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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CANAIS - BIBLIOTECA NM
Posicionamento da Prefeitura - 07


Clique na imagem para voltar ao índice do livroA polêmica acirrada entre o idealizador do sistema de canais para Santos e os vereadores santistas, que marcou o início do século XX, levou o jornalista Alberto Sousa a escrever o livro A Municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento, publicado em 1914 pelas Officinas Graphicas do Bureau Central, em Santos, em que polemiza com o engenheiro Saturnino de Brito.

O exemplar, com 257 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 40 a 49):

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A Municipalidade de Santos perante

a Comissão de Saneamento

Alberto Sousa

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PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
VI - Charlatanismo ou alienação?

Abre o sr. Saturnino de Brito o terceiro artigo da sua série com esta frase doutoral, algo pedantesca: "Doutrinamos no artigo anterior, repetindo embora o que já devera estar sabido e seguido na prática, a bem da cidade e dos créditos da sua operosa e honrada edilidade."

Efetivamente, s.s. doutrinou, mas não sobre a matéria em que tem relativamente competência especial, que ninguém lhe denega: - o sanitarismo. Invadindo, com descortês sem-cerimônia, o domínio do saber alheio, s.s. doutrinou sobre Direito Civil e sobre Direito Constitucional, sobre o instituto da desapropriação e sobre a autonomia dos municípios. Todo o seu doutrinamento foi um conjunto de disparates, que eternamente o cobrirão de vergonha, depois de terem-no exposto publicamente ao ridículo.

Após aquele período inicial, o ilustrado engenheiro-chefe enche vastamente longas colunas de prosa pesada e incorreta, para provar que, com o seu ofício de 26 de abril do ano passado, determinante do Parecer da Câmara, não pretendeu espezinhar a nossa digna Administração local, nem responsabilizá-la pelo que, em assuntos de exclusiva competência municipal, deixou ela de fazer, cedendo a agentes de outros poderes as suas atribuições a respeito.

Diz s.s. que a sua crítica a este propósito não se entendia com a Câmara de 1913, mas com as suas predecessoras. O Parecer, também, não cogitou de repelir o seu ataque, somente em relação àquela legislatura; ele foi até à defesa das próprias municipalidades do tempo do Império, que, na raivosa explosão de sua vaidade ferida, o sr. Saturnino atingira rancorosamente.

O Partido Municipal, embora julgue severamente muitas das administrações que o antecederam no poder, por tudo quanto não fizeram, e que lhes competia fazer, não pode deixar de insurgir-se contra a injustiça de se atacarem as Câmaras passadas, como o faz o sr. Saturnino de Brito, porque não realizaram custosas obras, que não eram de sua competência.

Mas, para se ter uma idéia clara do desatino de suas acusações, e da clamorosa deficiência de seu critério lógico, citemos, na íntegra, um pequeno trecho do seu ofício de 26 de abril, que constitui o quarto artigo da série. Lê-se lá o seguinte: "A Cidade de Santos, em 1905, tinha uma planta da cidade e um projeto parcial de expansão, em xadrez, tipo, aliás, hoje condenado. Teve um serviço de esgotos, condenado por todos, e um serviço de águas já melhorado pelo Governo do Estado. A Municipalidade, então endividada, não se julgava capaz de executar, e não executou, nenhum dos seguintes serviços básicos, todos eles da competência municipal:

"1º ...

"2º O cais do litoral, que ficou a cargo do Governo da União, formando-se o porto de Santos."

O trecho - veja-se bem! - refere-se ao ano de 1905, e é sobre a Câmara desse ano, então endividada, que o sr. Saturnino de Brito faz recair a sua indignação por que não executou as obras do cais, que já vinham sendo executadas desde anos atrás, e se achavam, em grande parte, entregues ao uso público!

De maneira que esta glória da Engenharia nacional, que, com o saneamento da cidade de Santos, fez a Europa curvar-se ante o Brasil - ignorava que, em 1905, as obras do cais do nosso porto estavam sendo feitas e exploradas em virtude de concessão dada pela Monarquia a particulares, ao tempo em que os municípios não tinham capacidade, nem sequer, para decretar seus orçamentos!

Ainda, porém, que tais obras só fossem objeto da obrigação dos poderes públicos, depois da implantação do novo regime, elas não eram, como erradamente doutrina o sr. engenheiro Brito, da competência municipal, mas sim, e exclusivamente, da competência da União. Cabendo a esta regular o comércio exterior e fiscalizar os mares territoriais e o serviço dos portos - cabe-lhe necessariamente prover à execução dos cais indispensáveis ao exercício daquelas prerrogativas.

Aberta a concorrência pública para execução das obras em determinado porto, a concessão pode ser dada, indiferentemente, a empresas particulares, a governos estaduais ou a câmaras municipais. A escolha se baseia somente nas vantagens oferecidas pelos concorrentes e na sua idoneidade. O Governo da União pode também executá-las administrativamente, mas só ele tem competência para fazê-las por si ou por concessionários.

Dar às municipalidades essa atribuição, é assinar um documento formal de ignorância completa a respeito da organização de seu país. Nas obras de reforma da Capital da República ficaram bem discriminadas as competências respectivas da União e do município nas obras a realizar-se, umas a cargo deste, e outras, daquele. A construção do cais - serviço federal - ficou sob a alçada do Governo da União.

A atribuição outorgada, pela Lei Orgânica do Estado, às Câmaras Municipais, de deliberar sobre construção, conservação e reparação dos cais, não se deve entender senão relativamente às muralhas construídas para resguardar a terra contra a invasão das ondas, como o longo cais da Avenida Beira-Mar, que foi feito, é conservado e reparado pela municipalidade do Distrito Federal.

Um cais que se precisasse fazer, por exemplo, ao longo da praia da Barra, para o exclusivo efeito de proteger as casas residenciais contra as grandes marés de certas épocas - seria, indubitavelmente, da alçada do município. Mas o cais destinado a fornecer, ao comércio universal, abrigo seguro para os seus navios e rápido embarque e desembarque às suas mercadorias e passageiros - comércio, navios e passageiros, sujeitos à pura jurisdição federal - é obra da atribuição do Governo da República. Repetir o contrário é reincidir no disparate.

Repisemos, entretanto, o que ele escreve: "O cais do litoral, que ficou a cargo do Governo da União, formando-se o porto de Santos". De maneira que, para o ilustradíssimo engenheiro, antes do cais, não havia porto! Este formou-se daquele! Não foi o cais que se superpôs ao porto preexistente; foi o porto que emergiu do cais! Entretanto, o cais é obra artificial da mão do homem, ao passo que o porto é um aspecto natural da terra. Mas, para a ciência do sr. Saturnino de Brito, a obra espontânea da natureza formou-se da obra artificial humana! É incrível que tenha adquirido tão alta fama de sábio quem, na sua série de artigos, só tem avançado, grotescamente, os mais abomináveis despropósitos.

Não deixaremos passar em silêncio a contradição que o trecho, trasladado acima integralmente, encerra entre as teorias que o sr. Saturnino de Brito prega e os atos que executa. Escreve s.s.: "A Cidade de Santos em 1905 tinha um projeto parcial de expansão, em xadrez, tipo, aliás, condenado". Pois bem: como se pode ver da sua planta, de que existem numerosos exemplares, avulta nela "a preocupação do xadrez, nas longas ruas retas, intermináveis quase", segundo a judiciosa observação do dr. Silva Telles, no seu excelente Parecer de 23 de maio, publicado n'A Tribuna. Não é evidente a contradição entre as idéias que prega e os atos que pratica? Pois Augusto Comte, mestre do sr. Saturnino de Brito, estabeleceu que a falta de concordância entre os pensamentos e os atos - é o característico flagrante da alienação mental.

Depois de suas malogradas incursões em campo alheio, resolve, enfim, o sr. Saturnino de Brito abordar a resposta a alguns trechos do Parecer da Câmara. Ocupa-se, primeiro, do plano desta, que não existe, que ninguém conhece, porque "não têm o caráter de plano de melhoramentos de uma cidade os planos isolados que saem esporadicamente da cabeça para o papel e do papel para o terreno".

O autorizado especialista exige energicamente um plano geral, e como a Municipalidade não fizesse nenhum plano nestas condições, s.s. fez o seu e quer que ele seja aprovado como está, salvo pequenas modificações de detalhe. Ora, o dr. Silva Telles citou, no seu bem elaborado Parecer técnico, mais de uma autoridade na matéria, em contrário à opinião do seu colega da Comissão do Saneamento.

Mulford Robinson, por exemplo, acha que o melhor planejador não pode prever todas as contingências nem pretender ser infalível. Camillo Sitte, em cujas opiniões o sr. Saturnino se louva, recomendando-as à Câmara de Santos, mas agindo em oposição a elas, entende que se "não devem prever ao princípio senão as artérias principais (tendo em vista, tanto quanto possível, as vias existentes). A divisão subseqüente do terreno pode ser, segundo as necessidades, empreendida, a breve prazo, pelas administrações ou abandonada à atividade particular".

Stüben pensa que "é inútil e mesmo nocivo estabelecer de antemão a totalidade da rede das ruas nas zonas compreendidas entre as linhas principais do projeto de expansão, pois podem criar-se embaraços a um desenvolvimento, cujas necessidades se não conhecem. Assim, por exemplo, pela divisão prévia, ao acaso, do terreno, em quarteirões, pode impedir-se a criação de grandes propriedades, ou mesmo opor-se a uma vantajosa divisão por iniciativa particular".

As opiniões citadas acima são de autoridades reconhecidas numa especialidade em que o sr. Saturnino de Brito apenas tateia, anda às apalpadelas - a construção de cidades modernas. Para tais sumidades científicas, um plano geral é um erro grave, não só porque os planejadores não podem prever todas as contingências futuras, como também porque um plano sistemático prévio pode impedir a expansão natural da cidade, sob o influxo da iniciativa particular.

Entretanto, s.s. não só quer a adoção prévia do seu plano geral, como a exige sem alterações quaisquer, salvo pequenos detalhes que podem, ou não, ser aceitos, ao grado de sua sapiência, o que é verdadeiramente uma estultice.

Ao traçado da rede de esgotos, s.s., na sua obsessão sanitarista, quer sacrificar tudo: os direitos privados mais respeitáveis, a comodidade pública, a beleza da cidade, o seu futuro, as suas economias. Ora, para exigir tão relevante sacrifício, era preciso, ao menos, que a sua planta obedecesse a uma orientação segura a respeito de todos os aspectos futuros da cidade que s.s. pretende remodelar.

Como salientou o dr. Silva Telles no seu brilhante Parecer, o sr. Saturnino de Brito planejou a reforma de Santos sem preestabelecer quais os edifícios públicos, a natureza das habitações, os quartéis, as escolas, as casas operárias, a construir. Em uma palavra, a sua planta não determina a diretriz em que deve se operar a evolução da cidade.

Um dos autores que s.s. cita de preferência, conforme já assinalamos acima, é Camillo Sitte. No seu célebre ofício de 30 de dezembro de 1910, acompanhando a planta, lê-se: "Consulte-se a obra de Camillo Sitte - A arte de construir as cidades, e proveitosos ensinamentos colherão os que hajam de fazer projetos e os faladores que se comprazem de criticar projetos alheios". Ponhamos de parte os solecismos imperdoáveis em um homem tão culto e tão gabado, e reportemo-nos ao fundo daquele trecho.

O dr. Silva Telles, compulsando a obra recomendada pelo sr. Saturnino, verificou que as opiniões de Camillo Sitte sobre construção de cidades são estas, em resumo:

1º) O plano não deve prever, ao princípio, senão as artérias principais (tendo-se em conta, tanto quanto possível, as vias existentes). A divisão subseqüente do terreno pode ser, segundo as necessidades, empreendida, a breve prazo, pelas administrações ou abandonada à atividade particular.

2º) As plantas em xadrez são condenáveis, assim como o abuso da linha reta e das ruas muito longas.

3º) As praças triangulares produzem geralmente mau efeito.

4º) Não se pode começar o plano de distribuição de um bairro, se se é guiado por preocupações de arte, senão depois de se ter ideado o que ele virá a ser, que edifícios públicos e que praças conterá. É preciso, pois, fazer uma espécie de cálculo de probabilidades antes de meter mãos à obra. A primeira tarefa dos concorrentes seria, pois, prever os lugares convenientes aos edifícios públicos necessários e grupá-los com arte.

Isto posto, e examinando a planta do sr. Saturnino de Brito, vejamos como s.s. seguiu os conselhos de Camillo Sitte, que tanto recomenda aos que criticam os projetos alheios:

1º) Estabeleceu um plano geral, com os arruamentos futuros, prevendo a expansão da cidade, e declarou dogmaticamente que a necessidade dos planos gerais se impõe. Em oposição ao pensamento de Camillo Sitte retalhou, desde já, toda a cidade, quando a divisão do terreno, salvo a previsão das artérias principais, pode ser, segundo as necessidades, empreendida pelas administrações ou pela iniciativa privada.

2º) Projetou a sua planta em xadrez - sistema condenado por Sitte - e encheu-a de "longas linhas retas, quase intermináveis".

3º) Distribuiu prodigamente por elas jardinetes triangulares que, segundo Sitte, produzem tão mau efeito.

4º) Planejou a construção da Santos futura, em flagrante desacordo com os ensinamentos técnicos do especialista que cita e recomenda - pois não previu os lugares convenientes aos edifícios públicos e às praças e à natureza deles.

Ora, a conclusão positiva, lógica e formidável a tirar deste exame, aliás superficial e sintético, é a seguinte: o sr. Saturnino de Brito, especialista em obras sanitárias e não em construção de cidades, querendo apoiar, numa respeitável autoridade estrangeira, o plano que ofereceu à Câmara de Santos, citou a obra de Camillo Sitte sem a ter lido, citou-a de oitiva ou por tê-la deparado nalgum catálogo. A isto chama-se, pura e simplesmente, - charlatanismo.

Mas, se s.s. leu a obra, recomendou-a calorosamente aos projetadores de cidades - e elaborou um plano contrário, em todos os detalhes, às regras que ela aconselha e preconiza - então, mais uma vez, se verifica uma violenta contradição entre as suas opiniões e os seus atos. A esta incoerência - repetimo-lo - Augusto Comte chamou alienação.

Imagem: reprodução parcial da obra de Alberto Sousa (página 44)