pois, atacar vigorosamente esses exércitos a fim de levar tais idéias até o seio dos povos oprimidos pelas realezas de caráter absolutista.

Repetimos que a França não tinha o direito de impor - e impor pela força das armas - as suas idéias aos outros povos da Europa. A sua função deveria limitar-se a defendê-las dentro de seu território, deixando que fora dali elas fossem livremente adotadas ou não. Nem se concebe que seja eficaz um meio tão brutal de propagar princípios; e a repulsa geral que levantou por toda a parte prova exatamente o contrário. Além disso, é excesso de credulidade supor que Napoleão tivesse em vista, de fato, implantar lá fora as instituições criadas pela Revolução, porquanto um dos seus primeiros atos foi suprimi-las dentro do país.

Reproduzindo um grosseiro sofisma de Seignobos, pensa o sr. Rocha Pombo que Napoleão ainda obedeceu ao espírito republicano quando se fez proclamar Imperador - porque apelou para a vontade do povo expressa por meio do sufrágio; e a origem popular de sua investidura contribuiu para desmoralizar ainda mais a origem divina das outras investiduras monárquicas.

Isso é verdade; mas ao adotar a transmissão hereditária do poder, própria das dinastias baseadas no direito divino, renegou formalmente um dos dogmas essenciais em que se fundava a nova ordem política nascida da Revolução. Para provar que essa restauração da hereditariedade dinástica era incompatível com a verdadeira situação do povo central, basta lembrar que, desde a decapitação de Luís XVI, nunca mais na França nenhuma dinastia conseguiu transferir hereditariamente o poder a seus descendentes.

Quanto à origem divina da autoridade real, não era preciso, para desacreditá-la, que Napoleão pedisse ao povo a autoridade do mandato imperial, pois aquele princípio retrógrado ficou radicalmente desacreditado desde o dia em que a Revolução aboliu a realeza e mandou guilhotinar os seus altos representantes. Demais, não se contentou ele com a simples formalidade democrática da eleição: quis ser sagrado como os outros, solenemente, em nome de Deus, com todas as fascinantes pompas do ritual romano; quis que a sanção divina confirmasse expressivamente a escolha popular.

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