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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Vila Matias, bairro que tem de tudo um pouco (1)

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Publicado em 24/2/1983 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

Quando chega alguém de fora perguntando onde fica a Vila Matias, o santista logo vai dizendo: e ali para os lados da garagem da CSTC e do Colégio Cesário Bastos. Mas esses dois tradicionais pontos de referência não ficam no bairro. Desde 1968, quando foi instituído o novo abairramento de Santos, ambos passaram a fazer parte do Monte Serrate, um bairro bem pequenino que inclui o morro e as ruas imediatamente ao seu redor.

Além disso, a Vila Matias não é apenas um bairro tipicamente comercial, como muita gente pensa. Embora não se possa negar a importância de seu comércio, que a cada dia se fortalece, o núcleo apresenta um lado bem residencial e uma parte bastante decadente, para os lados do porto, onde sobradinhos bonitos e imponentes, construídos no início do século, se transformaram em habitações coletivas.

Em outras palavras, áreas da Vila Matias enfrentam um processo de degradação tão acentuado quanto aquele que se verifica no Centro, no Valongo e na Vila Nova. Por ser um bairro grande, a Vila tem de tudo um pouco e reúne em seus limites vistosos templos de diferentes religiões, fábricas, sindicatos e, ainda por cima, abriga o Teatro Municipal, o Centro de Saúde Martins Fontes e o Instituto Adolfo Lutz. É sede também de agremiações tradicionais como o Oswaldo Cruz AC e o EC Senador Feijó e o famoso Recanto do Saraiva.


Além do forte comércio e da zona residencial, o bairro abriga também o Teatro Municipal, templos...

(A diversidade e as características do bairro mais central de Santos)

Tudo começou com uma empresa de bondes. Com uma empresa de bondes e com um cidadão português chamado Casimiro Alberto Matias da Costa. Ele comprou a concessão dos serviços de bondes, puxou os trilhos da praia pela Avenida Ana Costa e, bem no finalzinho dessa via, instalou uma empresa de bondes. Foi o quanto bastou para dar início a um bairro.

Daí para esse novo núcleo receber o nome de Vila Matias não precisou muito. Afinal, Matias Costa não só tinha sua empresa de bondes como era proprietário de muitas terras por lá. E tão famosa ficou a tal estação que os bondes elétricos posteriormente implantados pela Companhia City não circulavam com a palavra recolhe quando seguiam para a garagem. Os letreiros indicavam Vila Matias e não precisava mais: todos sabiam que os veículos iam recolher.

E foi nesse bairro tão ligado à história dos bondes que viveu a moça que conquistou o primeiro título de miss Brasil. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro promoveu um concurso para escolher a jovem mais bela do País e a Maria José Leone, ou simplesmente Zezé Leone, que residia na Senador Feijó com Rangel Pestana (onde mais tarde seria construído o Mercadinho da Vila Matias) levou a melhor.

Quando a notícia chegou a Santos, todo mundo correu para a casa de Zezé. Laura Abrantes Prado, que na época tinha apenas oito anos de idade, se dirigiu para lá em companhia dos primos e encontrou as ruas tomadas de gente. Todos queriam ver Zezé, até que ela apareceu toda de branco na janela, cabelos compridos soltos e enfeitados com um pequeno pente. Deixou o povo encantado, de boca aberta.

Desapareceram os campos de futebol e do Morro do Lima só há vestígios - A história de Zezé Leone é apenas uma das muitas que se tem para contar sobre a Vila Matias. O bairro, enquanto área de expansão mais próxima do Centro, logo ganhou muitos sobradinhos e até mesmo algumas casas comerciais, como indício de uma vocação que ficaria bem definida mais tarde.

No começo do século XX, aquela área para os lados da Silva Jardim, Campos Sales e Conselheiro Nébias ostenta muitas construções caprichadas, daquelas com brasões das famílias na fachada. Na área próxima à Avenida Ana Costa, as coisas caminham mais devagar, mas nos cartões postais das duas primeiras décadas do século aparecem edificações bem marcantes: além da estação dos bondes, se destacam o prédio do tradicional Restaurante Almeida, a residência dos Marinângeles, na Avenida Ana Costa com Júlio Conceição, e a Vila Lisboa, com seus sobrados vermelhos e amarelos, ocupando a atual Rua Lisboa e a Rua Antônio Bento, entre a Rua Lucas Fortunato e a Avenida Pinheiro Machado.

No mais, por aquelas bandas não faltavam terrenos um tanto pantanosos, que se enchiam de água a cada nova chuva e ajudavam na proliferação de indesejáveis mosquitos. Conforme recorda seu José Martins, morador da Rua São Paulo, 29, há uns 40 anos quase não havia ruas abertas, apenas caminhos estreitos ligando um chalé ao outro. Para pegar condução, o pessoal era obrigado a caminhar até a Avenida Ana Costa, utilizando um carreirinho pegado à casa nº 27 da Rua Paraná.

Seu Martins se lembra de diversos campos de futebol. O do União Paulista ficava onde é hoje a Praça André Freire, ao lado daquela onde a equipe do 13 de Maio mostrava tudo o que sabia fazer com uma bola nos pés. Já o 1º de Maio treinava no campo da Rua Paraná com Prudente de Morais. Pelo que se sabe, esse mesmo campo serviu ao Centro dos Varejistas de Santos Atlético Clube, outra agremiação do bairro. Agremiação, aliás, que tinha um grande rival: o Aliança Atlético Clube.

E se há algo que os antigos moradores do bairro nunca esquecem, é o Morro do Lima. Conforme costuma dizer o seu José Pascon Rocha, o morro representava uma "arquibancada natural do campo da Portuguesa". De lá se assistia aos jogos com a maior tranqüilidade, sem precisar pagar ingresso. Conclusão: a cada novo jogo da Portuguesa, quem mais podia disputar uma vaguinha no morro.

Fora essas ocasiões, os homens costumavam se reunir junto ao Morro do Lima para bater papo e passar alguns momentos de descontração. Mas tudo se acabou no dia em que o proprietário resolveu explorá-lo: retirou pedra e mais pedra, até restar aquela coisinha de nada na confluência das avenidas Pinheiro Machado e Bernardino de Campos.


Nesta foto, tirada no mesmo ângulo da outra abaixo,
ainda não se vê as palmeiras na Avenida Ana Costa, mas avista-se o Morro do Lima

A biquinha não jorra água e não restou nenhuma sala de projeção - Também não dá para esquecer a tradicional Biquinha da Vila Matias. Na encosta Sul do Monte Serrate, em área da estação de bondes, brotava uma água geladinha e leve, gostosa como ela só. O pessoal formava imensas filas para conseguir um pouquinho dela, pois não faltava quem lhe atribuísse poderes milagrosos. E há quem diga que os negros do Quilombo do Jabaquara lá se reuniam com pai Felipe, negro libertário, para cantar e dançar.

Mas o progresso suprimiu a tradição e da antiga biquinha nada mais resta além de um paredão encardido. A direção da antiga SMTC ainda tentou reconstituir um pouco do passado: canalizou as águas que desciam encosta abaixo e construiu uma pequena fonte ladrilhada, junto à Avenida Rangel Pestana. Mas também esta se encontra no mais completo abandono e não fornece água à população. De fonte mesmo ficou o nome.

Coisas da vida? Não deve ser simplesmente isso, mas vamos adiante. Embora na Vila Matias morassem muitos estivadores, doqueiros e ensacadores, a colônia japonesa estava fortemente representada. Tanto que havia uma escola só de japoneses, na Rua Paraná, 131. Na época da II Guerra o Governo ocupou o prédio e hoje lá funciona a 5ª Delegacia do Serviço Militar. Como lembrança do tempo passado, restou um sol nascente no frontão, símbolo visível aos mais observadores.

As crianças se divertiam jogando bola nos campinhos e adoravam tomar um gás nos trens da antiga Cia. Docas. Os trilhos cruzavam o bairro para se levar pedras e terra do Morro do Jabaquara para aterrar o cais, e os trens nunca podiam andar em alta velocidade porque a cada esquina havia uma porteira. Diante de cada uma delas, um funcionário descia, abria e o trem passava; tornava a descer, fechar e retornar ao trem. Entre esse vaivém, a molecada grudava na rabeira e fazia a maior farra.

Por causa do trenzinho das Docas, até hoje a Avenida Cândido Gafrée é conhecida como Rua da Linha da Máquina. E, por falar nela, anda bem abandonada, nem asfalto tem e nem com muito esforço se pode imaginá-la como uma avenida.

Parquinhos de diversão raramente se instalavam na Vila Matias, mas em compensação o pessoal dispunha de cinemas para se divertir. O bairro chegou a ter cinco salas de exibição, mas delas, quando muito, restaram os prédios. Quem não ouviu falar nos cines Carlos Gomes, Bandeirantes, Paratodos, São José e Dom Pedro? O Paratodos, como bem recorda seu José Pascon, era o mais popular de todos. Imaginem: chão de cimento, armações de ferro no interior e o teto de zinco e lona. Ingresso baratinho e diversão garantida.

Melhor mesmo só para a criançada que morava perto do São José e do Dom Pedro, ambos na Rua Silva Jardim: com um jeitinho especial, conseguiam entrar sem pagar. A Ruth Sotello perdeu a conta das vezes em que assistiu filmes de graça no São José. Lamenta muito o seu fechamento e acha que a reabertura dele e do Dom Pedro tornaria a Rua Campos Melo muito mais agradável. Como nos bons tempos em que não havia trânsito louco de caminhões, as famílias eram muito unidas e se reuniam para trocar um dedo de prosa no portão.

Casas comerciais que marcaram época e as figuras muito lembradas - E sabem o que mais? A Vila Matias também tinha a sua Califórnia. Tratava-se de uma área na Rua Carvalho de Mendonça com Avenida Washington Luís, altura do final da Avenida Senador Feijó (hoje nem mais faz parte do bairro), que por muito tempo se constituiu num centro abastecedor de produtos hortifrutigranjeiros. Na época de São João, de lá saíam balões dos mais bonitos, numa beleza só comparada às festas com muitos fogos promovidas pela Capela de Santa Cruz.

Em termos de comércio, muitas casas fizeram história. Havia até um posto de venda dos automóveis e caminhões da marca Studebaker, na Rua Brás Cubas com Rangel Pestana, onde hoje funciona a Casa do Azulejo. Conforme contou seu José Pascon, no ano de sua construção a edificação levou o título de mais belo prédio comercial.

A Casa Paris, na Lucas Fortunato, que vendia os mais finos tecidos franceses, não deve ficar esquecida, e muito menos o Restaurante Almeida, tradicional por reunir a elite cultural de Santos. Gente como Patrícia Galvão, a Pagu, o teatrólogo Plínio Marcos e o poeta Roldão Mendes Rosa viviam debruçados em suas mesas, trocando idéias e crescendo juntos.

No mesmo prédio do Restaurante Almeida há a não menos tradicional Alfaiataria Duarte. Se a porta estiver entreaberta, na certa seu Júlio, alfaiate desde os 17 anos, encontra-se às voltas com tecidos muito finos, com a máquina Singer de 1949, o ferro elétrico que pesa sete quilos ou a enorme tesoura francesa.

Como bom artesão que é, não aderiu a certas modernidades que comprometem o resultado geral do trabalho. Procura fazer tudo com o capricho que herdou do pai, do tio, do avô e do bisavô, todos alfaiates. Um detalhe: o bisavô tirava medidas com um barbante e logicamente tudo ficou mais fácil com o metro...

Enquanto seu Júlio remexe os tecidos, perto de lá, no Centro Comercial da Vila, seu Jovino e dona Alice desenvolvem um outro tipo de trabalho artesanal. Costuram, pespontam e montam sapatos, e em seus quase 30 anos de atividades no bairro ganharam clientes da alta sociedade e se tornaram muito populares.

Pois é. Existem pessoas que, por mais que o tempo passe, continuam sendo lembradas. Nessa lista se incluem o Billy Stem que trabalhava na carrocinha como laçador - dizem que só conseguia laçar algum cachorro quando estava de fogo - e seu Antônio, chofer de táxi muito querido. Seu Fordinho 1929 andava um tanto devagar, mas sempre polido, reluzente, bonito de se olhar. E todos se admiravam do cuidado que dedicava às crianças: quando as via atravessando a rua, saindo do Cesário Bastos, aconselhava-as a ter cuidado e seguirem para casa direitinho.

O pessoal do bairro não consegue esquecer essa figura tão bondosa. Assim como muita gente na certa sempre lembrará que seu José Pereira de Castro conheceu o presidente Figueiredo quando era apenas um aspirante, com 16, 17 anos de idade. Quem quiser ouvir essa história de seu José pode ter certeza de encontrá-lo, à tarde, sob o imenso chapéu-de-sol existente junto ao Armazém Santa Cruz. Ele costuma ficar por lá, aproveitando a sombra e o vento gostoso.


Nesta foto, tirada no mesmo ângulo da mostrada acima,
em primeiro plano o Colégio Cesário Bastos, que ficou pronto em 1916

Veja as partes [2], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros/Vila Mathias

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