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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BIBLIOTECA - TEATROS
Memórias do Teatro de Santos (02)


Clique na imagem para voltar ao índice da obraComo em muitas outras cidades brasileiras, a memória do teatro santista raramente é registrada de modo ordenado que permita acompanhar sua história e evolução, bem como avaliar a importância dos artistas no contexto nacional, rememorando as grandes atuações, as principais montagens etc.

Uma tentativa neste sentido foi feita na década de 1990 pela crítica teatral santista Carmelinda Guimarães, que compilou depoimentos escritos e orais, documentos e outros registros, nas Memórias do Teatro de Santos - livro publicado pela Prefeitura de Santos em 1996, com produção de Marcelo Di Renzo, capa de Mônica Mathias, foto digitalizada por Roberto Konda. A impressão foi da Prodesan Gráfica.

Esta primeira edição digital em Novo Milênio foi autorizada pela autora, Carmelinda Guimarães, em 6 de janeiro de 2011. O exemplar aqui utilizado foi cedido pelo ator santista Osvaldo de Araujo:

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Memórias do Teatro de Santos

Carmelinda Guimarães

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Introdução

A proposta foi ousada: recuperar a memória do teatro de uma cidade partindo do depoimento daqueles que fizeram e assistiram o teatro. Resgatar o passado, conferir com dignidade pessoas, espaços, recordações e realizações. Referendar a identidade cultural da cidade.

Lembranças de idosos, os depoimentos podem valer como subsídios de história oral para reconstituição historiográfica e compreensão sociológica da fase de modernização de Santos, através dos testemunhos de remanescentes das mais antigas gerações.

Vinculados que estão à experiência em comum que os gerou, cada testemunho é ponto de interseção de uma prática de anamnese (despertar das recordações) com a teoria da memória usada como hipótese de pesquisa. Quanto mais se libera o homem da  presença do agir, mais espontâneo é o fluxo das lembranças (segundo Bergson), sendo portanto a velhice a idade por excelência da rememoração.

O local escolhido já continha dentro de si um signo revelador. A Cadeia Velha da cidade (hoje Oficina Cultural Pagu), com todo seu continente de dor, dos excluídos. Lá estiveram presos Patrícia Galvão e Plínio Marcos, entre tantos outros.

Uma sala que não serviu de cela foi escolhida. Com vista para a praça centenária, vendo-se à direita as ruínas do teatro Guarani, aonde apresentou-se Sarah Bernhardt, e à esquerda um abrigo de menores de rua. Distribuímos 5 mil cartas-convites, para amadores de teatro, profissionais, universidades da cidade,  entidades de classe, pessoalmente, por correio e à porta dos teatros, discotecas, clubes e faculdades.

Convidei meus alunos para serem assistentes. Terezinha Tadeu, Heraldo Vicente, Uirivani, Vanessa Campos e Luiz Carlos Gomes. Formei com eles uma equipe. Fizemos de tudo. Estudamos e trabalhamos fisicamente. Limpávamos a sala diariamente, recolhendo pontas de cigarro e papéis jogados no chão, arrumando cadeiras, levando flores e Vivaldi (As Quatro Estações). Também chá, e simpatia. Irene Pereira Soares e Ione Cruz foram duas colaboradoras espontâneas, apoiando muito na infra-estrutura de relações públicas. Terminada esta fase, Lucilia Barletta Polak ajudou no trabalho de transcrição das fitas.

Foram seis meses de preparação e seis meses de execução do projeto em 1994. Setenta e duas reuniões públicas de coleta de depoimentos, 70 horas de gravação, 5 mil questionários respondidos, 2.000 pessoas que compareceram, como público estimado, aos encontros.

Tanah Correia à frente da Oficina Cultural Pagu, como homem de teatro, ofereceu condições que dispunha para que se realizasse este trabalho e agora Marco Antonio Rodrigues, também um homem de teatro e secretário municipal de Cultura, fornece os meios para publicá-lo.

Alguns amigos como Paulo Lara, Evêncio da Quinta e Luiz Freire, não prestaram seus depoimentos por não estarem mais aqui; outros, como Iracema de Paula Ribeiro e Paulo Jordão, que já morreram, naquele momento não puderam ir. A vida é rápida e curta. Mas este livro pretende resgatar um pouco da contribuição de cada um. Patrícia Galvão, Antonio Faraco, Carlos Pinto, pessoas que fizeram muito pelo teatro santista.

Tivemos grandes incentivos e momentos de muita satisfação durante a pesquisa. No primeiro dia, quando dona Valentina Leonel Vieira chegou para a reunião de abertura, numa noite de temporal, numa zona degradada da cidade, e quando pensávamos que ninguém iria aparecer, surge aquela senhora elegante, com a dignidade de seus 80 anos, trazendo seu depoimento por escrito e nos dando uma aula de encanto e sabedoria, contando como era o teatro Coliseu que ela conheceu no apogeu. Outra vez, já na metade do projeto, chamamos o ator Paulo Autran, apontado pela pesquisa de público como o ator que marcou a memória de todos, no teatro Coliseu. Paulo chegou, num sábado à tarde, pontual, lotando a sala e comovendo o público com seu depoimento, fazendo com que sentíssemos seu carinho, cumplicidade e respeito.

As apologias da velhice, que procedem das fontes romano-antiga e renascentista da tradição humanística, são aplicações do regime da sabedoria estóica e epicurista à última etapa da vida humana. Confrontam, a exemplo do diálogo ciceroniano De Senectude e de certas páginas de Montaigne, as vantagens da terceira idade, sabedoria e equilíbrio, contra as desvantagens da decadência física. Repetindo Platão no início de A República, "o fruto da velhice, venho repetindo, é a lembrança..."

A Antiguidade prezou na lembrança o dom da experiência dos anos à vida política. A sociedade industrial que vivemos perdeu esse liame, que agora recuperamos. Desvalorizou o saber da experiência, corroeu a memória coletiva, desvalorizou a lembrança. Como pensava Ortega y Gasset, levou o homem maduro ao anonimato dos executivos sem voz.

A memória foi liberada. Todas as gerações foram chamadas, sem excluídos, e deram sua contribuição. Uma aula de humildade e disciplina dos ex-integrantes do Teffi, Teatro da Faculdade de Filosofia dos anos 60, que profissionalizou praticamente todos os seus membros. Todos compareceram, interrompendo atividades profissionais. Ney Latorraca (que saiu do depoimento direto para o teatro, em São Paulo, onde estava atuando em O Mistério de Irma Vap), Carlos Alberto Soffredini, Jandira Martini (também com peças em temporada em São Paulo), Rubens Ewald Filho.

E vieram Oscar e Gilberta von Pfuhl e Sérgio Mamberti e Carlos Pinto com seu grupo completo. Dona Aura Botto de Barros, para contar as atividades do Centro de Expansão Cultural. Depois Os Independentes, o TIC, o Tevec. Foram então chegando todos, contando a história que está resumida aqui. Uma trajetória de muita luta, obstinação, persistência. Mostrando que o sentido verdadeiro das coisas é sempre produzido por valores locais.

Ficou claro que as pessoas se sentem pouco reconhecidas e sem espaço onde estão e por isso saem correndo em busca de mais espaço. As esperanças de mudar o mundo, de que tanto se falava nos anos 60, se transformaram numa esperança de consumir. O cidadão passou a ser usuário e consumidor e perdeu sua identidade. O teatro pode ser um dos veículos de recuperação desta identidade.

Estas pessoas, ao contarem suas memórias, me deram a certeza de estar no caminho certo e a necessidade de prosseguir. Precisamos fazer alguma coisa e uma delas é mostrar como fomos e como a vida era mais humana então. Reconhecer o passado para avaliar o mundo de hoje. Do que fomos para o que somos e o que estamos fazendo. Do teatro que fizemos para o teatro que temos. Este pode ser um ponto de partida para uma discussão. E que ela seja ampla, verdadeira e atinja todos os segmentos da sociedade.

Por isso este livro é sobretudo centrado nas pessoas. Alguma data pode não estar exata. Nem todos os movimentos citados tiveram alta qualidade artística. Não nos importamos demais com isso. Nos importamos com sua qualidade humana. Com a contribuição para a abertura de um diálogo solidário, uma discussão honesta dirigida para o crescimento da comunidade. Se servir para isto, nosso trabalho não foi em vão.

Este não é um livro da História do Teatro, apenas registra a memória de algumas pessoas sobre o teatro de Santos.

Carmelinda Guimarães