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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (9)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Os quepes militares sobre a mesa do salão nobre da Prefeitura de Santos falam de um período em que os santistas foram tratados como cidadãos de segunda classe, exilados em seu próprio país. É o registro também do início de um longo caminho de volta. A foto é de Rafael Dias Herrera, no dia 15 de julho de 1964, durante a posse do interventor militar da cidade

Foto publicada com o texto

 

Histórias dos porões, das lutas e marcas de uma longa resistência

Santos foi um dos centros nervosos do golpe de 64, alvo estratégico das ações militares. Pagou um alto preço pelo brilho e ousadia que a caracterizaram no início dos anos 60

Bastou a tradição oposicionista, que dava brilho próprio à vida cultural e política da cidade, para que Santos fosse considerada um risco potencial à nova ordem instalada em 1964. A mera lembrança das multidões de manifestantes nas ruas, do nível de organização alcançado na década anterior, provocava arrepios nos novos ocupantes de Brasília.

Como de costume, em golpes militares não importa quantos equívocos sejam cometidos: desde que partam dos próprios usurpadores do poder, transformam-se em fatos consumados, leis, regulamentações. Assim, Santos passou a ser o "domínio dos comunistas", onde sindicalistas armazenavam fuzis e metralhadoras em suas organizações, preparando a revolução socialista. Transformou-se na "Cidade Vermelha", na "República Sindicalista".

Enfim, a cidade submete-se a uma série de equívocos provenientes dos articuladores do golpe: havia comunistas, óbvio, mas o fato é que eles nunca predominaram como insistiam os militares; quanto às armas, nenhuma sede sindical escondia um revólver sequer.

"Santos foi onde a revolução correu maior perigo, maior risco. A cidade era como um ponto de partida, a própria origem da revolução. Porque o esquerdismo adquiriu uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. Durante um ano não houve um dia em que não tinha uma greve. A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas, toda a potencialidade política de Santos estava nas mãos do que eu costumo chamar de peleguismo sindical comunista. Essa força vinha do sindicalismo. Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates, que era uma espécie de soviete, que para mim foi o primeiro soviete que tentaram implantar no Brasil, para a revolução socialista. Eles paravam Santos quando queriam".

O depoimento concedido no início de 88 pelo deputado estadual Antônio Erasmo Dias, para o livro Sombras Sobre Santos, é exemplo típico do estigma que recaía sobre a cidade na época. Erasmo Dias, em 1964, era major do Exército na Baixada Santista e um dos líderes do golpe militar na região.

Este e tantos outros equívocos justificaram a cassação de políticos, a prisão em massa, a violação dos direitos. Com o espectro do avermelhado comuna marcharam os golpistas, armando o cerco antes mesmo do derradeiro dia. O prefeito José Gomes, um conservador com rara habilidade de equilibrista, acabou cassado logo nos primeiros dias e o Poder Executivo da cidade entregue a um certo capitão da reserva chamado Fernando Hortala Ridel. Junto com o prefeito, foi-se também João Inácio de Souza, o presidente da Câmara Municipal. E como o Judiciário não contava, estavam os militares no controle total das instituições da cidade.

O passo seguinte foi o desmonte das organizações populares. Sindicatos e as mais diferentes entidades foram invadidos com botinadas nas portas, armas engatilhadas, verdadeiro vexame e delírio que chegou ao ponto de reter o navio soviético Ljubotin no porto e apreender perigosos livros e discos subversivos de autores tão suspeitos quanto Dostoievski ou Tchaikowsky. Nem a diplomacia nem o ridículo contavam para os golpistas.

Na manhã de 24 de abril de 1964, um navio chegou a Santos. Era uma velha embarcação construída na Alemanha, em 1900, que havia sido adquirida pelo Lloyd Brasileiro em 1925. Serviu para transporte de passageiros e cargas e foi usado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Guerra Mundial. Teve de ser rebocado até Santos, vindo do cais do Mocanguê, no Rio de Janeiro.

Mas o velho Raul Soares não fora lançado em águas santistas para expor um passado de glórias. Cumpriria aqui sua última e certamente mais humilhante missão: servir de presídio para todos aqueles que se opusessem ao golpe então em marcha. Fora trazido a pedido do capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrenbach.

"É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente", admitia ironicamente o deputado Erasmo Dias, em seu depoimento para o Sombras Sobre Santos.

Na prática da psicologia militar golpista, seguiriam-se prisões e maus-tratos, centenas de pessoas foram encarceradas no navio-presídio.

Exibindo pesado armamento, soldados criavam um ambiente de constrangimento, violência e humilhação. Diziam que o Raul Soares seria levado por um rebocador até alto-mar e lá deixado; nenhum preso voltaria. Prisioneiros mais rebeldes eram colocados em celas ao lado da caldeira do navio e depois levados para outra, junto ao frigorífico. Outros eram libertados, levados à frente da Imprensa e, logo depois, tinham sua prisão decretada novamente. Às vezes, eram levados ao convés, com as mãos para trás, cercados por soldados de metralhadoras em punho, apontadas para sua direção; aí, vinha um helicóptero da Base Aérea e ficava sobrevoando o local.

Não era o bastante. A tortura física, travestida por técnicas psicológicas, ia mais fundo. Havia uma cela em que os presos ficavam com água gelada à altura do joelho e, outra, para os mais resistentes, onde homens dividiam espaço com as fezes dos ocupantes do navio. Não demoraram a perceber que o bom humor santista tem uma resistência inexplicável: essas celas foram rapidamente batizadas com os nomes das casas noturnas da famosa boca que já não existe mais; havia o El Moroco, o Night and Day, o Casablanca...

A cidade não demorou muito para perceber a espécie de monstro que estava solto nas ruas e mesmo o apoio inicial da classe média e da Igreja começou a falecer por inanição em bem pouco tempo. A eleição de 65 foi uma farsa tão precária que mal se agüentou de pé para dar posse a um constrangido Sílvio Fernandes Lopes.

Apenas três anos depois, em 68, com os estudantes nas ruas gritando "abaixo a ditadura", Santos estava de volta, elegendo um prefeito da oposição e ainda por cima negro: Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho.

Aquilo foi demais para os golpistas e os eternos donos de Santos que, a partir de 13 de dezembro daquele ano, dispunham do Ato Institucional nº 5 para legalizar o ilegal. Tarquínio foi cassado quinze dias antes de tomar posse, em 13 de março de 1969; seu vice, Oswaldo Justo, renunciou em protesto. Outros 95 políticos foram afastados da vida pública sem qualquer explicação. Entre eles estão os deputados santistas Mário Covas, Gastone Righi e Rubens Paiva - a este último um trágico destino estaria reservado na loucura estabelecida nos anos seguintes, morto sob tortura na prisão em 1971.

E vem mais uma intervenção militar, a do general Clóvis Bandeira Brasil. Ele assumiu a Prefeitura no dia 28 de abril e no dia 8 de maio presta seu primeiro serviço à cidade, convencendo o general Costa e Silva a decretar o recesso da Câmara Municipal. Mas os planos eram ainda mais rudes e, no dia 12 de setembro daquele ano de má memória, Santos é transformada, por decreto, em uma "área de interesse da segurança nacional".

Na prática, isso significava que os santistas que, como os demais brasileiros já não podiam eleger seu presidente nem seu governador, ficavam também sem votar em seu prefeito. Com o Legislativo fechado, estava completa a vingança dos golpistas contra a cidade rebelde: transformaram cada habitante de Santos num cidadão de segunda classe, com direitos políticos suspensos.

Ou pretenderam isso, sem conseguir, seria melhor dizer. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que raras vezes uma cidade foi tão enfática em defesa de seus direitos, literalmente "enchendo o saco do poder" - desde as ações formais, através do Legislativo reaberto em 8 de julho de 1970, até a politização dos estádios de futebol, com faixas em meio à torcida do Santos, que obrigava a Rede Globo a peripécias para escondê-las durante as transmissões das finais do Campeonato Brasileiro de 1983.

Foi um longo caminho de volta, sob a tutela de um general-interventor e três prefeitos nomeados pela ditadura. A luz no fim do túnel havia aparecido um ano antes, em 1982, em uma destas ironias do destino, que nos lega uma tragédia que dará mais forças ao movimento pela autonomia.

Na madrugada de 10 de novembro, morre Esmeraldo Tarquínio, vítima de um aneurisma cerebral que o havia deixado por 20 dias num leito de hospital. Último prefeito eleito pelos santistas, cassado pelos militares, Tarquínio simbolizava todas as injustiças cometidas contra a cidade e a cidadania.

Outro fato também contribuiria para acirrar os ânimos contra a tutela do governo federal. Em 15 de novembro, cinco dias após a morte de Tarquínio, os brasileiros puderam votar para escolher o governador dos estados. A oposição elege dez representantes, entre eles está Franco Montoro (então no PMDB), para governar São Paulo, em substituição a Paulo Salim Maluf, que fora nomeado pelos militares.

Montoro ficava com a responsabilidade de nomear o novo prefeito, até que Santos alcançasse sua autonomia. Mas os golpistas, vendo a chance de mobilização da oposição, baixam um decreto estabelecendo que as exonerações de prefeitos nomeados teriam que ser aprovadas pelo presidente da República.

Em 2 de agosto de 1983, o decreto nº 2.050 estabelecia que Santos deixaria de ser área de segurança nacional com a posse do prefeito e vice-prefeito eleitos pela população. Restava marcar o dia da eleição.

Depois de um adiamento, os santistas foram às urnas, finalmente, no dia 3 de junho de 1984, e elegeram, teimosamente, a retomada do que fora interrompido à força. Na falta de Tarquínio, vence a eleição seu antigo vice, Oswaldo Justo; e para o lugar de vice, o filho de Tarquínio, Esmeraldo Neto. Eis o velho espírito da cidade de volta, historicamente, um tapa no rosto do golpistas de todos os tempos.

No dia 9 de julho, esta data repleta de significados, os dois tomaram posse. E, conforme o decreto, com a posse a cidade teria formalmente restituída sua autonomia política. Voltávamos a ser cidadãos e Santos deixava de ser uma "área de segurança nacional" para tornar a ser o porto seguro do Atlântico que sempre foi.

O dia em que Santos seria invadida pelos EUA

No dia 2 de abril d 1964 o embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, enviou sua mensagem desmobilizando uma grande operação militar que seria desencadeada sobre Santos. Ela não seria necessária, já que não houve a resistência violenta prevista pela espionagem da CIA, mas escapamos por pouco.

A operação batizada com o codinome de "Brother Sam" está detalhada em dezessete comunicados do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos, arquivados atualmente na Biblioteca Lyndon Baines Johnson, em Austin, no estado do Texas. Era comandada pelo general-de-divisão George Brown e tinha chegada a Santos prevista entre 8 e 11 de abril.

A força-tarefa contava com o porta-aviões Forrestal, quatro petroleiros carregados, seis destroyers, um navio heliponto, seis aviões de carga, oito de reabastecimento,um de comunicações, oito caças e um posto de comando aerotransportado. Tinham à disposição 110 toneladas de armas e munições.

As tratativas para o apoio militar haviam começado um ano antes, segundo os documentos de Austin. Em 10 de abril de 63 a CIA comunicou o Departamento de Estado que o general Olympio Mourão Filho solicitara armas para o golpe contra Jango: pretendia que lhe entregassem munição para lança-foguetes, 15 mil submetralhadoras, morteiros e lança-chamas.

O desafio das Diretas-já nas ruas

"Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar". "Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil".

O coro dos manifestantes explodiu quando os representantes das Forças Armadas apareceram no alto das escadarias da Prefeitura, após a solenidade de ontem. Vinham juntos o comandante da Artilharia Divisionária/2, general Carlos Aníbal Pacheco, o capitão dos portos do Estado de São Paulo, capitão-de-mar-e-guerra Sérgio Ribeiro de Vasconcelos, e o comandante da Base Aérea, coronel-aviador José dos Santos Sobrinho.

Rostos fechados, os militares estavam visivelmente contrariados com a inesperada manifestação pelas eleições diretas. Tomaram rapidamente seus carros e deixaram o estacionamento do Paço, acompanhados por discreto policiamento no percurso até a Rua General Câmara, espaço que estava tomado pelos manifestantes.


Trecho do jornal Cidade de Santos, de 10 de julho de 1984.

O desafio dos custos nos portos

Continuávamos lutando contra o pressuposto de que era o trabalhador avulso quem onerava os custos do porto.

Em dezembro de 84, nosso sindicato convida para uma palestra o professor Antônio Galvão Novaes, engenheiro naval e na época chefe do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Ele havia produzido um trabalho de 60 páginas provando que o custo da mão-de-obra era o que menos incidia sobre o preço final da mercadoria transportada.

Para ele, estavam mexendo de forma errada numa estrutura complexa, que era o porto. "Os documentos do governo não têm estrutura técnica, mas têm por trás um forte interesse político de amarrar os sindicatos", afirmava o professor.

Em sua análise, Antônio Galvão dizia que o fim do governo militar trazia o temor pelo ressurgimento do movimento sindical: "Eles não querem perder o controle da situação".

Os trabalhadores mostravam-se dispostos a tornar transparente um jogo que por anos foi de cartas marcadas.

Melhor do que eleição, só outra. Direta e já

Foi um dia daqueles que deixam qualquer um contente: o sol iluminou com generosidade a movimentação nos locais de votação, jogando raios claros nas cabeças dos santistas - e de todos aqueles turistas que vieram alegremente pelas estradas para sentir o gostinho da "democracia litorânea".

Uma democracia que nos custou muita briga, muita ansiedade nos últimos 15 anos. Mais ainda: os papéis praticamente empurrados aos eleitores por um magnífico batalhão de cabos e militantes partidários são assim como chaves mestras, prontas a desvendar o mistério da participação popular.

Eleição agrada e faz crescer. Pois que venham novas doses, urgente! Hoje, a Prefeitura, amanhã, o Palácio do Planalto! Em linha direta, já!


Trecho do jornal A Tribuna, de 4 de junho de 1984.