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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
SP e as ferrovias na serra (a Serra Nova...)

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Jornal da Tarde/O Estado de São Paulo de 22 de setembro de 1990, em que se destaca - além da alteração no quadro das forças políticas paulistas em função das novas estradas -, a distinção entre as duas ferrovias São Paulo Railway e a tentativa de separação do Norte Paulista, para criação do Estado de Sapucaí, nos contornos da antiga Capitania de Santo Amaro:

[1] AS DUAS LINHAS NA SERRA - Vista da Serra do Mar, com as duas linhas da SPR
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria

As ferrovias na serra.
E o crescimento da cidade de São Paulo

Por Nestor Goulart Reis Filho (*)

Os ingleses construíram a linha entre Santos e Jundiaí, vencendo a Serra do Mar, em 1867.
Essa ferrovia alterou não só as relações de poder na Província de São Paulo como também criou uma nova geografia, promovendo o rápido crescimento da cidade de São Paulo e abrindo o interior e parte do Sul de Minas à cultura do café.

 Antes das ferrovias, as cidades fora do litoral eram sempre pequenas. O transporte, em lombo de burros, não permitia qualquer forma de concentração populacional. Mais de 90% da população vivia no meio rural e quase nenhuma atividade econômica urbana era possível. Sobrava pouco para as cidades.

As ferrovias redefiniram as relações no espaço e permitiram o aparecimento de graus significativos de concentração, em alguns pontos. Mas os primeiros passos não foram simples. Em São Paulo, no século XIX, a grande dificuldade para o desenvolvimento do interior era vencer a Serra do Mar. Os planos vagos e os projetos bem fundamentados para a construção de estradas, ligando o interior com Santos, chocavam-se sempre contra a mesma barreira: a da Serra do Mar.

As terras férteis, produtoras de riquezas, como o açúcar e o café, ficavam no interior, no planalto, a pelo menos 700 metros de altura e uma centena de dificuldades para serem transpostas. Eram problemas técnicos, para os quais havia poucos precedentes no mundo, naquela época, e eram problemas financeiros, decorrentes dos primeiros, para os quais faltavam os capitais.

Qualquer solução que fosse adotada exigia sempre grandes investimentos. A escala dos empreendimentos e os riscos desestimulavam os investidores. Por isso mesmo, os planos para ligações ferroviárias com o planalto, elaborados nas décadas de 30 e 40 do século passado (N.E.: século XIX), permaneceram no terreno da fantasia.

A solução encontrada pelo Governo Imperial e pela administração provincial, por volta de 1850, foi a garantia de juros, com pagamento em ouro. Eliminava-se o risco, com a garantia de remuneração mínima para os capitais investidos. Com essas formas de incentivo, foram construídas as primeiras ferrovias do País. Com essa modalidade de apoio oficial, Irineu Evangelista de Souza, mais tarde Visconde de Mauá, se propôs a construir a primeira ferrovia de São Paulo.

No final dos anos 50, quando o Governo Imperial aprovou os planos de Mauá e seu grupo para a construção de uma linha entre Santos e Jundiaí, passando por São Paulo, o primeiro passo para vencer a Serra do Mar havia sido dado. O projeto técnico foi desenvolvido por um grupo de engenheiros ingleses, sob liderança de James Brunlees, presidente da Associação dos Engenheiros Civis de Londres.

As obras foram iniciadas em 1860, abertas ao tráfego provisório em 1865 e completadas em 1867. Mesmo para os dias de hoje, a obra parece de grande vulto. Para a época, devia parecer imensa. As estações eram bem modestas mas os viadutos e equipamentos exigidos permitiram aos ingleses assumir o controle total do empreendimento, livrando-se de Mauá e seu grupo.

[2] CONSTRUÇÃO DA MAYRINK-SANTOS
Obras de construção dos túneis em concreto armado, na Mayrink-Santos, cerca de 1938
Fonte: Arquivo da Cia. Construtora Brasileira/Ribeiro Franco - foto publicada com a matéria

A implantação da ferrovia alterou as relações de espaço e tempo e as relações de poder, na Província de São Paulo, criando uma nova geografia. Nessa época, a serra era cortada por diversos caminhos de tropas, calçados com lajes, que possibilitavam o transporte por mulas para os vários portos, ao longo do litoral: de Sorocaba a Iguape; de Jacareí a São Sebastião; de Taubaté e Pindamonhangaba a Ubatuba e de Guaratinguetá a Parati (RJ).

A única via que chegou a permitir a passagem regular de veículos nessa época foi a Estrada da Maioridade, ligando Santos a São Paulo, construída em 1842 e refeita em 1862/5. Santos foi sempre o principal porto, como São Paulo foi o centro mais importante noi planalto, para articulação dos caminhos. Mas os outros portos e as correspondentes cidades no planalto tinham um nível de atividade semelhante, rivalizando com Santos e com São Paulo, que, segundo Pasquale Petrone, era o seu "porto seco". Para cada porto no litoral havia um caminho na Serra e um "porto seco" no planalto, do qual partiam os caminhos e as estradas de carro, que percorriam os terrenos menos acidentados do interior.

Esse quadro foi profundamente alterado entre 1867 e 1875, com a inauguração da São Paulo Railway. Vencida a serra, multiplicaram-se as ferrovias no planalto, onde os custos das obras eram muito menores. De Jundiaí a Campinas foi construída a Companhia Paulista, inaugurada em 1872. De Campinas partiram a Mogiana e as novas linhas a Rio Claro e São Carlos e a Porto Ferreira, com bitola larga, que se integraram à Paulista. De São Paulo partiu a São Paulo e Rio, pelo vale do Paraíba, e a Sorocabana, em direção ao Sudoeste. De Jundiaí partiu a Ituana, atingindo Tietê, Porto Feliz e Piracicaba. Em Porto Ferreira, a Paulista articulava-se à navegação pelo Mogi-Guaçu.

A nova configuração dos caminhos teve três efeitos principais: abriu o interior de São Paulo e grande parte do Sul de Minas à cultura do café, a partir de Campinas; reduziu os laços do vale do Paraíba com o Rio de Janeiro e, finalmente, transformou Santos em grande centro de comercialização do café, competindo com o Rio de Janeiro.

Com exceção da São Paulo Railway, os outros empreendimentos foram promovidos por capitais brasileiros e basicamente locais. O aumento da lucratividade com o cultivo das terras mais férteis do interior, a adoção de técnicas e cultivo e beneficiamentos mais eficazes, com o uso de trabalhadores assalariados e a redução dos custos de transporte, asseguraram a realimentação quase contínua do processo, nas duas últimas décadas do Império e ao longo de toda a Primeira República.

Essas condições fortaleceram decisivamente o papel do eixo Santos-São Paulo-Campinas, como promoveram a paralisação de todo o restante do litoral e aceleraram a decadência do vale do Paraíba. Essa nova configuração da rede de caminhos e das relações no espaço explica o rápido crescimento da Capital, a partir daquele momento. Em 1867, quando a ferrovia foi inaugurada, eram 19 mil habitantes. Em 1900, eram 250 mil.

Até o final do Império, a São Paulo Railway, chamada a "Inglesa", exerceu monopólio total sobre o transporte entre o planalto e o litoral, reforçando o eixo Santos-São Paulo-Campinas. Era um arranjo político conveniente. Essa polarização sofreu alguma competição nos primeiros dias da República. O novo regime, sob ventos liberais, abria espaços para que as demais ferrovias construíssem suas linhas para o litoral. O sistema instalado na serra pela SPR havia esgotado sua capacidade e dava margem a propostas dos competidores e a novas empresas.

Vários projetos foram elaborados, para estabelecer novas ligações com o litoral. Três deles, favorecendo companhias já existentes [1]: para a Mogiana e a Sorocabana, buscando o porto de Santos e para a Paulista, visando uma ligação com São Sebastião. Na mesma época, constituiu-se em Taubaté uma nova empresa, para construção de uma ligação com o porto de Ubatuba. As obras foram iniciadas em várias frentes e interrompidas, por falta de recursos e pela demora na chegada dos equipamentos importados. Nenhum dos projetos foi concluído nessa época.

A segunda ferrovia da serra a ser construída terminou por se confundir com a primeira: a SPR pleiteou e obteve autorização para duplicação de sua linha e instalou na serra um equipamento de maior porte, com o dobro da capacidade do anterior.

[3] CONSTRUÇÃO DA SERRA NOVA
Obras da segunda linha da SPR na Serra do Mar, cerca de 1897
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria

As obras foram concluídas em 1897. A linha foi chamada de "Serra Nova", por oposição à primeira, a "Serra Velha".

Sob certos aspectos, a manutenção do monopólio em mãos dos ingleses favoreceu a hegemonia política dos grupos econômicos do eixo Santos-São Paulo-Campinas. Alguns historiadores vêem nos acontecimentos da época mais do que coincidência. Quando estava sendo construída a estrada Taubaté-Ubatuba, ganhou força o projeto do engenheiro Silva Telles, para ligação ferroviária do vale do Sapucaí, no Sul de Minas, com o vale do Paraíba Paulista e o litoral Norte do Estado. Simultaneamente, esboçou-se um movimento para emancipação política dessa região, para constituição do Estado de Sapucaí. Era a antiga capitania de Santo Amaro, tentando recuperar sua forma. Além das ligações familiares e econômicas das regiões vizinhas, nos dois Estados, havia ainda a memória, não de todo apagada, dos tempos de Pombal, quando as regiões ao Sul do Rio Grande haviam pertencido à capitania de São Paulo.

A idéia de uma segunda via de transporte na serra, que pudesse quebrar o monopólio dos ingleses, permaneceu viva. Em 1926, ao elaborar os projetos para a represa no alto da serra e a usina de Cubatão, o engenheiro Asa Billings propunha ao governo brasileiro a criação de um sistema de transporte fluvial com barcaças de mil toneladas, que circulariam pela represa e pelo rio Cubatão e seriam transportadas em teleféricos, no trecho da serra. Mas já estava sendo iniciada a construção de uma nova ferrovia, que tornou o projeto da Light obsoleto.

No governo de Júlio Prestes (1926-30) foi iniciada a construção do ramal Mayrink-Santos da Estrada de Ferro Sorocabana (hoje Fepasa). As obras foram inauguradas em 1938. A estrada se tornou famosa pelas obras de arte (túneis, ferrovias e viadutos) em concreto armado, que constituíram então uma novidade no setor ferroviário. Nos anos seguintes, foi construído um segundo ramal da Sorocabana, ligando Presidente Altino (Osasco) a Santo Amaro e ao alto da serra, permitindo o acesso direto a São Paulo, sem passar por Mayrink. O ramal foi inaugurado por volta de 1950, abrindo para a então subprefeitura de Santo Amaro a possibilidade de instalação de um bairro industrial.

Mas então já havia terminado o prazo de concessão da São Paulo Railway, que foi encampada pelo governo federal, em 1947, 80 anos após a sua inauguração.

(*) O autor, arquiteto e sociólogo, é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Notas:

[1] SAES, Flávio A. M. - A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira - 1850-1930. Ed. Hacitec - São Paulo, 1986.

[4] CONSTRUÇÃO DA SERRA VELHA
Obras da primeira linha da São Paulo Railway, na serra do Mar, cerca de 1865
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria