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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma cidade encharcada de religiosidade

Antes de se iniciar de fato um período de contestação de valores que resultaria na expansão de outras crenças e nas agitações políticas e trabalhistas da época pré-Revolução de 1964, Santos era uma cidade bastante marcada pelo estilo de vida característico do interior de Portugal e das ilhas portuguesas do Atlântico (arquipélago da Madeira).

É a Santos da época de sua infância, por volta de 1940, que o escritor Nelson Salasar Marques lembra, neste artigo publicado na edição de 14 de maio de 1990 do jornal santista A Tribuna - embora o editor de Novo Milênio discorde do autor num detalhe: as pessoas não se benziam por causa da sirene, ela apenas marcava a passagem da metade do dia, e as pessoas se benziam em agradecimento a Deus pelo bom transcurso dessa parte inicial do dia - como se benzeriam novamente às 18 horas, tradicional momento da Ave Maria, bimbalhado nos sinos e transmitido como programa diário de grande audiência em rádios locais e paulistas (um exemplo marcante, ainda nos anos 60, era a Rádio 9 de Julho, de São Paulo, com os sinos da catedral da Sé ou do mosteiro São Bento):

Canal de navegação de acesso ao porto santista, entre Santos e Guarujá
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos

IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO
A religiosidade e o espírito mítico 
nos anos 40

Nelson Salasar Marques (*)
Colaborador

Em maio de 1982, numa entrevista concedida a Leda Nagle, o poeta Carlos Drummond de Andrade confidenciava à repórter que a religião, com aquela obsessão pelo pecado, fizera de sua infância um tormento e transformara em pesadelo os anos mais belos de sua existência. Em fins da década de 30 e início da de 40, o espírito religioso e suas práticas em muito pouco se diferenciavam daquelas mencionadas pelo poeta mineiro.

E, nesse quadro, Santos era uma cidade extremamente amarrada à religião, uma cidade de portugueses que para aqui transportaram a figura lendária do senhor vigário e do pároco da aldeia tão bem retratados por Alexandre Herculano em Lendas e Narrativas.

Ainda cheguei a me deparar com um desses párocos de aldeia quando, a bordo do Expresso do Sul, ali por volta de 1967, atravessava a fronteira espanhola de Irun, a caminho de Lisboa, pela rota de Vilar Formoso. E então, naquela desolação de rochas pretas que caracteriza aquele pedaço de solo português, lá embaixo numa trilha de barro vermelho, lá estava ele, glorioso e imortal, o pároco da aldeia, gordo, enorme, montado em seu burrinho. Foi a figura deste pároco de aldeia, ou do sr. vigário, que, viajando através dos mares e do tempo no lombo do seu burrinho, aqui se fixou, trazendo no seu alforje toda a carga de costumes e hábitos religiosos daqueles rudes aldeões da Península Ibérica.

O ambiente de Santos era encharcado de religiosidade a um grau inimaginável para uma pessoa de nossos dias. Benzer-se alguém à sua simples passagem diante de uma igreja ou estátua de santo era quase uma unanimidade. Às vezes num simples trajeto de casa ao emprego a pessoa benzia-se duas ou três vezes. Benziam-se homens e mulheres e crianças também. E era interessante ver-se o procedimento dos mais discretos e tímidos: à aproximação de um templo religioso a pessoa levava lentamente a mão direita ao ventre e ali, com ela fixa, movendo apenas o polegar, ia traçando em linhas geométricas o seu sinal da cruz. Outros benziam-se espalhafatosamente dentro dos bondes e algumas mulheres chegavam a rezar um Padre Nosso.

Benziam-se também ao meio-dia com o tocar estridente da sirene de A Tribuna (naquele tempo falava-se "a sereia da A Tribuna": "ponham a mesa, porque a sereia já tocou", ou "vai depressa para a escola porque a sereia está tocando").

Eu nunca soube porque eles se benziam ao meio-dia, mas eu era uma peça muito bem engrenada no espírito da época e também me benzia a todo o momento. Posso oferecer a minha interpretação do fenômeno: talvez fosse a solenidade do apito estridente da sirene... Aquela sirene deveria lembrar àquela gente portuguesa a hora da partida do navio em Lisboa. O navio apitando e a Pátria ficando para trás, para sempre. Mas é bem possível que em bairros mais distantes, onde a sirene de A Tribuna não chegasse, as pessoas se comportassem de modo diferente.

E ainda hoje, quando as férias de janeiro e julho, férias de professor, me levam em caminhadas vagabundas pelas travessas e becos da velha Santos, a sirene de A Tribuna ainda me imobiliza por alguns instantes e abre as comportas ao vasto mundo das imagens represadas e inquietas que buscam uma nova oportunidade para renovar trajetória. E esta súbita viagem ao interior do ser em busca de um mundo perdido é lancinante, porque superpõe dois mundos diferentes, dois universos que não se enquadram.

E agora parto para uma ligeira digressão que irá sustentar um ponto de vista que irei expor mais adiante. É coisa sabida que o consumismo em que mergulhamos de ponta-cabeça e que nos foi imposto pelas teorias pragmáticas americanas do fim do século XIX - William James foi o seu grande porta-bandeira - introduziu em nosso mundo o fascinante, magnético e devastador Deus-dinheiro. E esse Deus-dinheiro mexeu com o homem e com as nações do mundo ocidental e tirou-lhes a paz de espírito e convulsionou valores que pareciam inatos ao homem. Ele trouxe em sua esteira dois grandes males. Primeiro é que ele se sobrepôs à própria essência do homem e mascarou-se perigosamente sob roupagens atraentes e aliciadoras; e uma de suas grandes armadilhas foi este terrível "os fins justificam os meios", versão elaborada e bem vestida da nossa filosofia cabocla "tirar vantagem em tudo". Mas seu grande mal é que ele matou aquele mundo mítico sob cujos eflúvios mágicos viveu a minha geração.

Mas o que era este mundo mítico? Uma espécie de humanização do sobrenatural, do divino, posto ao alcance das pessoas, o transcendental tocando o chão do dia-a-dia, a valorização das pequenas coisas que se erguiam em símbolos de perenidade e se incorporavam à vida de cada um. Nada exemplificaria melhor a morte desse mundo mítico do que a obra As Brumas de Avalon. E é extraordinário ver-se como Marion Zimmer conseguiu captar e descrever mais de mil anos depois a destruição do mundo dos celtas com todos os seus espíritos místicos, anões, duendes, fadas e lendas. E foi dentro desse espírito mágico dos celtas que nós nos movíamos até aos dez ou doze anos. Os anjos, as fadas, Papai Noel e histórias de anõezinhos que saíam do bojo da noite eram nossos companheiros, e à sua sombra nós crescemos...


Complexo de igrejas do Carmo, na Praça Barão do Rio Branco
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos

Oh, mundo mágico, com que nitidez eu me lembro... Minha mãe olhava para o forro da sala e apontava para uma fenda ou alguma coisa que se assemelhasse a tanto e dizia para nós: "Olhem, lá está um anjinho olhando aqui para dentro". A princípio, ninguém via nada, mas ela insistia, nós trocávamos de ângulo, íamos de uma ponta da sala para a outra e então alguém dizia: "Eu estou vendo, é um olhinho brilhante", e a voz era tão convincente que até eu acabava vendo o tal olhinho do anjo brilhar através da fenda do forro.

Até os dez anos ou mais, garoto acreditava piamente em Papai Noel e na semana que antecedia o Natal éramos envolvidos por aura de grande magia e flutuávamos em nuvens arrebatadoras. E muita menina sonhadora esperava ainda um dia encontrar sua fada-madrinha ao despertar cedo pela manhã. Este universo mítico, vórtice em permanente rotação dentro da qual estávamos engolfados, patrocinava milagres e transformava criaturas comuns em entidades criadoras de mundos mágicos ilimitados. Este espírito mágico e encantatório, de que a minha geração era repositória, empurrava para diante as fronteiras do conhecido e do possível.

Elucido o que digo com um exemplo extraído de vivências da época. À passagem do Ano Velho para o Ano Novo, à meia-noite, menina-moça pegava faca de cozinha e com os olhos fechados de emoção se dirigia a um pé de bananeira no fundo de seu quintal e enterrava a lâmina de aço naquele coração vermelho que pende do fim do cacho, esperando ver escrito no líquido leitoso que aderia à lâmina da faca o nome de seu príncipe encantado. Gesto tão simples, mas tão cheio de concavidade significativa. Ela realmente acreditava estar incorporada às correntes sobrenaturais que governam o universo e que essas correntes poderiam se desviar de sua rota para ajudá-la a descobrir o nome de seu amado.

Foi este mundo cheio de símbolos que ruiu, deixando em seu lugar um grande vazio e a noção extremamente materialista de que "subir na vida" e "ser gente" é amontoar dinheiro e ter o carro do ano. E isso levou o homem a se desgarrar daquele mundo mágico e encantatório, o mundo de suas raízes. E então ele se viu entalado num esquema mecanicista de leis de causa e efeito, e quando a vida, em sua trajetória cruel, o encurralava em becos sem saída de muros muito altos, ele já não tinha asas para voar: ele as havia cortado.

A perda lenta mas implacável deste mundo mítico foi para o homem do nosso tempo o seu veneno branco, a sua morte lenta: essa perda o tirou das alturas de territórios onde tudo era possível e o arremessou ao beco sem saída da rotina e de um cotidiano esterilizador e sem grandeza.

A figura do padre dominou até a década de 40, ou mais precisamente a do senhor vigário. Palavra de padre era palavra final. Padre dirimia pendências de família. Alterava rumos. E ter filho padre era a glória maior para família santista. Ter filho padre era troféu valioso que se mostrava com orgulho: era a época das batinas. Estas lembranças me carregam nas asas da imaginação até o Largo Monte Alegre para a Igreja do Valongo, ali junto da estação ferroviária da Inglesa. E quem hoje caminhar por aquele largo, por aquelas ruínas gloriosas onde um pedaço de Santos chora de dor, muito remotamente poderá criar em seu espírito imagem sequer aproximada da ebulição religiosa que se apoderava daquele pequeno território nos domingos e dias santos ali pelos idos de 1940.


Altar principal do Santuário do Valongo
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos

Naquele território reinava, inconteste, o frei Dorico - a portuguesada o chamava de Fedrico. Frei Dorico, o grande pregador sacro da época. Já vi e ouvi muito orador de fama, homens que através do fogo da palavra chegavam a hipnotizar quem os ouvisse. Ouvi falar a um Carlos de Lacerda, a um Pedro Calmon, a um Aliomar Baleeiro, a um Afonso Arinos em seu discurso "Renuncia, Homem", a propósito de Getúlio Vargas, ouvi falar a um Oswaldo Aranha, e, oh, emoção das emoções, ao grande Vilaret, em Portugal... Mas digo uma coisa: em nenhum deles a palavra incandesceu tanto, penetrou tão fundo quanto a daquele padre do Valongo ali junto da estação da Inglesa.

Ele aparecia subitamente num alto púlpito de mármore, sempre ao lado esquerdo de quem estava sentado, e começava a falar. Era uma figura impressionante de mobilidade e movimentos; erguia os braços em grandes gestos natatórios, e o seu dedo fulminante em forma de pistola disparava certeiro por sobre os fiéis. Eu era muito criança e não guardei o sentido de suas palavras, apenas o magnetismo daquela imagem visual que ele conseguia passar. O seu tom era acusatório, punitivo e se assemelhava muito ao daqueles ministros puritanos que falavam nas igrejas de Massachusetts e de Boston no século XVII.

Ele nos confrontava com os nossos pecados, nos ameaçava com o fogo do inferno e girava no púlpito com tanta freqüência e projetava o seu corpo para a frente, que todo o mundo tinha medo que ele fosse desabar a qualquer momento em cima de nós. "Vai ser agora", eu me dizia. "Vai ser agora que ele vai se esborrachar aqui embaixo". Mas ele nunca caiu.

Às vezes parecia que ele dirigia o seu dedo acusador em minha direção e eu tremia. A molecada saía dali suando, meio assustada. Mas a sua fama de grande pregador percorria a Cidade e muitas pessoas vinham de longe só para assistir à missa do Valongo e entrar no campo magnético da magia verbal do frei Dorico. Oh tempora! Oh mores! Onde estão os grandes oradores de nossos dias? Em que refolhos da história se esconderam? Por que becos e esquinas se perderam? Onde estão eles?

Falar alguém naquela época em missa à noite seria blasfêmia das grandes para aquele povo... Missa tinha de ser matinal, em latim, com cantos gregorianos e coral afinado. Missa era obra de arte, coisa altamente estética, bulia com a gente e todo aquele aparato místico, aquelas barreiras apostas à nossa compreensão fácil. E nós subíamos naquelas nuvens de incenso embalados por cânticos, o chão se desfazia sob nossos pés e a imaginação fazia o resto.

Depois, todo aquele mundo de rituais, todo aquele tecido esotérico de ricas nuances e sugestões foi retirado e revelou a verdade. Mas a verdade revelada perde o seu encanto. Por essa época, as rezas tinham um grande apelo, era a continuação das missas e eram sempre noturnas. O Largo Monte Alegre formigava de gente. Meninos, meninas, moços e velhos, todos iam a essas rezas noturnas do Valongo e todas as janelas de casa eram deixadas abertas para entrar "a fresca da noite", como se dizia na época. Os hinos religiosos tinham um toque marcial, principalmente os do mês de maio. Mas era quando o coro começava a cantar lá em cima "Mas o soldado não tema a espada, Pois tem a bênção da Imaculada", que todo o fervor daquela gente se incendiava.

Assim escritos, esses dois versos perdem toda a sua força, mas naquele ambiente saturado de incenso queimado e altamente propício aos rebôos de uma fé mais intelectualizada do que autêntica, aquele hino fazia muita gente tremer de emoção. Nós entrávamos no hino violentamente, em tom staccato, todas as sílabas pronunciadas com igual vigor. Isso dava à música um toque de marcha militar agressiva e dali a pouco todos cadenciavam as sílabas com batidas dos pés no chão de mosaico da Igreja. A Igreja toda tremia e parecia vir abaixo com o cântico daqueles legionários dos exércitos da Virgem Maria prestes a saírem pelo mundo para combater o demônio. Aquilo era poderoso e a gente tinha subitamente uma vontade incontrolável de matar o inimigo.

Quarenta anos depois voltei à velha igreja do Valongo. Por dentro, tudo igual. Os velhos afrescos pintados no teto da nave ainda intactos e belos... e lá, à esquerda, o púlpito de mármore de onde o frei Dorico encantava as multidões e assustava as crianças com o seu dedo em riste, um dedo ameaçador que nos perseguiu por muito tempo. Muita criança deixou de fazer muita besteira, de praticar muita peraltice por causa daquele dedo em riste sempre presente.

Mas a realidade do Embaré e do Macuco era diferente. A falta de um grande pregador sacro em suas igrejas minimizava as missas a uma simples sensação de dever cumprido. Mas, coisa extraordinária! Naquela vastidão territorial avultava um fenômeno singular: as procissões. Não me refiro à do Senhor Morto, oficial, imponente, imensa. Essa parava a cidade, fazia bonde desviar de seu percurso e bloqueava avenidas inteiras. Mas aos garotos de minha idade essas procissões intimidavam mais do que agradavam.

E garoto que morou nas vastidões desses bairros santistas, ali por volta de 1940, há de se lembrar daquelas procissões mágicas e caprichosas que surgiam do nada e depois se dissolviam como que por encanto. Alguém, em determinada família, pegava de uma imagem de santa e saía com ela pelas ruas do bairro com a intenção de rezar um terço em casa de outra família, mas pelo caminho aquele grupo inicial ia engrossando e a cantoria começava a avultar, trazendo gente às portas e janelas. Cantava-se A Senhora Aparecida, mas ao contrário da vibração dos hinos da Igreja do Valongo, que nos levava ao êxtase, aqueles eram dolentes e enchiam a noite santista de uma tristeza danada. Eram cantos que lembravam os fados com aquela tristeza dos mouros vagando pela Península Ibérica.

Naquele tempo, as pessoas pouco tinham o que fazer em casa. Lia-se bastante, mas conversava-se mais ainda. E então, se procissão com santo passava numa rua, as pessoas deixavam tudo o que estavam fazendo e geralmente juntavam-se a ela, mesmo que fosse só por um ou dois quarteirões. Música de igreja e santo no alto de um andor tinham poder mágico, mas eu não me lembro de jamais ter visto nessas procissões padre ou freira.

Às vezes, no caminho, uma esbarrava com outra, vindo de região diferente; então cada um começava a cantar mais alto para mostrar melhor performance; aí a molecada trocava de procissão, preferia a mais barulhenta.

Muitos carros da época, geralmente Ford de bigode, grudavam na cauda dessas procissões e seguiam-nas para onde fossem. Meu padrinho era um adorador dessas procissões noturnas. Ele saía à noite pelas ruas arenosas do Macuco e Embaré semelhante a um Indiana Jones à procura da Arca Perdida. Nós o acompanhávamos nessas andanças e era uma santa e tremenda algazarra quando avistávamos uma. Elas eram imprevisíveis e como não tinham roteiro de percurso, às vezes se embrenhavam por becos e ruelas que terminavam em grandes valas ou morriam em chácaras de japonês. Então os carros davam marcha-a-ré e faziam voltas enormes para reencontrá-las.

Muitas vezes, no auge daquela empolgação religiosa, nós passávamos em frente a um bar em que se viam alguns rapazes sentados a uma mesa tomando cerveja. Meu padrinho olhava para eles com ares de grande piedade e fulminava, sentencioso: "Esta é uma geração perdida... Esses moços não se importam mais com coisas de religião". Então, a santa chegava ao seu destino e era aguardada à porta da casa pela família anfitriã e às vezes havia fogos e bolo com chocolate quente. Ela era colocada em pequeno altar na sala e todos rezavam mais um terço; no dia seguinte ela seria levada em outra procissão, para a casa de outra família, e todo esse ritual seria seguido novamente.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na Praça Rui Barbosa
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos

A volta era alegre, e, coisa surpreendente, ninguém mais falava de religião: era como se eles se houvessem descartado de um dever e voltado à jovialidade de sempre. Estava na moda falar sobre a guerra, Hitler, os bombardeios alemães à cidade de Londres. Descíamos a Avenida Conselheiro Nébias, àquela época uma artéria inexpressiva em termos de tráfego: soberano e majestoso, apenas o bonde 4 rolava por ela deixando no seu rastro o silêncio. Os carros eram ainda raríssimos e só um ou outro comerciante próspero se aventurava a importar um deles; geralmente comerciantes portugueses para quem a riqueza começava a abrir os braços. Ali por 40, um carro na rua chamava a atenção, era uma novidade danada.

Quem morou pelas redondezas da Igreja do Embaré no início da década de 40 certamente se lembrará deste fato: lá pelas duas e meia da tarde de domingo, os garotos, aos bandos, formavam filas quilométricas ali na Rua Padre Visconti, junto à porta da igreja. Havia um grande tambor de balas glicosadas e muito coloridas, balas maiores do que bola de gude. E cada garoto que entrasse tinha direito a um punhado dessas balas. Era um modo bem persuasivo de esvaziar as ruas e encher as igrejas, e essas balas coloridas tinham muito mais força do que todo o Concílio de Trento, criador dos catecismos no mundo inteiro. 

Já dentro do templo, cada um recebia uma grande fita azul que cruzava o peito e da qual pendia uma cruz de ferro. Essas cerimônias se revestiam de grande solenidade e nos transformavam em cruzados ao som da voz fina e bela de rouxinol de dona Clorinda.

Quem tem conhecimento de História irá lembrar-se que as cruzadas eram exércitos organizados pelos reis católicos para libertar o Santo Sepulcro em Jerusalém. As crianças de minha geração foram criadas com o fascínio pela espada. Revólver não era arma nobre, era coisa vulgar, coisa de bandido. No campo da honra a espada prevalecia. Errol Flynn e Tyrone Power viravam espadachins famosos... Zorro nunca usava revólver. Ainda nas telas o rei da Inglaterra, Ricardo o Coração de Leão, de espada na mão, cantava hinos religiosos e matava turcos e árabes em nome de Cristo.

Isso incendiava a nossa imaginação. Eu improvisava uma espada de um cabo de vassoura, amarrava ao pescoço um pano de enxugar pratos e na cabeça enfiava o escorredor de macarrão e virava um soldado romano. As ruas Frei Francisco Sampaio e Benjamin Constant eram palco de batalhas memoráveis e de grandes duelos. Os filmes de cow-boy e mais tarde John Waine poriam abaixo aquele mundo romântico de duelos de espada. E Santos viu uma outra geração, a geração dos revólveres de espoleta. A garotada iria sair pelas ruas gritando palavras até então desconhecidas: "come on, boy". Muitos diziam: "Vamos brincar de camones boy", aportuguesando os sons. Era a devastadora influência americana que chegava para ficar com os seus cow-boys, o swing e o boogie-woogie. E a nova geração-chiclete de ruminadores estava chegando e batia impacientemente à porta pedindo para entrar.

À noite os congregados marianos do Embaré imperavam: eram legiões extremamente bem organizadas e disciplinadas e sua função maior era louvar a Virgem Maria através de rezas e cânticos. A maioria dos rapazes daquela época freqüentava as igrejas, e as suas atividades sociais e entretenimentos geralmente eram derivativos delas. Essas congregações se deslocavam para outras cidades em viagens épicas. Lembro-me de uma dessas viagens a Santo André. Eles iam chegando no bonde 19 e se agrupando junto à estação dos trens da SPR. Alguém sempre trazia um estandarte colorido e todos entravam em fila e marchavam estação adentro até ocupar um vagão inteiro do trem; entravam triunfalmente cantando o hino da Senhora Aparecida. E continuavam cantando enquanto o trem ia subindo os planos inclinados da serra.

A chegada a Santo André não arrefeceu o seu ardor. Ainda me lembro do líder do grupo. Chamava-se Castanheira, um rapaz de uns 18 anos. Ele tomava a dianteira de estandarte na mão e dizia: "Abram os peitos, minha gente, vamos mostrar pra eles o valor da cidade de Santos". E era encantador ouvir a sua prosódia lusitana. Ele dizia: "Avram os paitos". E aqueles vales da Serra do Mar ainda devem guardar o eco distante dos bravos marianos da Igreja do Embaré. Por onde andarão?

Catedral de Santos
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos
Outra característica dessa época eram as benzedeiras, mulheres estranhas e notáveis a quem muito garoto deve as melhores lembranças: elas eram patrimônio público e curavam o corpo e o espírito. De onde vinham? Nós não sabíamos, elas simplesmente apareciam. Em 40, pouca gente ia a médico e pouco se ouvia falar deles: e era bem comum alguém chegar à idade de 20 ou 30 anos sem ter jamais consultado médico. Doenças leves morriam todas nas ervas caseiras. Losna, boldo, camomila, erva-cidreira, hortelã, pariparoba, malva, sabugueiro e louro. Havia toda uma catalogação de chás e doenças passada de mãe pra filha. Boldo para o fígado, losna para úlcera, chá de louro para calmante. Mas doença grave chá não curava e era então que surgiam as benzedeiras com a sua arte mágica e os seus esconjuros. Torções, mau-jeito, espinhela caída pediam mulher-rezadeira.

A gente já sentia a iminência da presença dela e se aninhava num canto da sala, os olhos arregalados; e então ela chegava, geralmente vestida de preto. Pedia bacia de água quente, exalando vapor e o membro lesionado era colocado no centro do calor. Então a benzedeira puxava um novelo de linha e com uma agulha ia "costurando a dor", como ela dizia.

E no silêncio da sala nós assistíamos aquele estranho diálogo de exorcismo entre a rezadeira e o paciente. "Eu costuro a dor", dizia ela. "Tu costuras", dizia ele. E a agulha e ia e vinha dentro daquele novelo de linha durante muito tempo e a ladainha monótona e intérmina nos lançava numa dormência hipnotizadora. E coisa extraordinária: dali a pouco o paciente estava lépido e saudável, pronto para outra, como se dizia. Aquelas rezas pareciam ser tiro e queda, não falhavam nunca. E, naquele mundo de chás e benzedeiras, muito médico em Santos, ali por volta de 40, deve ter passado necessidade, necessidade brava.

Eu gostaria de terminar este trabalho com citação de falas, provérbios e ditos comuns à época; eles estavam na boca do povo, eram repetidos com constância e através deles busco fazer a captação da essência daquela Santos longínqua dos anos 40. Essa tentativa de reconstrução de uma época através de falas significativas do povo não é coisa nova: La Bruyère e Benjamim Franklin já o fizeram com grande arte. Ao leitor, pois, as falas abaixo:

Padre está sempre certo; menino está sempre errado
Quem ama o feio, bonito lhe parece
Laranja de manhã é ouro, à tarde é prata e à noite mata
Quem nunca comeu melado quando come se lambuza
Gato escaldado da água tem medo
É de pequenino que se torce o pepino
Quem poupa a vara de marmelo estraga a criança
Nunca se rebelar contra Deus: a desgraça é uma bênção porque o sofrimento purifica
Este mundo é um vale de lágrimas
Quem canta músicas de Carnaval na Semana Santa vai torrar no inferno
É pecado menino olhar para perna de mulher com olho grande
O mar não tem fundo
Em primeiro lugar a obrigação, depois a diversão
Nascemos para adorar a Deus
Não apontar nunca para as estrelas: isso dá verruga na ponta do nariz
Esta vida é uma longa viagem de trem e temos de estar preparados quando ele chegar ao seu destino
Os prazeres da carne são pecaminosos: eles são um passaporte seguro para o inferno
A religião católica é a única verdadeira, e ai daquele que não siga os seus princípios
O que pai diz é cartilha para ser obedecida
Bíblia é livro de protestante, logo um católico não deve tê-la na mão
Quando o gato não está, os ratos dançam
Mulher, nasceu pra casar e ficar na cozinha fazendo a sopa pro marido
Cada um tem atrás de si um demônio exclusivo pronto a lhe estragar a vida
Menino que faz xixi na cama deve comer uma crista de galo assada (eu comi algumas)
Perder missa dá inferno
Brincadeira entre homens chega a cemitério
Quem hoje ri, amanhã chora.

(*) Nelson Salasar Marques é escritor, professor de línguas estrangeiras e membro da Academia Santista de Letras. A série de artigos Imagens de um Mundo Submerso deu origem a vários livros de sua autoria.


Pérgula do Boqueirão
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos

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