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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO
Um mundo diferente. É a Nova Cintra (1)

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Publicado em 22/7/1982 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

Que coisa boa é passear pela Nova Cintra! Um mundo bem diferente nos reserva esse morro, que se distingue dos demais por possuir uma imensa planície. Uma planície cercada por morros, onde a poluição não chega e a beleza natural explode com força total. Lá tem lagoa, cachoeira, campos de várzea, moleques correndo sem shorts pelo meio da rua, pássaros cantando e tantas outras cenas diferentes que se chega até a duvidar que aquilo tudo faça parte de Santos.

Como em toda pequena cidade do Interior, a igreja fica bem no meio da praça principal e ao redor dela os moradores passeiam e os casais namoram. E, por incrível que pareça, na Nova Cintra ainda há alambiques da década de 20, onde se mantém a tradição de fabricar o famoso morrão, pinga das boas, que não incha os pés e nem afina os braços. Mas o morro tem seu lado ruim, porque a maioria das ruas não é asfaltada, não há rede de esgoto e as famílias convivem com valas malcheirosas e perigosas.

A situação de abandono só é pior na Vila Progresso, núcleo que cresceu desordenadamente sobre encostas inseguras. Sempre que chove mais forte, o pessoal da Vila reza ou sai correndo. A Prefeitura permanece indiferente a tudo que acontece por lá e só se lembrou do morro semanas atrás, quando deu um novo nome para a avenida principal. Mudou-o para Nagasaki, mas comprou briga porque ninguém gostou.


O verde, a lagoa, os pássaros e a cachoeira fazem do Morro da Nova Cintra um lugar diferente

Será que a Lagoa da Saudade não foi, em outros tempos, a cratera de um imenso vulcão? A idéia não é fruto de nenhuma mente inventiva e sonhadora, como parece a princípio. A dúvida surgiu, há muitos anos, entre pesquisadores que encontraram em suas imediações olegisto especular, minério que caracteriza crateras vulcânicas. Até hoje não conseguiram confirmar a hipótese e continuam sem saber se Santos já teve um baita vulcão como esse.

Se a gente não pode remontar a história da Nova Cintra a passado tão longínquo, resta a certeza que sua ocupação começou nos tempos de Martim Afonso de Souza. Segundo revelam os livros, João dos Passos integrava a esquadra colonizadora e logo se interessou em criar um núcleo agrícola no alto do morro. As condições para plantação não poderiam ser melhores: tinha um planalto, uma lagoa e até uma cachoeira.

Ela é uma das mais antigas moradoras e relembra os velhos tempos

As mudas de cana-de-açúcar vieram da Ilha da Madeira e se multiplicaram como mato sob os cuidados do agricultor. Como a iniciativa vingou, o próprio Martim Afonso de Souza se encarregou de construir um engenho de água, com capela dedicada a São Jorge. Trata-se do antigo Engenho dos Erasmos, instalado a Oeste do morro, cujas ruínas desaparecem sob os olhos de autoridades nada preocupadas em preservar o patrimônio histórico.

Depois de João dos Passos, outros portugueses chegaram, ocuparam as terras férteis e logo surgiram as primeiras chácaras. O povoado lembrava direitinho uma aldeia portuguesa e ficou conhecido por Tachinho.

Há quem diga que os portugueses batizaram o núcleo com esse nome por acharem que o lago parecia um imenso tacho de água. Mas, segundo outra versão, a denominação indígena tachy teria sido deturpada para tacho ou tachinho.

O historiador Francisco Martins dos Santos afirma que tachy significa resvaladio e escorregadio. Ao empregar esse termo, os índios certamente se referiam à difícil escalação do morro pelo lado do Jabaquara. Até hoje se constata que a escarpa é realmente muito escorregadia, o que confirma as hipóteses levantadas pelos estudiosos.

Sítios, caminhos cheios de lama e os bondinhos movidos com a força d'água - Apesar de ter sido chamado de Tacho ou Tachinho por muito tempo, o Morro da Nova Cintra recebeu também a denominação de Morro dos Prados. O nome atual foi dado por José Luís de Matos, que se instalou ali no final do século XIX e não conseguia desvincular o lugar de Sintra, cidade de Portugal com topografia semelhante.

O nome do português José Luís de Matos até hoje anda na boca dos moradores. Georgina de Freitas Alves, moradora há 70 anos, lembra dele como o homem que construiu uma poética capelinha branca, sob a invocação de São João Batista, que se tornou padroeiro do bairro. A capela fica justo onde está a igreja, no final da Avenida Santista, só que no alto de um morro "que parecia um ovo de galinha", no dizer de dona Georgina.

Ela conheceu o morro no tempo em que só havia sítios. A cana, a batata-doce e a mandioca cresciam que era uma beleza por aquele mundo de terra afora. Nada de ruas, muito menos avenidas: apenas caminhos, feito trilhas de ratos.

Ela é uma das mais antigas moradoras e relembra os velhos tempos
O que mais se assemelhava a progresso era o funicular hidráulico, que o pessoal chamava simplesmente de elevador. Pitoresco como ele só, funcionava desse jeito: dois carros, ligados entre si por cabos de aço, corriam sobre roldanas dispostas no eixo da linha graças à força da água. À medida que se enchia um determinado compartimento anexo, o trem ficava pesado e descia, arrastando consigo o outro, que vinha em sentido contrário. Quando aquele chegava ao sopé do morro, era esvaziado, de modo a ficar leve o suficiente para subir assim que o outro começava a descer com o peso da água.

O funicular ficava mais ou menos onde está hoje a Avenida Guilherme Russo e funcionou até 29 de maio de 1922, quando houve um acidente com mortos e feridos. Naquela fatídica data, rompeu-se um dos cabos de aço e o bondinho despencou morro abaixo, com 16 passageiros. Alguns se atiraram para fora, debaixo da gritaria e do desespero de todos.

Dona Georgina escapou desse acidente por muito pouco, pois subiu na última viagem que o trenzinho deu. Ela acabara de sair e retirar sua sacola de compras quando percebeu um grande tranco, que precedeu a tragédia. Até hoje ela conta essa história, com um jeitinho assustado, esfregando as mãos, como se tudo estivesse acontecendo novamente diante de seus olhos.

E se a vida dos moradores do morro já era dura, imagine-se depois, com aquelas intermináveis caminhadas pelas encostas de lama e barro. Mas os ilhéus eram gente de coragem, carregavam blocos de pedra nas costas para melhorar os carreirinhos, deixavam cair gotas de suor sobre a terra, que retribuía com boas colheitas.

Cada um tinha seu sitiozinho, só que ninguém era dono do chão que beneficiava. Daí as incertezas, as dúvidas, o medo de perder tantos anos de trabalho de uma hora para outra. Aquilo quase tudo pertencia à família Marinângele, e dona Georgina ainda se recorda do Maurício chegando na porta para cobrar os aluguéis.

Na vida de Georgina e Carmela, um testemunho de muito trabalho - Carmela Ferrone, que todos conhecem por Maria, nasceu na Nova Cintra há 76 anos e é tida como a moradora mais antiga. Filha de uma das poucas famílias de italianos, está lá para provar como eram difíceis aqueles tempos. A terra e as matas garantiam o sustento, só que exigiam esforço da família inteira.

Dona Maria parece estar vendo novamente o pai Miguel Ferrone sair cedo, de madrugada, para cortar madeira. Madeira que se transformava em carvão, vendido a preços quase irrisórios pelas ruas. A quentura do fogo, os tabuleiros cheios de carvão, as caminhadas dela e da mãe Manoela são coisas difíceis de se esquecer.

Andar com balaios na cabeça era a rotina também de dona Georgina. Menina ainda, descia o morro carregando consigo o peso de verduras, frutas e legumes. Batata-doce, mandioca, mangarito, banana, de tudo a terra dava um pouco. Ela seguia pelos lados da Rua João Guerra, percorria todo o Centro e sempre que passava na Braz Cubas tinha que aturar os gracejos dos operários que realizavam o calçamento da pista. "Mal empregado. Tão bonitinha com balaio na cabeça", diziam eles, e apesar da brincadeira ter seu lado elogioso não soava nada bem aos ouvidos de quem já estava cansada de andar.

Os moleques viviam atrás de dona Georgina, atraídos pelas frutas vistosas que carregava. "Gosto tanto de banana; gosto tanto de goiaba", comentavam com os olhinhos arregalados. A menina acabava cedendo aos apelos, porque afinal queria se ver livre do peso. Era assim: se não conseguia vender a carga, tinha que voltar com ela na cabeça.

Não é à toa que os antigos moradores da Nova Cintra não saem de lá por nada no mundo. Há toda uma relação de vida e sobrevivência, apego à terra e amor ao lugar onde conseguiram se fazer pessoas respeitadas.

João das Tábuas, Candoca e seus chapéus, Normando, Caetano, Geraldo Ferrone, Chico sem Palavra, João Mal Tempo, Chico de Sá, Cândido Matos, Palhares, Farias, velho Mandioca, Zé Russo. Alguns mortos, outros vivos, mas tudo gente que continua na lembrança de Georgina e Carmela. Quem não se lembra de dona Ana Padeiro, que garantia pão quente e broa da melhor qualidade, ou de José Plácido, conhecedor de tudo quanto é erva boa para remédio?

Ficaram na lembrança também a escolinha de Dona Afonsina, na hoje Avenida Santista, e as festas em homenagem a São João Batista. Festa bonita, organizada com todo trabalho pelos moradores, que ficavam horas e horas enfeitando tudo com bambu e preparando as chamadas lanternas japonesas. No dia, passavam de barco pela Lagoa da Saudade.

Velhos e saudosos tempos, apesar do trabalho e da vida dura.


A Lagoa da Saudade proporciona uma das mais belas paisagens do Morro da Nova Cintra:
melhor que contemplá-la, só mesmo pescar

Veja as partes [2], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros/Nova Cintra

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