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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Estuário (2)

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Publicado em 30/12/1982 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)


Aos 97 anos de idade, muita disposição e causos para contar

Dona Teresa de muitas histórias, 81 bisnetos e 6 tataranetos

Dona Teresa levanta-se, agita os braços, capricha na entonação da voz, senta-se novamente, leva a mão na cabeça e ri feito criança. Uma história, para agradar, precisa ser contada nos seus mínimos detalhes, com todos os gestos e expressões faciais que lhe são de direito. Talvez dona Teresa nunca tenha pensado sobre isso, mas quem não vibra diante de seus relatos?

Mas essa mulher não é simplesmente uma ótima contadora de causos. É uma ótima contadora de causos aos 97 anos de idade. Nasceu em 1885 e conserva a mesma disposição da juventude, apesar dos 15 filhos que teve e da vida de muito trabalho que enfrentou.

Qualquer um se encanta diante da vivacidade de dona Teresa. Nunca se esquece do aniversário de ninguém da família e isso representa memorizar dezenas de datas. Só para citar os parentes mais chegados: 24 netos, 61 bisnetos e seis tataranetos. Isso tudo por parte da família do marido, porque dona Teresa foi deserdada pela sua, que nunca aceitou seu casamento com um brasileiro.

"Já acabaram os portugueses por aí?", perguntou o cunhado em carta enviada de Portugal. Na certa não imaginou que a indagação serviria para acelerar o matrimônio. Quando o noivo de dona Teresa leu aquilo, se encheu de razão e disse: "Vamos casar e é já". Dali a alguns meses estavam casados. Corria o ano de 1904 e a cerimônia foi realizada na capela do antigo Asilo dos Órfãos, hoje Casa da Criança, no final da Avenida Rodrigues Alves.

Orgulhosa com seu vestido branco como as nuvens, seguiu para a igreja num bonde puxado a burro. Bate uma pontinha de saudade: "Os bondes puxados a burro eram bonitos, não machucavam ninguém..."

Sentou-se sobre uma jibóia, cobra capaz de engolir um elefante - Datas, detalhes dos locais e outras coisinhas do tipo nunca faltam nos relatos de dona Teresa. Basta conversar com ela para aprender um pouco da história do Brasil, de Portugal e de Santos.

Conheceu o Porto no tempo dos velhos trapiches de madeira, passeou no Mercado Velho e ainda se lembra quando mataram dom Carlos, da família real portuguesa. Como esquecer o capinzal e as chácaras que havia para os lados das casas populares do Macuco, o Pau-Grande e sua prainha? "O Pau-Grande era bom, era bom", diz com o sorriso. Aberto.

Vai enumerando: a Rua Rodrigo Silva chamava-se Rua dos Polacos; a Constituição, Rua da Palha; e o Canal 4, apenas Vala Grande. A Avenida Afonso Pena ostentava árvores com mais de 30 metros de altura, com troncos tão grossos que dois homens não conseguiam abraçar. "Tinha cobra e até leão", diz com ar maroto, sendo que exagera quando fala em leões.

Quantas e quantas vezes pescou no Estuário e voltou para casa com baldes cheios de tainha. E fica toda entusiasmada quando relembra o dia em que apareceram nas águas uma jararacuçu e uma muçurana que quase viraram o barco de um pescador do avesso. A cabeça da jararacuçu era grande como a de um cachorro e a muçurana tinha uns 18 metros de comprimento. Juntou gente, formou-se um rebuliço e muitos achavam que estavam de volta os tempos das serpentes-marinhas que engoliam homens inteiros.

E por falar em serpentes que engolem homens, sabe que certa vez dona Teresa sentou-se em cima de uma jibóia? Isso mesmo, de uma jibóia, essa cobra capaz de devorar até elefante. Dá gosto vê-la contar essa história e frisar que achou o feixe de lenha um tanto áspero e mole. Nem se deu conta de nada. "Longe de mim tal pensamento", comenta, e em seguida repete o gesto que fez e as palavras que disse na hora em que o marido tirou-a de lado e contou-lhe que estava sentada sobre a cobra. Acompanhem a cena: dona Teresa faz cara de espanto, leva as mãos à cabeça e exclama um eh, Jesus do céu bem sonoro.

Uma ameaça de despejo depois de abrir caminho e morar nele por 60 anos - É essa dona Teresa quase centenária que cuida do quintal, planta batata-doce, milho, mandioca, feijão, cuida das bananeiras e da oliveira. Sua enxada não tem descanso e ela se sai tão bem que já colheu batatas-doces e mandiocas grandes de fazer inveja a muito agricultor acostumado a encher suas plantações de adubos químicos.

"Benza Deus", dizem os mais antigos ao constatar a saúde, o bom-humor e a alegria de dona Teresa. Muito querida por todos que a conhecem, sempre recebe alguma visitinha. Quando alguém da família se casa, faz questão de posar a seu lado para uma foto que ficará guardada no álbum.

O Jardim gosta de visitá-la para vê-la contar sobre coisas que aprendeu em livros. E afirma que a Velha, como a chama carinhosamente, deveria ser contratada pelo Governo para fazer tudo quanto é cálculo necessário. Não erra nunca em matemática e apresenta o resultado de contas antes mesmo que alguém possa pensar em pegar um lápis.

Dona Teresa já foi até manda-chuva de time de futebol. Durante 17 anos comandou o Paissandu Futebol Clube, cuja sede funcionava nos fundos de seu quintal. Instruía os jogadores, armava esquemas de ataque e acompanhava o time em todas as excursões pelo Interior. Quando se afastou, o clube decaiu muito e acabou se extinguindo.

A filha Cleonice, que mora com ela até hoje, costuma dizer que se seu pai não tivesse morrido tão cedo a mãe na certa teria chegado aos 20 e tantos filhos. Quando seu Benedicto faleceu, dona Teresa estava grávida de Cleonice e teve que dar um duro danado para criar a filharada toda.

"Eu nasci para ser escrava, não sei porque não fui", diz, lembrando-se das noites inteiras que passou fazendo tricô e crochê, das horas e horas "com a barriguinha encostada no tanque, dois ou três ferros de carvão do lado".

Dona Teresa não é mulher de ficar se lamentando da vida, mas em alguns momentos não consegue esconder a angústia. "Estou na base da miséria. Tantos anos viúva e ainda recebo tão pouco do Instituto", confidencia, relembrando a minguada pensão do INPS. O pior de tudo é a ameaça de despejo, depois de morar 60 anos no número 83 no antigo Caminho Particular da Bacia, hoje Rua Alberto Mendes Júnior. Ela e o marido, foice e enxada na mão, abriram o caminho e foram os primeiros moradores. Agora, a família Bayton reivindica a área e dona Teresa, desconsolada, não sabe o que fazer.


O Estuário surgiu sobre áreas que pertenceram ao Macuco

Veja as partes [1], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros/Estuário

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