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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Problema é o que não falta no Rádio Clube (1)

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Publicado em 20/1/1983 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

O Jardim Rádio Clube não é um bairro grande e nem cheio de edifícios, mas tem pelo menos uns 26 mil moradores. Fica fácil explicar o fenômeno: lá está situada a maior favela de Santos. São 20 mil pessoas e mais cabras, porcos, germes e bacilos compartilhando o mesmo mangue malcheiroso. Os barracos se aglomeram por mais de quatro quilômetros de extensão, equilibrados sobre pedaços de pau.

Se há alguns trechos melhores, onde o mangue desapareceu, isso se deve ao sacrifício daquela gente, que jogou aterro para se livrar da água podre que causa doenças. Agora, muitos andam revoltados: um elemento que se diz representante da família Alberto de Luca, antiga proprietária da área  que formou o Rádio Clube, procurou moradores para lhes dizer que os terrenos onde moram têm dono. Aqueles homens e mulheres não se conformam: transformaram lodo em terra fértil; e, de repente, aparece um proprietário.

Mas a favela de Vila Gilda é apenas um dos focos de problemas do Jardim Rádio Clube, um lugar sem nenhuma infra-estrutura, com valas de esgoto correndo a céu aberto e ruas tomadas por lama. Já houve caso de morador que ficou 15 dias sem poder sair com o carro devido aos lamaçais, comuns em quase todas as vias. O pessoal já cansou de pedir providências, mas a Prefeitura nunca ouve os apelos. Esqueceu-se desse bairro onde os moradores pagam normalmente os impostos e têm seus direitos.

Festa. Família reunida. Corria o ano de 1958 e estava sendo inaugurada a primeira casa de alvenaria do Jardim Rádio Clube, na Rua Cléber Facundo Leite, 435. O proprietário, Antônio de Oiveira Couto, não cabia em si de contente e batizou a moradia de Vila Alzira, em homenagem à esposa.

Naquela época, havia muito mato e mangue por aqueles lados, mas a área que veio a formar o bairro se destacava das demais: nela, a Rádio Clube, primeira estação radioemissora de Santos, instalou a sua torre de transmissão. E a torre acabou dando nome ao lugar. 

Hoje, vivem no núcleo mais de 26 mil pessoas, sendo que 20 mil delas se comprimem nos barracos de uma favela imensa. Sem terem onde morar, elas disputam as águas encardidas de um mangue podre.


O mangue malcheiroso é uma ameaça constante a essas crianças

Sabe-se lá o que deu na cabeça do seu Eduardo. O Jardim Rádio Clube tinha apenas uma meia dúzia de moradores quando decidiu montar seu barzinho. Não parecia interessado em grandes lucros e se conformava em passar o tempo debruçado no balcão à espera dos fregueses, que tardavam, mas não falhavam.

Seu Eduardo vendia dessas coisas que volta e meia a dona de casa precisa comprar, como arroz, feijão, latas de óleo e uma vassoura para substituir aquela que ficou só no toco. À noite, o movimento sempre crescia: os homens se reuniam para tomar uma cachacinha e trocar um dedo de prosa.

Carlos Pedro Braga, um dos mais antigos moradores, corria no seu Eduardo quando faltava sal, açúcar ou outro produto que faz parte do dia-a-dia de uma casa. Também, não havia muitas opções para compras: tão perto quanto o bar, só mesmo a Padaria Izildinha. Fora esse comércio incipiente e as poucas moradias, o Jardim Rádio Clube era um mangue desses bravos, com mato que não acabava mais.

Os primeiros moradores daquele lugar considerado um fim de mundo permaneceram um bom tempo sem luz elétrica e sem água. Da luz, até que o pessoal não sentia muita falta, porque. bem ou mal. os lampiões garantiam alguma claridade, e viver sem geladeira e ferro elétrico não representava algo tão terrível assim. Pior era andar com baldes de água para cima e para baixo o dia inteiro, um sacrifício que ninguém gosta de relembrar.

O Rio do Bugre não tinha poluição, e sim águas claras e muitos peixes - José Alberto de Luca se deu bem quando começou a vender lotes no Jardim Rádio Clube, mesmo se tratando de um dos pontos mais distantes da Zona Noroeste, sem condução ou qualquer outra melhoria. Ele era proprietário de tudo aquilo e não teve dificuldades em encontrar gente interessada nos terrenos, mesmo sendo pantanosos.

Quando adquiriu seu lote, no início da década de 50, seu Carlos Pedro Braga pagou 33 mil contos de réis, em prestações. Cerca de 10 anos depois, um terreno do mesmo tamanho já custava 150 mil contos de réis, conforme testemunha o morador Alfredo Almeida. E a valorização aconteceu, mesmo restando mato e mangue nas imediações.

Mais encharcado o Rádio Clube não poderia ser, por causa do Rio do Bugre, que rega boa parte de suas terras, e dos braços de rio, desses que vão longe em áreas planas. O Rio do Bugre resistiu às mudanças contínuas, só que perdeu a transparência e a cor azulada. Vive, mas está morto.

Aquino, 24 anos de idade, nascido e criado no Jardim Rádio Clube, sente saudades do tempo em que se pescava muito peixe bom por lá. Do barco se viam os peixes nadando de um lado para o outro, com seus tamanhos e cores variados.

Não havia mais do que quatro barracos no lugar onde hoje se estende a favela de Vila Gilda, com seus mais de quatro quilômetros de extensão. E na altura de onde está instalada a sede da sociedade de melhoramentos do núcleo, no Caminho da Capela, moradores construíram uma capelinha para fazer suas devoções (daí o nome Caminho da Capela, que permanece apesar de a igrejinha não existir mais).

Naquelas imediações, as águas do rio formavam uma prainha gostosa, com uma areia fina que insistia em grudar nos corpos molhados. Sob a sombra de mamoeiros viçosos, mulheres sentavam-se para conversar e desfrutar do vento bom, constante nos dias quentes de verão.

E naquele mundo de terra que se divisava à frente, podia-se contar tranqüilamente uns 18 campos de futebol. Está certo que em dias de chuva mais pareciam charcos, mas de qualquer forma garantiam bons momentos de lazer.

Às vezes, os moleques terminavam as partidas com lama da cabeça aos pés, mas ainda encontravam disposição para pegar rãs num dos brejos das imediações. Ou então caranguejos, que se multiplicavam tanto quanto os impertinentes mosquitos pólvora. O pessoal se via maluco com os tais mosquitinhos.

No açougue e no barbeiro, o bate-papo de todos os dias; na praça, futebol - Apesar de o Rádio Clube não ter saneamento básico, ostentar ruas cheias de lama, com transbordantes valas de esgoto nos cantos, seu Braga costuma dizer que o bairro "está bom, parece uma cidade". Quem conhecia aquilo tudo como um manguezal, tem até razão quando diz tal coisa.

Agora, ninguém precisa mais caminhar meia hora para pegar condução na Avenida Nossa Senhora de Fátima. E em termos de comércio, há de tudo um pouquinho. O Supermercado Conquista, o único por aqueles lados, mudou de endereço e ampliou instalações para acompanhar os novos tempos.

Tão antiga quanto esse supermercado, é a Casa de Carnes Rádio Clube, que há vários anos está sob os cuidados de seu Reis, um açougueiro brincalhão que conquistou a amizade de todos. "De manhã, juntam-se umas 10 ou 15 mulheres que são o diabo", conta rindo e referindo-se à mulherada barulhenta que chega sempre no mesmo horário. Dá até para se ouvir a conversa delas do Bazar Santo Antônio, que fica ao lado.

Enquanto as mulheres aproveitam a ida ao açougue para pôr as novidades em dia, os homens preferem se reunir para conversar no Salão Jardim Rádio Clube e acompanhar o trabalho paciente de seu Cícero, sempre às voltas com as tesouras e os produtos para o cabelo e a barba.

Onde também nunca falta gente é na padaria em frente à sede da sociedade de melhoramentos. Quatro linhas de ônibus têm seu ponto final por perto e em seus momentos de folga, motoristas e cobradores se reúnem lá para jogar baralho. De longe, a gente os reconhece com suas camisas de listras azuis.

Movimentação tão grande só mesmo na Praça Jerônimo La Terza, que é a única urbanizada do bairro e, por isso mesmo, disputada por muita gente. Nela o concreto substitui árvores e jardins, mas pelo menos o pessoal pode bater uma bola. Não há opções de lazer no bairro, e quem quiser tem que criá-las. É o que fez o pessoal da Rua Vereador Álvaro Guimarães: ocupa trecho dela para jogar tacobol. As partidas começam no domingo, às 9 horas, conforme anuncia a inscrição em um muro.


Seu Antônio (o mais magro, de óculos) reuniu a família na inauguração
daquela que foi a primeira casa de alvenaria do bairro

Veja as partes [2], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros/Jardim Rádio Clube

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