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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (13)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Recriação em line-art digital de foto de Carlos Nogueira

Imagem: reprodução parcial da página 119

 

Capítulo VI - A cidade, o mito e a história

Um olhar sobre a trajetória dos que construíram com suas vidas e lutas, suor e sacrifício, o mito santista, essa história real

Segundo Gustav Jung, o mito é o elo entre o inconsciente coletivo (a herança da vivência das gerações anteriores) e o consciente. Decifrar o mito é decifrar-nos, na mais pura essência de nossa identidade. Decifrar o mito santista é possível, partindo do princípio de que o mito e a ciência histórica não são incompatíveis. O mito que permanece latente, nas profundezas da mente e em seus sentidos mais marcantes, está vivo - embora o fato que o motivou esteja distante. Mas ele está sempre disposto a voltar. Aqui, ele é muito mais do que sonho, é um exercício da razão e de busca solidária da promoção comum.

Pela ação de seus cidadãos, Santos construiu o mito. Sobre sua história construíram-se mitos e símbolos - satisfazendo a razão. São reais, sobre ela podem se relacionar uma série de procedimentos heróicos - mitos concretos -, feitos célebres em favor da causa humana. Que nunca se tornaram apenas lembrança, porque renovados a cada instante da vida da cidade.

Estão sempre cortando a nossa frente, despontados nas esquinas, como se Santos tivesse o mito guardado não nas pessoas, mas no seu ar. Da comunidade livre do Bacharel-Mestre Cosme, nos primeiros anos do século XVI, até hoje, poderemos traçar um pontilhado dessas revoluções de caráter, promovidas por seres de Santos ou feitos daqui - contaminados pela brisa marinha.

Enquadrando a caminhada vitoriosa do Sindicato dos Conferentes na história de Santos, temos não mais do que uma continuidade lógica de uma atmosfera mágica que tentaremos descrever em seus exemplos factuais. Uma tarefa sempre difícil essa de encontrar explicações para o mito de uma comunidade heterogênea, que mesmo em constante mutação mantém uma trajetória de coragem conquistadora, libertadora e irradiadora de um sentido libertário, semeador do progresso humano. Talvez sua raiz seja essa natureza aberta aos povos do mar, de trânsito intenso, explicando essa injeção constante de fervor revolucionário renovado a cada dia.

A história de Santos é, visceralmente, uma sucessão de pungentes batalhas e vitórias sociais. Dentro dela, os sindicatos foram apenas uma etapa de união pela reivindicação, os mais importantes do País. Os trabalhadores santistas ofereceram suas conquistas à elevação do panorama conjuntural dos brasileiros de todos os portos e cidades. Vanguarda do sindicalismo nacional, Santos é desde a origem vanguarda social - capital de todos os movimentos de libertação que o Brasil viveu desde a descoberta.

Não é mera suposição ensejar um elo entre a Santos que já se rebelava contra o poder colonial mesmo antes de sua fundação oficial. De sua posse efetiva pelos colonizadores, que a abandonaram por 30 anos. Antes de ser fundada oficialmente em 1532, em 1510 já tinha seu porto do outro lado da cidade em que é hoje, movimentado por uma comunidade índia, portuguesa e também espanhola. Unida à terra por laços de família, unos e inseparáveis - o amor entre o degredado Cosme e a filha do chefe indígena Piquerobi.

A expedição colonizadora que trouxe Braz Cubas e Martim Afonso não foi mais do que uma expedição repressora, que vinha destruir a comunidade aqui formada. E para garantir a posse oficial da terra nova. Ocorre o primeiro conflito envolvendo a questão do poder e da propriedade, à revelia das vidas em jogo.

Santos é terra do padre Bartolomeu de Gusmão, que no século XVII foi chamado pejorativamente de voador e perseguido pela Santa Inquisição por ter mostrado ao mundo a conquista do ar com o aeróstato. E ter percebido a superioridade da elevação humana como sentido maior da fé.

Santos foi mais: suas lutas pela Independência, contra a escravatura e pela República tiveram aqui suas maiores expressões e radicalizações. Santos chegou na raiz, com sua intensa imprensa operária no período do sindicalismo "de resistência" - organizando a luta dos trabalhadores por melhores dias no despertar do século XX.

Aqui também foi o lugar onde nasceu a luta pelo socialismo no Brasil, com Silvério Fontes e o Centro Socialista de Santos, ainda nos últimos anos do século XIX - o primeiro marxista brasileiro e a primeira entidade socialista do País, na proposta de humanizar as relações sociais. Que promoveram pela primeira vez no Brasil a comemoração da data dos trabalhadores, o Primeiro de Maio.

Santos concretizou sempre o sonho de seus poetas que cantavam a liberdade, de Martins Fontes a Vicente de Carvalho, na cidade que se define como porta principal da economia do País já no fim do século passado (N.E.: século XIX). É por aqui que sai 2/3 do café brasileiro para o mundo e o Brasil vive da exportação do produto, na Santos já em 1867 ligada à rota ferroviária - formando o tronco escoador de todo o centro produtor.


A primeira entidade à qual se incorporaram os avulsos santistas surgiu em 1904 e chamava-se Sociedade Internacional União dos Operários. Uma federação sindical de cinco mil membros. A primeira associação de avulsos dos portos no país, reunindo estivadores, é a do Recife, fundada em 19 de março de 1891. Em 1903 surgem as sociedades de Caravelas, na Bahia, e do Rio de Janeiro. Em 1914, é cariada a de Belém do Pará

Foto publicada com o texto

Não foi outro seu destino na organização dos trabalhadores assalariados que substituíram os escravos na fase de desenvolvimento acelerado do porto e da cidade, traçados por sua vocação exportadora. A cidade que havia sido o Território Livre dos escravos se transformaria na Barcelona Brasileira dos explorados trabalhadores imigrantes europeus - no tempo em que se vinha de lá para cá ganhar a vida.

E seria um dos três principais centros da organização operária no país, alcunhada de Barcelona Brasileira por sua majoritariedade na expressão anarco-sindicalista - a linha de atuação mais radical do movimento operário, essencial para arrancar as marcas do escravagismo ainda atuante na mentalidade patronal. Esta é uma época de mudanças globais, do adensamento populacional que ocupa os espaços vagos da ilha, na urbanização e também nos cortiços.

Nos últimos anos do século, o lazer popular chega à praia pelos bondes do Mathias e do Gonzaga, na terra que seria logo inundada de gente e atividade. Gerando crise, como epidemias sucessivas que levam a metade de sua população, de onde os trabalhadores fogem e são recrutados à força para construir o porto. Mas Santos resiste, transformando um lugar impróprio para moradia em terra habitada e valente, disposta a transformar em redor, também.

Tem diversos fatores concretos essa aura que se formou sobre Santos Libertária, que fez com que aqui ocorresse o movimento operário de maior intensidade do país nas primeiras décadas do século XX - promovendo as maiores transformações e remetendo-as para outros pontos da nação e do planeta.

Santos, como dissemos, é a ponta principal do principal produto exportado. Quase a totalidade de tudo que sai é café, item fundamental para a economia do País. O porto de Santos já superara o do Rio de Janeiro em volume de cargas em 1894; antes, em 1891, já tinha feito a primeira greve geral do país - a partir do porto paralisando toda a cidade.

Os trabalhadores santistas têm, pois, a chave do cofre nacional - e rebelam-se contra as condições de trabalho e salário. Querem o controle autônomo da mão-de-obra e a qualificação diversa daquela a que o patronato estivera habituado há 300 anos com os escravos.

Há outros aspectos fundamentais contribuintes para que Santos seja um barril de pólvora, semelhante à Europa que explode: do Velho Mundo vieram quase todos os seus trabalhadores - portugueses e espanhóis em maioria. Diferentemente do resto do País, onde predominam os italianos.

Destes, muitos são revolucionários, líderes trabalhistas deportados. Aqui é terra da ação direta contra o patronato explorador, a paralisação da produção como arma maior de reivindicação. E o porto é a maior expressão operária da cidade em que os caixeiros de loja, balconistas, já haviam fundado sua entidade de auxílios mútuos em 1879 - a Humanitária. É o primeiro ato da organização operária em Santos, um dos cinco primeiros no Brasil.

No Rio de Janeiro, onde o porto existe desde os tempos coloniais, o processo é outro. A maioria dos trabalhadores são nacionais, ex-escravos esmagados por três séculos. O sindicalismo é amarelo, tímido e negociador, já que a empresa do porto é estatal. Lá, a ação é indireta, negociada por representantes parlamentares. Mas aqui a empresa é selvagemente privada e disposta ao lucro a qualquer custo, produto de uma elite que ainda não engoliu bem a Abolição. Apoiada com firmeza pelo governo federal, que manda tropas a pedidos. Na medida certa para um proletariado revolucionário, que tem a ação direta contra o patronato como princípio. E que se propõe a substituir o estado com a auto-organização popular.

Mais consciente, perseverante e organizado, o trabalhador europeu instala aqui um sindicalismo forte e reivindicatório. São os rabanetes que controlam o movimento operário a partir do primeiro qüinqüênio do século, na escala de cores que dá o tom da postura política. Ou seja, o extremo oposto dos amarelos reformistas, nas variações do vermelho. É o anarco-sindicalismo latente na Espanha em cena, assumindo uma linguagem própria da classe operária. E Santos é a Barcelona Brasileira, como a capital da Catalunha, sede mundial da luta operária anarquista. E da CNT - Confederação Nacional dos Trabalhadores, com um milhão de membros.

É um período de bárbara repressão, invasão de sindicatos, torturas, deportações e leis repressivas como a Adolfo Gordo, de 1907 - renovada em 1921 -, dirigida contra a escalada dos trabalhadores.

Não fossem suficientes estas razões para que a atmosfera revolucionária de Santos atingisse níveis de uma exacerbação que contaminava toda a população, a Docas é uma empresa estrangeira - tem sede no Rio de Janeiro - que só manda para cá seus feitores. É um tipo de relação reivindicatória que se amplia pelos bairros operários, onde a causa é comum nesses tempos do sindicalismo de resistência. Quando eram promovidas intensas ações culturais, para alfabetizar e ilustrar causas e objetivos da ação revolucionária para a mudança social.

A união de diversas categorias solidárias - e este é o traço santista - que irmanaram-se em greves de solidariedade, fizeram aqui as maiores conquistas até hoje efetuadas - como a jornada de 8 horas de trabalho, em 1907. Foi esse sindicalismo que plantou as concessões de 1930, estas fixadas na lei. E estas tarefas foram realizadas diante do maior esquema repressivo que o País já assistiu, quando as greves eram reprimidas por tropas desembarcadas de navios de guerra ou que lotavam trens vindos da capital.

Até que ponto se pode atribuir a ligação entre estes fatores e o espírito revolucionário que permeia a história da cidade é uma questão que nos devolve ao mito - que aqui é história. Construído nas lutas locais, transmitido e herdado por gerações de forma subterrânea, não oficial. Na sua essência de cidade cosmopolita é que reside a natureza da vocação transformadora de Santos, podemos nos aventurar a sugerir.

A intensidade das lutas travadas provocou uma contaminação ideológica. Elas ultrapassaram os limites da elite em que foram despertadas, em busca de aliados -atingindo toda a população. Essa atitude revolucionária deixou sulcos indeléveis em seu espírito. É esta a cidade onde o mito se decifra em seus episódios na história heróica de sua gente.

A sua história sindical não poderia ser outra.

O momento histórico da fundação do Sindicato dos Conferentes e Consertadores, em 1932, é o da abertura governamental para a formação dos chamados sindicatos oficiais, ligados ao governo. É a maneira encontrada para controlar a força insurgente dos trabalhadores organizados, que reivindicam a evolução do código escravagista.

Até então, a "legislação do trabalho se limitava a um subtítulo no Código Civil sobre "locação de serviços". No tempo em que a questão social era, por isso, chamada de "caso de polícia". O processo de libertação dos escravos evoluíra perigosamente, exigindo a intervenção da classe dominante.

As greves operárias de 1917 a 1919 coroaram uma trajetória de intensa mobilização dos anarquistas desde o início do século. Impuseram a emergência de soluções que adequassem o estágio da sociedade à realidade operária, pondo fim aos tratamentos cruéis. A existência da Rússia, a partir de 1917 soviética, era mais um fator a amedrontar o patronato temeroso de que se repetisse aqui a tomada do poder pelos trabalhadores, como havia ocorrido lá. A estes fatores se somam as conclusões do Tratado de Versailles, que fez as tratativas após o fim da Primeira Guerra Mundial.

Era 1919 e pela primeira vez a questão operária era colocada internacionalmente. Abundavam os conflitos sociais e os trabalhadores haviam alimentado os canhões da guerra. Para levar milhões ao massacre, os governos haviam prometido Justiça Social após. Era preciso descobrir uma transição lenta, segura e gradual para que se amenizassem os conflitos sem se tocar na estrutura da propriedade privada nas mãos de poucos...

O Brasil se industrializa e seus trabalhadores estão cada vez mais organizados e em plena atitude reivindicatória. Diante de um quadro que pouco se modificou após a Abolição da escravatura: salários e tratamentos indignos, jornadas excessivas, trabalhos de crianças e ausência de legislação de amparo na doença ou na velhice eram as questões enfrentadas. E a industrialização havia trazido a imigração, incentivada pelo governo para alimentar de braços a indústria nascente - aqui a construção do porto.

A explosão social resultante da maxi-exploração dos trabalhadores nesta época de desenvolvimento acelerado - casado com a importação de trabalhadores europeus, que aqui encontram um terreno fértil para a pregação revolucionária -, se prolonga e se amplia. O governo italiano chega a proibir a imigração para o Brasil devido às denúncias sobre a intensidade repressiva. Centenas de trabalhadores são deportados e torturados.

A partir de 1923, colocado na ilegalidade logo após a fundação, o Partido Comunista Brasileiro entra nos sindicatos, com a proposta da ação indireta - via parlamentar. E cria células entre os marítimos. Em 1922 e 1924 eclodem movimentos que clamam por renovação das práticas sociais oligárquicas - nas mãos de poucos -, que se perpetuam no poder através de fraudes eleitorais. Os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores são barbaramente reprimidos.

Em 1927, depois da Lei Celerada de repressão ao movimento operário que ressurge, eis que o PCB amplia suas alianças com os amarelos e vem com o seu Bloco Operário-Camponês - BOC. Seu candidato em Santos nas eleições de 29 de novembro de 1928 tinha sido João Freire de Oliveira, líder dos garçons. Em 1930, Luiz Carlos Prestes funda a LAR - Liga de Ação Revolucionária, que depois se dissolverá para sua entrada no PCB.

Mas na classe dominante já surgem vozes defensoras da humanização do tratamento dado à mão-de-obra. Mesmo porque é a única saída para uma burguesia acuada pelas pressões reivindicatórias. Têm lugar também as pressões internacionais, que após a guerra pactuavam uma nova realidade social que garantisse a preservação dos sistemas de poder instalados, que não fossem abalados por revoluções como a soviética - onde os trabalhadores tomaram o poder.

Em 1930, chega a "República Nova", fruto de um movimento liderado pelo gaúcho Getúlio Vargas - candidato derrotado por Júlio Prestes nas eleições presidenciais. Reunindo os tenentes, a jovem e transformadora oficialidade do Exército, aos oligarcas - classes políticas despojadas do poder em seus estados -, ocorre a revolução da Aliança Liberal. Ela impede a posse do vencedor Júlio Prestes e coloca Vargas na presidência.

A modernização das relações trabalhistas é uma pauta obrigatória, presente tanto no programa de Vargas como era no de Júlio Prestes, que vencera a eleição mas fora impedido de assumir pelo golpe de 3 de outubro de 1930. Mudar é uma exigência, para evitar a explosão. Para executar as mudanças, é criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. E nomeado um antigo pregador da necessidade da formulação de políticas sociais, Lindolfo Collor. O que era apenas um Conselho do Trabalho do Ministério da Agricultura se torna Ministério.

Desenvolvendo uma perspectiva que combina a concessão de antigos benefícios reivindicados pelos trabalhadores com uma estratégia de controle do movimento operário, o governo inaugura uma nova etapa na história brasileira, com a ampliação de sua base de apoio. A política desenvolvida se defronta, a nível internacional, com duas opções sociais - o sistema de classes russo, adotado em 17 com a tomada do poder por uma vanguarda em nome dos trabalhadores (a "ditadura do proletariado") e o "sistema corporativo" italiano, implantado pelo regime fascista - este uma estratégia para manter imutável o sistema de dominação dos detentores da propriedade e do dinheiro, no modelo de reforço da autoridade estatal no momento da ascensão das forças populares.

Muitas das legislações são feitas "para inglês ver" - daí nasce a expressão -, para "uso externo em coisas diplomáticas". Não são aplicadas e a fiscalização inexiste ou é ineficiente, para um patronato indisposto a executá-la.

Collor, o ministro, de pronto destaca a superioridade do sistema fascista sobre o adotado na Rússia, que colocara nas mãos do estado as propriedades da burguesia. Ele pretende instituir aqui o regime de "colaboração de classes". A lei de nacionalização do operariado, que exige que dois terços dos efetivos das empresas sejam compostos por brasileiros, é a maneira de afastar as "ideologias exóticas" que vicejam entre os trabalhadores - expulsando os imigrantes. De eliminar o ímpeto reivindicatório sem atender às reivindicações. E as resistências ao seu programa de controle do movimento operário, que visa "acalmá-lo".

Apesar de seu ideário fascista e corporativo, Lindolfo Collor tem ao seu lado no Ministério do Trabalho antigas lideranças do movimento operário e socialista. Há "socialistas revolucionários", manifestos e técnicos em questões trabalhistas. Mas o objetivo é o de atenuar a feição reivindicatória do movimento operário, de ordená-lo.

Analisando a conjuntura social quando ainda não empossado no ministério criado por sua exigência, falando no Rotary Clube ainda como ideólogo do movimento de 30, Collor diz que o conceito de luta de classes é "retrógrado" e que as forças do capital são "reacionárias" - mas que as lideranças do operariado são "subversivas". Para ele, são ambas "nocivas à Pátria".

Collor tenta constituir um pacto que eleva a condição de vida dos trabalhadores, mas controla seu impulso reivindicatório, impõe-lhe limites. Gerando protestos por parte tanto dos supostos beneficiados quanto do patronato. Concretiza antigas reivindicações como do deputado federal socialista Maurício de Lacerda, em 1917 - que praticamente sintetizou as plataformas do movimento operário na proposta dele. Que por isso foi cassado e preso, acusado de "bolchevista".

Setores do movimento operário dizem que Collor prometia benefícios "...aos que andam com a camisa em tiras" e beneficiava os empresários. De parte a parte, ele se reúne com ambos os setores. Sua pregação é revolucionária e um de seus assessores é preso em uma visita distante após erguer "vivas" ao proletariado - em fato abafado pela imprensa. Seu programa, entretanto, será atacado menos pelo que é do que pela guerra entre tenentes e oligarcas que ocorre.

O regime de trabalho avulso nos portos se explica no processo histórico de formação desta força de trabalho. Na qual o sindicato é o intermediário entre os empregadores e a mão-de-obra nele organizada, responsável por sua convocação. Em uma fase anterior, eram trabalhadores dispersos pelo cais, contratados por tarefa. Era uma conseqüência do desengajamento dos trabalhadores que antes compunham a tripulação dos navios, encarregados das operações de embarque e desembarque de mercadorias.

Aconteceu que, em uma fase de "modernização", os empresários aumentaram o espaço para as cargas nos seus barcos e diminuíram a tripulação. Contratando temporariamente aqueles que prestavam serviços temporários, quando os navios chegavam nos portos. São estes que vão se unir como avulsos e montar o closed shop sistem - encarregando-se do fornecimento da mão-de-obra. Os avulsos, os autônomos e eventuais, iriam se organizar em sociedades para conquistarem seu ordenamento jurídico, direitos e garantias sociais.

O processo de organização do trabalho nos portos pelos sindicatos é uma tendência mundial. Foi assim em Liverpool, Filadélfia, São Francisco, Barcelona e Gênova, com os mesmos impasses, ocorridos em períodos anteriores ou posteriores aos nossos. No Brasil, desde a lei de organização dos portos de D. Pedro II, em 13 de outubro de 1869, que os avulsos dos portos criam seus instrumentos de proteção social.

Mas enquanto o movimento operário é controlado em todo o país, nos portos a transformação é compatível com o grau de evolução alcançado e as conquistas efetuadas até então. Da disputa entre oligarcas - integrantes das minorias políticas que dominavam o País, estes deslocados do poder em seus estados - e tenentes (a jovem e transformadora oficialidade do Exército) é que virá o impulso que definirá em favor dos trabalhadores do porto o controle da força de trabalho. Os estivadores, após uma verdadeira luta armada, reconquistam seu direito ao closed shop sistem - o sistema pelo qual uma única categoria fornece a mão-de-obra para a operação dos navios.

O trabalho no porto é tipicamente margina, sem vínculos, esporádico, temporal. É instável e "pesado", só ocupado por setores marginalizados e com vocação para o trabalho esforçado. É um ramo para os fortes, uma "turba" para as classes dominantes, brutos e perigosos. E o pior, perigosamente reivindicatórios. Aqui, os estivadores tinham defendido a ala os seus direitos de controle da força de trabalho, nas primeiras décadas do século.

A Docas, em seu estilo de "polvo" - um apelido que granjeara, por seus inúmeros tentáculos -, arrancara dos avulsos o direito ao controle do trabalho após a greve de 1908, contratando diretamente a mão-de-obra. O que faz com apoio total da repressão estadual e federal, que invade a cidade e fecha até o jornal A Tribuna. A Docas afronta os trabalhadores e até a burguesia local pelos preços cobrados.

Em 1919, vamos encontrar tanto estivadores contratados como dispersos na faixa do cais, que ficavam com os serviços excedentes, se houvesse. Um conflito que se prolonga, na luta pelo controle do mercado de trabalho pela categoria, na tradição construída. Só em 1930 é que a divisão de poder do governo revolucionário que toma o poder faz com que os estivadores atinjam seus objetivos.

Em 1930, a presença do tenente Miguel Costa, então secretário da Segurança de São Paulo, chamado para reprimir os estivadores rebeldes - que não admitiam a presença de outra mão-de-obra senão a sua -, ao invés, passa a apoiar o movimento, então consagrado. Uma conquista que os estivadores do Rio de Janeiro tinham tido em 1903, com a Sociedade União dos Estivadores amarela, negociando com a estatal do porto.

Já por esta época, os estivadores santistas se afirmavam na luta. Em 1918, eles fundam a Sociedade União dos Estivadores, fechada pela polícia em 1926. E de sua primeira diretoria fez parte Manoel Gomes Duque - que, ao lado de Antonio Carneiro, fundaria o Sindicato dos Conferentes. Em 1930, o Centro dos Estivadores. O sindicato só viria enquadrado na Lei de Sindicalização, em 1942.

É no rumo da afirmação dos avulsos que os conferentes e consertadores vão fundar o seu sindicato, em 1932. Mas este não é um produto, entretanto, de uma confrontação com os empregadores; eles apóiam a iniciativa, para organizar a mão-de-obra dos caixeiros, já conferentes, no embarque. E nem tudo é paz, veremos, neste acordo feito na medida do possível, naquele momento - que preservava privilégios e deformidades. O sindicato é autônomo - mas controlado. Mais uma vez, a questão do controle...

A permanência do controle dos empregadores no novo sindicato vai provocar a desilusão dos que militavam por ele na perspectiva de instalar-se como categoria. Desenhando um conflito que vai permanecer durante os primeiros 30 anos da entidade. Não são os trabalhadores que, por sua entidade, fornecem os responsáveis pela conferência - mas os encarregados das agências. Mas esta é outra história...

A união em torno de um sindicato nasce da necessidade de evoluir as condições deste contingente indispensável das operações portuárias. Mas o sindicato, concretização dos ideais antigos de luta pelo controle da força de trabalho, agindo na democratização da distribuição das tarefas profissionais da conferência, enfrenta o mesmo conflito que terminou por impedir a extinta Sociedade Beneficente dos Caixeiros.

Fundada por volta de 1928, no porto que já em 1877 tem sua primeira greve dos carregadores, a Sociedade dos Caixeiros é a primeira entidade dos conferentes. O atraso em relação a outras categorias vem por conta da ligação obrigatória e estreita com os empregadores para executar o serviço. A presença dos empregadores na entidade, através de seus encarregados e mensalistas, impõe uma hierarquia na classe e cria um obstáculo para a organização plena da categoria. Em debate outra vez a questão do controle, que aqui ficará nas mãos dos empregadores.

Os encarregados, representantes dos empregadores, são os que escolhem os trabalhadores para o serviço. E eles têm os seus grupos, o que quer dizer que a questão dos privilégios continuava - impedindo a unidade da categoria e suas conquistas maiores. A história do Sindicato dos Conferentes é uma história dessa e de outras lutas, internas e externas. Gangs e lixas-grossas são os personagens. Privilegiados de um lado, excluídos do outro.

Interesses patronais e dos trabalhadores se comungam na nova entidade, pois os empregadores pretendiam que ela fosse instrumento de organização do processo de embarque. E os trabalhadores que ela cumprisse seu papel histórico de fortalecer a classe - o que demoraria 30 anos...

De um lado os privilegiados membros das gangs; de outro, os estropiados lixas-grossas, sempre em disputa de um trabalho. O mando é dos encarregados, em uma estrutura de privilégios que corrói o sentido maior da entidade - que foi o de buscar a correção das desigualdades e a evolução da categoria. Os encarregados escolhem sempre os mesmos para o serviço, deixando os demais à míngua. Mas não só estes que perdem: por conta desse favoritismo, vem o mandonismo, privando a classe de todos os benefícios.

A contradição vai marcar a evolução da classe.

O sindicato que nasce no porto reflete o grau de evolução alcançado, que naquele estágio ainda está nas mãos dos empregadores - que pagam salários fixos aos seus conferentes mensalistas. O poder dos trabalhadores em seu sindicato é apenas parcial, sob a espada patronal.

No Congresso Operário de 1906 da Confederação Operária Brasileira - COB -, quando predominavam as teses anarco-sindicalistas, se consideraram os representantes das agências como prepostos dos patrões, recomendando-se que eles fossem excluídos dos sindicatos operários. Mas o sindicalismo corporativo pós-30 mantém integradas estas sub-classes, inclusive como forma de controle.

Na estiva, o rodízio para os contramestres, equivalente do encarregado para os conferentes, só seria adotado em 1956. A revolução do rodízio para os conferentes viria em 1962. Antes desse passo, os sindicatos são ministerialistas, buscam o reconhecimento do estado e ainda assim são reprimidos. Os encarregados manipulam a vida sindical e até o voto dos trabalhadores, estabelecendo uma correia de dominação ideológica que inibirá o nível de reivindicação.

A história do sindicato é uma história de luta pelo rodízio por parte da base. Essa causa mobilizou a categoria desde antes da fundação do sindicato. E foi uma de suas metas, talvez a principal. O que ocorreu com o fundador Antonio Carneiro, que se incompatibilizou com a direção da entidade um mês após a fundação do sindicato, é um demonstrativo dessa questão. Primeiro e mais valioso militante dos direitos da categoria, Antonio Carneiro foi fundador do sindicato junto com Duque. A célula do Partido Comunista Brasileiro no sindicato, em 1945, levaria o seu nome.

Caminhante de léguas pelo chão de pedra do cais, tanto em busca de trabalho quanto de apoio para a causa comum dos caixeiros, Antonio Carneiro morreu pela luta intransigente da causa da igualdade na escalação e dos direitos dos conferentes. Dizem de fome, já que os encarregados não lhe davam serviço. E os amigos tinham que dar o nome em seu lugar para que ele pudesse receber pelo trabalho - impedido pelos empregadores de exercê-lo.

Carneiro nunca aceitou a predominância do cartel das agências no comando de um processo eminentemente operário, representativo dos trabalhadores, que era o sindicato - mantendo a mesma estrutura viciada dos privilégios. Mas desde o início não foi muito pacífica a convivência com as agências, haja vista a ameaça de demissão de seu emprego do primeiro presidente, Agostinho de Souza Castro, caso ele não deixasse a direção sindical - o que ocorreu.

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe e após o processo de democratização interna, detonado pelo rodízio, a categoria se fortalece e obtém conquistas reais - deixando de ser apenas o sustentáculo do regime. Estaria alcançada a reivindicação primeira do sindicalismo portuário, o controle da força de trabalho que os empregadores tentavam resgatar.

RODÍZIO E GANHO POR PRODUÇÃO

São episódios fundamentais desta história sindical, pois que permitiram a elevação da condição social dos conferentes. Foram resultado um do outro, compondo os dois um conjunto de radical transformação e promoção qualitativa da entidade e de seus trabalhadores, assim como do serviço prestado. A conquista do rodízio e do pagamento por produção frutificaram na revolucionária gestão de Orlando dos Santos, nos anos 60. O rodízio fora uma reivindicação permanente da classe desde antes da fundação sindical. O pagamento por produção tem sua raiz com o presidente Nelson Mattos, em 1956.

Foi em uma divergência do sindicato com os empregadores, sobre a obrigatoriedade da convocação de conferentes na cabotagem, que surgiu a base legal do pagamento por produção. O sindicato reivindicou a criação de uma Taxa de Conferência, assim como havia uma Taxa de Estiva. Nelson lançou, Serafim Mendes retardou - fez um acordo que não satisfez a classe, porque na prática impedia o pagamento, o que quase provocou sua renúncia. E Orlando arrancou afinal a conquista, mobilizando para a greve. O pagamento por produção já era uma prática mundial entre os conferentes Os estivadores já tinham efetuado a conquista, permitindo diferenças inexplicáveis de ganho nas operações dos navios.

Na questão do rodízio, que dava o poder aos encarregados na convocação para o trabalho, atravancava o sentido de união esse domínio de quem pagava, de quem dava o serviço. Por muitos anos após a fundação do sindicato esta foi uma questão a superar, estando presente nas assembléias desde os primeiros momentos a questão do rodízio.

As conquistas do rodízio e do ganho por produção se fizeram por etapas, mas só se concretizaram quando houve a possibilidade de organizar a categoria para a greve - na "revolução" promovida por Orlando dos Santos. Escolhido para um mandato-tampão de 3 meses em 1960, iniciaria no curto verão das mudanças a construção das bases da transformação radical. Revertendo o domínio do cartel das agências e evoluindo a condição dos conferentes.

Era um tempo de inconformismo pelas décadas de dominação do cartel. A crescente das bases oposicionistas explodia quando da eleição em 1959, pela quinta vez, do pândego e fanfarrão Nestor Bittencourt. Eleito devido mais à sua popularidade do que à sua adesão às mudanças, já que também era um lixa-grossa. Mas Nestor era um gerador de conflitos, polêmico, embora tivesse o maior número de cargos na direção sindical do que qualquer conferente até hoje - dezoito. Ele amava o poder e investia contra os que tivessem nele senão o próprio. Estas características não ajudaram para promoção das mudanças fundamentais pelas quais a categoria ansiava.

Derrubado em um processo comandado pelo ex-aliado Orlando Leopoldino - a quem Nestor chamava de "cueiro sindical" por sua juventude e inexperiência -, em 27 de novembro de 1959, Leopoldino seria a homonímia da transformação - Orlando, como o que viria. Presidente da Comissão Provisória, abriria caminho para a transformação. E garantiria sua implantação quando na junta comandada por Orlando dos Santos. Daí em diante, seria uma outra história. A libertação do controle dos empregadores, a partir da "revolução" de Orlando dos Santos, se construiria com a instalação dos postos para chamada dos conferentes - o primeiro passo. E atingiria o objetivo primeiro da maioria dos fundadores da entidade - a maioridade.

Com a instalação dos postos, ficou possível a greve - e só assim se agilizou o pagamento por produção aos profissionais. Fortalecendo o sindicato, o rodízio viria junto. Também o controle pelo sindicato dos sistemas de pagamento, impedindo os atrasos e fraudes habituais.

Orlando dos Santos, após o curto verão das reformas, perderia uma eleição através de seu preposto, a quem escondia o apoio com medo de recuos nas conquistas efetuadas, nas eleições de 1961. Vem Serafim Mendes e manda o cartel, até a volta de Orlando. Reeleito, com poucos meses de seu segundo mandato e chega março de 1964: ele é cassado pelo golpe militar e trancado no Raul Soares. Não por ser "comunista", que não era. Mas por sua capacidade de organização. De, com sua liderança, ter conseguido transformar um sindicato ministerialista e obediente em um desafio - promovendo seus integrantes.

RETOMANDO A HISTÓRIA

Na origem, o Sindicato dos Conferentes e Consertadores de Santos não é um organismo "de luta", no sentido em que se pode absorver historicamente o termo sindicato. Apenas uma parcela desses trabalhadores, que há muito lutavam por ele, tem o objetivo da conquista.

O sindicalismo pós-30 veio para aniquilar o sindicalismo livre, que a Cidade e o País tiveram no início do século. E, para retirar do sindicato essa índole de conquista e resgate dos direitos dos trabalhadores, nada melhor que os sindicatos "mistos", consoantes com os interesses patronais na distribuição do trabalho. Mas na luta os trabalhadores vão "tomá-lo".

O Sindicato dos Conferentes e Consertadores nasce sob a égide da colaboração de classes fascista, quer dizer, do regime forte instituído para "segurar" a luta operária.

Misto porque reúne, sob o mesmo teto, os representantes patronais - os gangs -, e os que batalhavam no dia a dia do cais para ocupar espaços - os lixas-grossas. São duas faixas de trabalhadores, cuja contradição - econômica - segura a questão reivindicatória.

Foi de um consenso entre patrões e empregados que nasceu o Sindicato dos Conferentes e Consertadores, de maneira a melhor disciplinar a oferta de mão-de-obra. Não foi, como no caso da estiva, resultado de um processo de luta e enfrentamento. Embora houvesse um contingente oprimido, este foi marginalizado do controle do processo.

A batalha para resgatar o significado da palavra sindicato e torná-lo um instrumento de conquista dos trabalhadores é uma constante nesta longa história. Fatos que vão marcar sua trajetória. A maioria de lixas-grossas nunca ousou votar em causa própria nas assembléias, vigiados de perto pelos representantes das agências. Eram esses que lhe davam o trabalho nos navios. Estavam sempre juntos e vigilantes. Dependia deles o sustento da família. A histórica dominação de classes não variava muito.

A libertação desse jugo cruel de dominação virá por etapas, retirando a maioria de uma fase de infantilismo, para outra, de autodeterminação, fazendo desaparecer o sistema de classes no interior da categoria.

As diferenças sociais no interior da categoria exigiam superação. E esta superação é alcançada nas assembléias, nos debates constantes entre o conjunto dos trabalhadores. Em uma evolução frutificada neste processo de democracia direta, na qual os trabalhadores, fortalecidos pelo conjunto, intervinham diretamente na gestão do processo.

Hoje, quem considerar o estágio atual dos conferentes sem avaliar esta história de elevação de direitos, trazendo justiça, nunca terá uma visão acabada desta história. Os antigos "pedintes engravatados", elegantes ao máximo de suas possibilidades para convencer os encarregados a aceitá-los, eram mercadoria barata. Apesar de suas competência matemática - atenta - e de sua boa escrita.

OS HERÓIS DA COLUNA

De uma época em que os conferentes disputavam espaço com os pombos ansiosos por grãos que escapavam dos sacos embarcados, sob pesados e gigantescos guindastes semelhantes a monstros pré-históricos - que não raro atingiam alguém - sob sol e chuva, dia e noite, quantas gerações passaram? Foram elas a base da conquista, ensinando democracia à sociedade.

Preteridas ou brindadas neste longo percurso de cais, estas vidas têm como traço comum a ligação de afeto à atividade que abraçaram. Sem outro horizonte senão o mar permanentemente inquieto, perene de inquietações e mudanças. Ponteado pelo cinza dos navios e pelo colorido dos seres que chegam e saem. No cenário cortado velozmente pelas aves, que cruzam o ar, e pelos ratos, que sobem e descem dos navios. Ou pelas cargas amarradas que deixam passar acima de seus corpos cansados e excitados pela maresia, vendo boiar gigantescos e sentimentais palácios iluminados.

São muitas as histórias desse cais que se fez o maior da América Latina, a partir da força bruta e dedicada de seus homens dedicados. Que souberam democratizar-se a partir de sua própria experiência igualitária no exercício do trabalho. Que ousaram parar para arrancar os ganhos merecidos, no momento da tomada de consciência de seu próprio valor - um direito constante da lei há década e meia. Auto-organizados na ausência de chefes, souberam superar a deficiência e transformá-la em seu benefício. Instituindo uma organização social justa e horizontal.

Representantes patronais do processo de embarque, não por isso se deixaram submeter. Impuseram-lhe regras, equivalentes à responsabilidade deles exigida. Sua trajetória não foi um mar de rosas como sugere o cenário verde diante do qual se exercitam. Têm as marcas dos sapatos rotos dos andarilhos do cais, das lutas e sofrimentos de ontem dos caixeiros antigos.

As invasões estrangeiras marcam o caráter da Cidade no princípio

O choque de interesses entre as potências coloniais trouxe até Santos seus conflitos várias vezes. A defesa da posse e da integridade das povoações da Ilha de São Vicente, nos primeiros tempos, ajudou a forjar o caráter da Cidade como um dos berços do Brasil.

Quatro tentativas de invasão por parte de ingleses, holandeses e franceses, durante os séculos XVI e XVII, em geral corsários a serviço direto de seus governos ou de empresas como a Companhia das Índias Ocidentais, são exemplos bem documentados da participação santista, ainda que de forma oblíqua, nas guerras coloniais.

A primeira invasão aconteceu em 1583, quando surgiu na barra a nau de Edward Fenton. Não chegou a se consumar, frente à presença da frota de André Higino, enviado pelo almirante espanhol Diogo Flores Valdez, que vinha caçando o pirata inglês desde as águas do Caribe. Espanha e Portugal, neste tempo, constituíam um só reino.

Na noite de Natal de 1590 aconteceu a segunda invasão, comandada pelo corsário inglês Thomas Cavendish. Três de seus navios entraram barra a dentro e bombardearam a pequena Vila de Santos. Foram senhores da ilha por dois meses, e a maioria da população refugiou-se em áreas distantes. Cavendish deixou Santos como chegou, subitamente.

Em fevereiro de 1615, ocorreram os mais duros combates. O corsário holandês Joris Van Spielbergen entrou baía a dentro com sete naus equipadas. Pesada artilharia foi trocada em toda a orla, com centro onde está hoje a praia do Embaré. Vários desembarques ocorreram e, em perseguição aos moradores que se refugiaram no Monte Serrat, onde rezaram por um milagre à Vigem do Monte - um providencial deslizamento na encosta encharcada pelas chuvas tornou a Santa padroeira da Cidade.

A última tentativa de invasão aconteceu em 1740, quando seis naus do lendário Francis Duclerc enfrentaram forte resistência, tomando o rumo do Rio de Janeiro, onde o comandante encontrou a morte em combate


A gravura de Mathaus Meriam, de 1616, mostra a invasão de Santos por Joris Van Spielbergen em 1615. Pode-se ver combates em toda a Orla e mesmo no interior da Ilha. São Vicente é a cidade maior, à esquerda. Santos, a menor, à direita, a sede da capitania. Um barco queima defronte o Embaré, tropas de brancos e índios concentram-se ao longo das praias

Foto: publicada com o texto

O movimento ultrapassa os limites da cidade

Em 1905 a Cia. Docas demite 90 trabalhadores por "insubordinação", por se recusarem a furar uma greve de estivadores. Em conseqüência, o porto pára. A Sociedade Internacional é invadida e seus diretores presos. O couraçado Tamandaré é deslocado para Santos e tropas descem a Serra de trem, para ocupar Santos e "garantir a liberdade de trabalho", com toda a energia possível

Cria-se uma crise que envolve os cônsules da Itália, de Portugal e da Espanha, em primeiro lugar; depois, o movimento espalha-se por outras categorias, pelo comércio que fecha as portas; chega, por fim, a São Paulo e ao Rio de Janeiro, com inesperadas paralisações de solidariedade.

A greve pelas oito horas de trabalho

A demonstração de força da Docas em junho de 1908, invadindo a Cidade com fuzileiros navais e praças de cavalaria (que permaneceram até setembro em Santos) durante a monopolização do carregamento de café pela companhia, acirrou o descontentamento local. (...)

No dia seguinte à retirada das tropas e à partida do encouraçado Andrada, em setembro, estoura a greve pelas oito horas dos trabalhadores da Cia. Docas. De início, ela restringe-se ao porto, mas pela habitual intransigência, estende-se por toda a Cidade, com repercussões em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Desta vez, quatro vasos de guerra aportam em Santos e a invasão repete-se em escala ampliada, com várias batalhas de rua e centenas de prisões. É a mais violenta e longa das greves do período: 27 dias, uma centena de feridos e pelo menos oito mortos. (...)

Desgastados por uma batalha desigual, os militantes da Internacional embarcam em uma decisão suicida: na última semana, restringem novamente a greve aos carregadores do porto. (...) Acabam quebrando e aceitando uma vaga promessa do Governo Federal.

Duramente atingida pela repressão, com cinco de seus diretores deportados do País, a Sociedade Internacional encerra suas atividades em 1909.


Trechos do livro Ventos do Mar, de Maria Lucia Caira Gitahy

Uma homenagem a Lindolpho Collor, o sinistro do trabalho, como se referia a ele o poeta e escritor Oswald de Andrade
O parnasiano José Oiticica (1882/1957) assinou com o pseudônimo de João Vermelho um poema dedicado às propostas do ministro Lindolfo Collor para os trabalhadores.

Publicado no jornal anarquista Ação Direta, o poema ironiza também a colaboração com o governo dos ex-militantes Evaristo de Moraes, Agripino Nazaré e Joaquim Pimenta.

"Pessoal, dê um viva ao chefe do trabalho!

Collor merece manifestação

Deu-vos brida, selim, chincha e vergalho

E uma alfafa legal a prestação

 

Viva iô-iô Lindolfo e seu esgalho:

O Evaristo, o Agripino e o Pimentão!

Eles vos levam, águias, para o talho

Bem amarrados na legislação.

 

Gritai, ovacionai, enchei de vento

A empáfia do Lindolfo Safardana

Ex-Bernardista que vos perseguiu!

 

Gritai com vosso grito uno e violento

Mandando a classe vil que vos engana

A grandissíssima pata que os pariu!"

A cassação da bancada comunista

Em 1947, os comunistas estão em alta na Cidade e no País. Mas se inicia a guerra fria. O Brasil rompe com a União Soviética. É outubro, corre solto o terror contra as entidades operárias no governo Dutra. A Cidade perdera sua autonomia - o povo ia fazer do dirigente sindical comunista Leonardo Roitmann, o prefeito de Santos.

Em maio havia sido cassada a legenda do PCB e os comunistas disputam a eleição de novembro em uma legenda de aluguel, o PST. Santos era a "Cidade Vermelha", o PCB tem a maior votação para a Assembléia Legislativa - Taibo Cadórniga é o mais votado na Cidade.

Prestes, João Mangabeira e Vargas, vêm a Santos para a campanha. O PST dos comunistas é o partido mais votado, com 28% dos votos, e fica com 45% das cadeiras.

Esse descompasso se devia à legislação da época, que beneficiava com as sobras do quociente não preenchido pelos outros partidos, ao partido mais votado. Foram 14 os vereadores eleitos pelo PST numa câmara de 31 cadeiras.

No dia 31 de dezembro de 47, véspera da posse, as "Irmãs Meireles" cantariam à noite no Parque Balneário Hotel. Durante o dia, chegou a decisão da cassação dos 14 vereadores comunistas eleitos pelo PST. Eles foram eliminados da Câmara e substituídos pelos suplentes.

Ficou famoso o caso do suplente Frederico Figueiredo Neiva, da UDN, um dos convocados para ocupar uma das vagas abertas com a suspensão do mandato dos comunistas. Ele se recusou a assumir o cargo para o qual não fora eleito, uma marca de dignidade.


Foto da Câmara eleita em 47 antes do expurgo dos comunistas. Outras pessoas também aparecem. A foto original está na sala da presidência da Câmara Municipal de Santos

Foto: publicada com o texto

Conferentes na Câmara

A eleição municipal de 8 de novembro de 1947 renovou a Câmara de Vereadores e teve quatro candidatos conferentes. Só um foi eleito: Manoel Bento de Souza. ELe concorreu pelo PSP ademarista e foi um dos três mais votados, com 358 votos.

Nestor Bittencourt concorreu pelo PTB e teve 192 votos. Armando Augusto de Oliveira, pelo PST, que havia sido alugado pelos comunistas, conseguiu 79. E Joaquim Augusto de Oliveira, que era do PCB, saiu por fora e disputou a vereança pelo PSB. Ficou com apenas 63 sufrágios.

Os vereadores-conferentes desde a fundação do Sindicato: Remo Petrarchi (cinco mandatos), Nelson Mattos (seis mandatos), Nestor Bittencourt (um mês de mandato), Manoel Bento de Souza (um mandato) e, hoje, apenas Ricardo Veron Guimarães (PSDB de S. Vicente).

Moretti, um presidente extra-oficial

Severino Moretti, o velho conferente nadador, poderia integrar a galeria dos presidentes. Afinal, ele dirigiu o Sindicato no período em que Serafim Mendes afastou-se da presidência e ameaçou renunciar, em 1957.

A crise era resultado da resistência da categoria à proposta de Serafim, de pagamento por produção, que mais atendia o interesse das agências que dos trabalhadores.

Só que Serafim não se afastou oficialmente e Severino não foi presidente de direito, mas apenas de fato. Isso foi o que ficou registrado nas atas pesquisadas durante a elaboração deste trabalho.

As turmas e os apelidos

Cada turma de novos conferentes que chegou na categoria recebeu uma denominação de época, do fato político ou folclórico que a marcava.

A espontaneidade e a uniformidade dessa identificação não-oficial, sempre com sentido humorístico, são traços que refletem a homogeneidade do conjunto dos trabalhadores da classe em um hábito que se manteve por cerca de meio século, desde que em 1945 a primeira turma recebeu o apelido de Bombas.

A Segunda Guerra Mundial havia terminado com as explosões nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, promovido pelos Estados Unidos contra o Japão.

O tempo passou e eis que chegam notícias da presença de objetos espaciais na terra. Assim, a turma de 1947 foi apelidada de Discos Voadores. Em 1951, os Estados Unidos invadiam a Coréia e a categoria ganhava uma nova turma, os Coreanos, em 1952.

Institucionalizada a prática de garantir metade das vagas para filhos de associados, ocorre o concurso de 55. Mesmo os não aprovados acabam admitidos por recurso judicial - são os Burraldos, referência a um programa humorístico de muito sucesso na velha TV Tupi.

Em 1962 os aprovados questionam na Justiça a reserva de vagas para filhos e vencem. A reação contrária do Sindicato leva à intervenção. São os Lacerdinhas, lembrando Carlos Lacerda, que atazanava a vida do presidente Jango.

Em 1969, em plena corrida espacial, a turma que ingressa leva o nome de Astronautas. Os excedentes pleiteiam e conseguem o ingresso na época da Copa do Mundo e tornam-se as Feras do Saldanha.

Em 1973, boa parte dos novos conferentes é de Campinas, e a velha rixa entre as duas cidades, multiplicando piadas, encarrega-se de carimbá-los como Campineiros. Os excedentes, beneficiados pelo capitão dos portos, que lhes garantiu o ingresso, são os Sobrinhos do Capitão, dos famosos quadrinhos do Hans e do Fritz.

Só 21 anos depois acontece um novo concurso, em 1994, cujos aprovados formam a força supletiva da categoria, em meio a mais uma das confusões do presidente Itamar Franco. Uma modelo que o acompanha num desfile de carnaval é flagrada sem calcinha por fotógrafos indiscretos. A nova turma, naturalmente, não escaparia do episódio e levam o nome de Sem Calcinhas, que o tempo mudou para Calcinhas.

SÍNTESE FINAL

No momento em que o porto é objeto de uma série de mudanças, eliminando as seculares conquistas dos trabalhadores, efetuadas em ágeis negociações à época dos governos trabalhistas e democráticos - Vargas e Jango, intercalados por Juscelino -, a opção do neo-liberalismo é a da maxi-exploração da mão-de-obra como fonte de lucro. Um dos resultados é a degradação da experiência acumulada pelos trabalhadores, distante de uma perspectiva de evolução social ou portuária.

A ordem dos de cima vem disposta a retroagir o sistema de auto-organização do trabalho pelos sindicatos, uma conquista antiga reconhecida como modernidade até pela Organização Internacional do Trabalho - fruto inclusive de um consenso com os empresários, como vimos.

Mas no rumo das alterações impostas pela "Modernização" decretada pelo Banco Mundial, viabilizando a privatização com resultados implícitos na qualidade de operação, é destruir a organização dos trabalhadores. Que acumulou experiências positivas na construção portuária, mas também erros, comprometendo o controle da mão-de-obra conquistado.

Após promover o porto à condição de o maior da América Latina, na caminhada para a qual contribuiu o sistema organizacional do trabalho, o estágio dos trabalhadores do porto sofre a ameaça de retrocesso à condição de eventuais e biscateiros aviltados.

O "monopólio" da mão-de-obra pelos sindicatos, pactuado como forma de organização da atividade que gerou especialização, pode ou vai -iria? - se tornar um monopólio patronal. Na contramão da evolução portuária e de uma sociedade justa e igualitária.

O MITO E A HISTÓRIA

Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas estarão sempre glorificando o caçador. É para isso que se registra aqui esta trajetória, dos que construíram esta imensidão portuária com seu suor e sacrifício. Secular e gigantesca, esta construção faz parte, com suas lutas e conquistas, do mito santista - uma história real.