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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
Do porto para a boca do sertão

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Do porto para a boca do sertão

Desde o início, moradores da Baixada e do Planalto trocavam mercadorias, traçando o destino comum das duas regiões

José Alfredo Vidigal Pontes (*)

Devido ao clima mais propício no planalto, criadores de gado da ilha de São Vicente, onde se encontram as cidades de Santos e São Vicente, levaram suas cabeças para os campos coletivos do Guarepe, região onde hoje se encontra o bairro da Luz, no centro de São Paulo. Neste local, bois e vacas de moradores de São Paulo e da Baixada dividiam comunitariamente as pastagens. O principal comércio da época era a troca de carne por sal.

O morador de São Vicente ou Santos, que não tinha gado próprio, subia a serra com uma carga de sal, a qual era trocada por carne. O sal, por sua vez, era usado para preparar o charque, carne salgada secada ao sol, único meio na época para conservá-la. Farinha de mandioca e milho e marmelada eram trocadas por mercadorias vindas de Portugal, principalmente vinho, roupas e ferragens. O infame tráfico de escravos índios foi bastante ativo até meados do século 17.


Em 1925, o Caminho do Mar foi pavimentado em concreto
Foto: Arquivo/AE

Desde sua fundação, São Paulo passa a exercer um papel preponderante na então chamada Capitania de São Vicente. A decadência dos engenhos de açúcar da ilha de São Vicente, seja pelo rápido desgaste das terras fracas e arenosas, seja pela maior distância da Europa em relação aos competidores do Nordeste, além dos ataques cada vez mais freqüentes dos tamoios, fez com que muitos moradores subissem para o planalto. A fartura de comida e escravaria, as suas excepcionais condições de defesa, sua estratégica posição de entroncamento de caminhos e o clima temperado em plena linha do trópico de Capricórnio foram decisivos.

O padre Manuel da Nóbrega, planejador do colégio de índios que daria origem a São Paulo, era um grande estrategista como todo bom jesuíta, pois a Companhia de Jesus tinha uma rígida formação no estilo militar dada por seu fundador Inácio de Loyola, um oficial reformado. A escolha do local atendia a três requisitos básicos: alimentação, defesa e comunicações.


Mirante no Caminho do Mar, estrada inaugurada por D. Pedro II
Foto: Sebastião Moreira/AE

O vale do Tamanduateí, na altura do atual Parque D. Pedro II, era um local de pesca farta e fácil. Em muitos relatos dos jesuítas existem também referências à abundância de caça, frutas e mel, além de lavouras de milho e mandioca. As condições de defesa eram dadas pela escarpa abrupta da colina onde está atualmente o Pátio do Colégio, rodeada pelas curvas do Tamanduateí. Dali avistava-se toda a várzea - Glicério e Parque D. Pedro II - a qual ficava alagada a maior parte do ano. Por detrás havia a proteção dos brejos do Anhangabaú.

Em decorrência do obstáculo da Serra do Mar, dificultando a comunicação do litoral com o interior, a cidade de São Paulo foi desde o início um segundo porto, de onde se abre um leque de caminhos de penetração continental. O formidável entroncamento de rotas iria garantir a sobrevivência da cidade em alguns momentos críticos dos 443 anos de sua história em que por pouco não se extinguiu, como no século 18, logo após a descoberta das minas. Todos os moços se foram, restando apenas velhos e crianças.


Casa da Maioridade, no Caminho do Mar, lembra o imperador
Foto: Sebastião Moreira/AE

A Capitania de São Paulo foi absorvida pela do Rio de Janeiro de 1748 a 1765. Nesta época, a cidade sobreviveu principalmente como pouso de tropas: tanto as que vinham do pampa gaúcho com charque e mulas para Minas Gerais, como as que vinham com ouro de Goiás e Mato Grosso.

Era, e ainda é, a grande "boca de sertão" do Brasil: as antigas rotas índias de ligação do Sul com o Norte e as diversas variantes para o Oeste, em direção ao Paraguai, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, todas se cruzavam em Piratininga. As principais estradas de rodagem atuais que cruzam a cidade de São Paulo seguem estas mesmas rotas determinadas geograficamente. Hoje, um caminhão dirigindo-se de Porto Alegre, Florianópolis ou Curitiba ao Rio de Janeiro, Salvador ou qualquer cidade do Nordeste passa necessariamente por São Paulo. O mesmo acontece com outro que venha de Goiânia, Cuiabá ou Campo Grande para Santos.

Com o tempo, foi aumentando a preferência por uma das variantes tupiniquins de subida da serra e o Caminho do Padre José foi sendo abandonado, talvez desgastado pelo uso e pela erosão. O novo caminho ia de Santos ou São Vicente por água até o porto de Cubatão e daí subia a serra pelo vale do rio das Pedras, onde hoje se encontram as instalações da Usina Henry Borden. No século 18, o monge beneditino e historiador Frei Gaspar da Madre de Deus assim descreveu suas condições já muito precárias: "um caminho, ou para melhor dizer, uma caverna tortuosa, profunda e tão apertada, que nos barrancos colaterais se viam sempre reguinhos abertos pelos cavaleiros, os quais não podiam transitar sem irem encostando os estribos naqueles formidáveis paredões".


Nos riachos da Serra do Mar, os borrachudos atacavam os viajantes
Foto: Arquivo/AE

Em 1766, o então governador da Capitania, D. Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Matheus, ao constatar que o grande problema da manutenção do caminho no trecho da serra era a erosão provocada pelas enxurradas, lamentava a dramaticidade da situação e a triste sina dos escravos índios: "a terra em partes é mais solta e as águas precipitadas pela estreita do caminho, onde encontram menor resistência, rompem os enormes socavões que ali se encontram e daqui vem toda a gravidade do caminho. Todo este erro, que não é impossível remediar, pagam os pobres índios, porque para todas as pessoas levam todas as cargas que vão e vêm continuadamente".

Se, de um lado, as dificuldades do percurso do litoral a Piratininga eram uma vantagem de defesa, pois, ao contrário de Santos e São Vicente, São Paulo nunca foi atacada por piratas; de outro, eram um entrave enorme ao desenvolvimento do comércio. Nas últimas décadas do século 18, devido a condições favoráveis da economia mundial, houve um ressurgimento da exportação do açúcar brasileiro. Em São Paulo, no quadrilátero formado por Mogi-Guaçu, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba, dentro do qual estão Itu e Campinas, desenvolveu-se uma próspera economia açucareira, que viria a ser, juntamente com o tropeirismo, a primeira acumulação de capital significativa na Capitania de São Paulo.

O açúcar passa a ser exportado pelo mesmo caminho "cavernoso", com grandes inconveniências e perdas. Em 1781, o então governador da capitania, Lobo Saldanha, em carta ao vice-rei, defendia a construção de uma nova estrada para o litoral e informava que as câmaras das vilas de São Paulo, Santos, Itu, Sorocaba, Parnaíba, Jundiaí, Mogi-Mirim e Mogi-Guaçú ajudariam no custeio da obra, mas mesmo assim a obra não chegou a ser feita.


Cananéia, onde se iniciava o domínio dos tupiniquins
Foto: Arquivo/AE

Entretanto, o acaso iria contribuir para a construção de um novo caminho. Lisboa havia sido destruída quase totalmente por um terremoto em 1755. O todo-poderoso Marquês de Pombal formou um Real Corpo de Engenheiros para replanejar e reconstruir Lisboa. Engenheiros portugueses foram estudar na França e muitos estrangeiros qualificados foram contratados. Uma vez terminada a reconstrução de Lisboa, os engenheiros foram enviados ao Brasil para planejar e executar melhoramentos em fortificações, edifícios públicos, pontes e estradas.

Em 1792, o governador da Capitania, Bernardo José de Lorena, inaugurava aquela que seria conhecida como Calçada do Lorena, a primeira estrada brasileira precedida de estudos topográficos e hidrográficos, projetada pelo engenheiro-militar João da Costa Ferreira. Pavimentada com pedras, em forma de zig-zag, na margem esquerda do Rio das Pedras, talvez uma versão melhorada do percurso da estrada anterior. A partir de então, tropas com até 300 mulas faziam o percurso da serra. Foi por esta estrada que D. Pedro I subiu montado em uma égua baia, dirigindo-se a São Paulo com sua comitiva, no dia 7 de setembro de 1822.

Vinte e quatro anos depois, seu filho, o imperador D. Pedro II, inaugurou a nova ligação do planalto com o litoral: a Estrada da Maioridade (uma referência à emancipação do monarca aos 14 anos), com um leito de 4,40 metros de largura. Esta mesma estrada seria sucessivamente melhorada com o tempo, mudando de nome a cada mudança. Com a reforma efetuada pelo empreiteiro José Vergueiro em 1864 - quando, além de melhoramentos em pontes, cortes e aterros, fez-se uma alteração na rota de chegada a São Paulo, que evitava as cheias do Tamanbuateí subindo o espigão da Vila Mariana -, seu nome passou a ser Estrada do Vergueiro. Na época referia-se a todo o percurso até o litoral, que inclui as atuais rua e estrada do Vergueiro e o Caminho do Mar.


Via Anchieta ampliou a ligação com o litoral
Foto: Arquivo/AE

Estas melhorias eram reflexo da cultura do café, uma nova e dinâmica atividade exportadora que exigia melhor infra-estrutura. Apenas três anos após seria inaugurada uma obra que iria provocar transformações profundas: a estrada de ferro São Paulo Railway, atualmente conhecida por Santos-Jundiaí.

Por puro determinismo geográfico, os estudos dos engenheiros ingleses responsáveis pela obra confirmaram, sem o saber, o antigo caminho do Ururaí, no vale do Mogi, preferido pelos tupiniquins - abandonado por causa dos ataques da Confederação dos Tamoios, logo após a fundação de São Paulo.

A ferrovia permitia não só um melhor escoamento da crescente produção de café como também possibilitava a subida pela serra de maquinário pesado e pré-moldados de ferro, o que facilitava a instalação de indústrias. A partir daí, a acanhada cidade de São Paulo iniciaria um processo de crescimento que vem até os nossos dias. A ferrovia potencializou a "boca de sertão", abrindo múltiplas possibilidades. De 25 mil habitantes passaria para 250 mil em 1900. O comércio teve um desenvolvimento enorme, começaram a chegar as primeiras máquinas industriais e os melhoramentos urbanos eram notáveis: água encanada e esgotos, iluminação a gás e bondes puxados por burros. Em 1900 circulam os primeiros bondes elétricos e uma grande usina hidrelétrica é inaugurada no ano seguinte em Santana do Parnaíba.


Padre Anchieta enfrentou dificuldades, enquanto Nóbrega se destacou como estrategista

A pujança econômica do café também transformaria Santos, até então um modesto aglomerado junto ao canal, isolado das praias por brejos e pântanos infestados pelo mosquito transmissor da malária. O porto seria constantemente ampliado e modernizado, mas os melhoramentos mais importantes da cidade começariam somente em 1906 e se estenderiam até 1913: a drenagem e o saneamento ao redor da cidade e entre esta e as praias.

A partir daí estavam lançadas as bases para a ocupação residencial da orla e a implantação de uma infra-estrutura para o turismo, antes impraticável pela ameaça de malária. Em pouco tempo, as imediações das avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias se transformaram no novo pólo residencial e turístico.

Antes disso, em 1893, já havia sido lançado o primeiro grande empreendimento turístico do litoral: o loteamento do Guarujá pela Companhia Balneária da Ilha de Santo Amaro, empresa pertencente a Elias Chaves e ao Conselheiro Antônio Prado. Além de lotes de terrenos vazios também eram oferecidas 46 residências de madeira importadas dos Estados Unidos. Foi construído um hotel também em madeira, além de uma igreja, um cassino e uma estrada de ferro até o canal, onde se pegava uma balsa até a estação da São Paulo Railway, no Valongo, em Santos.


O poderoso Marquês de Pombal e o Morgado de Matheus, que se lamentava da situação do acesso

O progresso exigia novas estradas e interferências na serra. Em 1925, Carlos de Campos, então presidente do Estado, inaugurou a pavimentação em concreto armado do Caminho do Mar, a nova versão da mesma Estrada da Maioridade e depois Estrada do Vergueiro. Era a consagração do automóvel que se popularizava com o Ford T, mais conhecido como Ford Bigode. A ampliação das ligações por estradas de rodagem se fará depois com a Anchieta, Imigrantes e Mogi-Bertioga.

Nesta mesma época da inauguração do Caminho do Mar (1925) iniciava-se uma obra que iria alavancar a industrialização de São Paulo e, ao mesmo tempo, criar sérios problemas ambientais para São Paulo e a Baixada Santista: a construção da Usina Henry Borden no Cubatão pela Light. Para gerar energia elétrica em uma usina na baixada foram represados o Rio das Pedras, o Pequeno, o Grande (Pinheiros) e outros para a formação de dois reservatórios: o Billings e o do Rio das Pedras, este na crista da serra. O curso das águas do Rio Pinheiros foi canalizado e invertido artificialmente por bombeamento, de modo a aumentar o nível dos reservatórios e conseqüentemente da capacidade de geração de energia elétrica.

Isto fez com que boa parte dos esgotos a céu aberto recolhidos na cidade de São Paulo pelo Pinheiros e pelo Tietê, do qual o primeiro puxa água em uma barragem próxima ao "cebolão", se dirijam hoje para a Baixada através de tubulações. Ou seja, o esgoto da Grande São Paulo vai para a Baixada e em seguida para o mar.

É espantoso que as áreas metropolitanas de São Paulo e Santos, ou seja, Grande São Paulo e Baixada Santista, continuem a ser tratadas, tanto pelo planejamento oficial como pelos urbanistas acadêmicos, como dois segmentos estanques, apesar de todas as evidências de que se trata de um mesmo corpo metropolitano. A ineficiência e alto custo do porto de Santos pode asfixiar a baixada e o planalto, bem como a poluição e os congestionamentos de São Paulo podem neutralizar qualquer esforço modernizador que se venha a fazer no porto mais caro do mundo.

Bibliografia básica:

Petrone, Pasquale - O povoamento antigo e a circulação, in Baixada Santista: Aspectos Geográficos. São Paulo, Edusp, 1964.

Reis, Nestor Goulart dos - Guarujá e Faroeste e Santos e as praias, São Paulo, Jornal da Tarde, 26/5/1990 e 30/6/1990, respectivamente.

Toledo, Benedito Lima de - O Real Corpo de Engenheiros: a obra do Eng. João da Costa Ferreira, São Paulo, João Fortes Engenharia, 1981.

(*) José Alfredo Vidigal Pontes publicou esta matéria em duas páginas no Jornal da Tarde/O Estado de São Paulo em 19 de janeiro de 1997, caderno Domingo, como terceira parte da série História do Litoral Paulista, publicada por esse jornal paulistano.

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