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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CANAIS
A guerra entre Saturnino e a Câmara santista

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A polêmica acirrada entre o idealizador do sistema de canais para Santos e os vereadores santistas, que marcou o início do século XX, foi também abordada pelo jornalista Alessandro Atanes em sua coluna Porto Literário, edições de 12, 19 e 26 de junho de 2006, para o site PortoGente:
 


A planta acima saiu no Índice Comercial e Industrial de Santos, em 1921, e mostra como o traçado da Avenida Afonso Pena acompanha o canal do estuário
Imagem reproduzida do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - PDDI-76
Prefeitura Municipal de Santos/Prodesan, 1976, e também publicada com a matéria

Polêmica - Estado X cidade
A peleja entre Saturnino de Brito e a Câmara Municipal de Santos
Texto publicado em 12 de Junho de 2006 às 21h53

Alessandro Atanes (*)

Em 25 de abril de 1913, o engenheiro sanitarista carioca Francisco Saturnino Rodrigues de Brito inicia uma disputa política e intelectual com a Câmara Municipal de Santos. Nesta data ele encaminha um ofício à câmara em que exige a aprovação da Planta de Santos, projeto elaborado pelo urbanista e apresentado ao município também por ofício, em 30 de dezembro de 1910.

As diferenças entre os poderes local e estadual são históricas.

I

Saturnino de Brito era o encarregado em Santos da Comissão de Saneamento, órgão estadual organizado para conter as epidemias do final do século XX. Seu trabalho era iniciar a construção de nove canais de drenagem da cidade, iniciada em 1907 e que seguiria por mais duas décadas. Em 1910, apenas os canais 1 e 2 estavam prontos, substituindo antigos rios e córregos que se encharcavam com a chuva ou com as marés. Mas as epidemias já haviam se reduzido e o café trazia mais e mais recursos para a cidade.

É quando apresenta a planta, uma contribuição do seu intelecto à organização urbana. Mas a planta de Saturnino não está só no papel. Ele desenha o próprio solo: com o poder de intervenção da comissão estadual, o engenheiro marca a ferro e cimento os terrenos (ocupados ou não) com os traços da nova cidade para que os representantes do poder municipal pudessem perceber, no chão mesmo, o projeto.

A resposta da Câmara é encaminhada em 13 de janeiro de 1911 ao chefe interino da Comissão de Saneamento, Miguel Francisco Presgreave. A assinatura é do vice-presidente da Câmara, em exercício, Dr. Moura Ribeiro, que acusa e agradece o recebimento da oferta da planta. Ele é só elogios:

"(A planta é um) trabalho em que, mais uma vez, é posta em evidência a capacidade profissional do ilustre engenheiro Snr. Dr. Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, glória da engenharia brasileira, tão brilhantemente secundado pelos competentes engenheiros que o auxiliam nos importantes trabalhos de saneamento de Santos."

Além de marcar os terrenos, Saturnino também pedira a inclusão nas Posturas municipais de punição dos particulares que "arrancarem ou modificarem os marcos de locação das ruas, sendo os proprietários dos terrenos os responsáveis por eles".

Saturnino conhecia a vigente planta, aprovada pela câmara em 1905. O desenho é de um quadriculado sem fim do centro antigo em direção à barra e à Ponta da Praia. Todas as ruas, avenidas e quadras com as mesmas dimensões. Só que naquele momento, a ocupação do trecho Leste da ilha de São Vicente ia do Centro e do Paquetá (bairro colonial e imperial, respectivamente) até o Macuco e a Vila Matias (bairros de trabalhadores, em franca expansão) e se esticava pelas avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias até a barra, cuja orla era ocupada também por casarões da burguesia. Pouco mais havia e o quadriculado monótono nunca se implantou.

A grande novidade da planta de Saturnino é a Avenida Afonso Pena, que corta a cidade de Leste a Oeste, cortando ao meio a orientação Norte-Sul da expansão em direção à orla. A avenida e os jardins da praia são desenhados como faixas de jardins e de concentração de área verde. Na planta, os jardins e faixas da Avenida Afonso Pena têm a mesma extensão do que os jardins e faixas de rolagem da avenida da orla. Com o traçado diagonal acompanhando a curva do canal do estuário, a via é até hoje o principal corredor de comunicação entre a Encruzilhada e o cais (se contarmos sua continuidade, a Avenida Guilherme Álvaro, o corredor vai em direção oposta da Encruzilhada até o sopé do Morro do José Menino, riscando a Zona Leste de ponta a ponta).

II

Em 1913, mais quatro canais haviam sido entregues (o Canal 4 e três ramais do canal 1). Depois de uma intervenção do poder municipal que contrariou o planejamento de sua planta, Saturnino volta a se manifestar. Em outro ofício, de 25 de abril, pede atenção da câmara à sua exposição e, falando em bom português, desce a madeira em seus integrantes, começando pela sua (deles) suposta ignorância:

"Ninguém (...) pode desconhecer a necessidade iniludível e insofismável de serem planejados e executados todos os serviços municipais, seguindo uma orientação que estabeleça harmonia de todos os elementos e que preveja e favoreça o desenvolvimento da cidade".

O engenheiro diz que são condenados os projetos de expansão em xadrez e enumera razões porque a municipalidade deveria acatar e aprovar sua sugestão de planta, e traça uma série de serviços realizados pelos serviços estaduais no município para comprovar a inoperância do poder municipal. Para ele, os serviços de infra-estrutura do Estado (rede de esgotos, redes de drenagem, reformas de galerias, abastecimento de água) davam à comissão condições técnicas para impor ao município o planejamento urbano (em artigos de jornais ele pediria até intervenção). O que a comissão já executou no passado é a garantia da qualidade do projeto futuro:

"A comissão elaborou o plano e fez os serviços que a municipalidade não cogitou de fazer ou não pôde fazer; cumpre-lhe reconhecer o benefício do plano geral, e se subordinar às circunstâncias decorrentes do passado e que permanecem no presente".

Mais à frente, a coisa fica mais pesada, tem até frase entre parêntesis:

"A planta feita (porque era necessário fazer uma, e disto não cuidou a municipalidade), precisa ser adotada de fato: ela deve guiar os trabalhos municipais, e não pode ser alterada prejudicando-se o plano de esgotos, executada (sic) e a executar".

Ele ainda pede urgência porque ficaria meses fora da cidade (Saturnino também trabalhou em outra cidades brasileiras).

III

Em 17 de junho, o diretor de Obras do município, dr. Dinamerico Rangel Junior, encaminha ofício e redige um informe à prefeitura em que avalia os termos empregados pelo engenheiro do Estado. Fala de conceitos injustos de Saturnino, que queria forçar a aprovação "sem o necessário estudo, que deve ser pensado, criterioso e sensato".

Embora reconheça a competência e o valor técnico e profissional do autor do desenho e da necessidade de uma reforma da planta corrente. Admite que os pontos gerais da planta não comportam dúvidas ou reformas, porém aponta que não cabe à câmara aprovar "de afogadilho" uma nova planta geral.

Diz que os serviços executados pelo Estado na cidade ou são de sua própria competência ou são pagos em favores ao Estado (um exemplo atual é a gasolina que as prefeituras da Baixada Santista pagam para os carros da polícia rodarem em seus municípios). Reclama que a comissão estadual não dá notícia à câmara de suas atividades e que a municipalidade "ignora qual seja o critério da comissão quanto aos futuros mais coletores primários ou secundários, pois que de tal não teve ainda ciência por parte do Saneamento". Ele finaliza o documento considerando que o exame mais atento será de "real utilidade" aos interesses do município.

Em rápida resposta, do dia 23, o prefeito Belmiro Ribeiro diz estranhar os termos e a intenção de Saturnino de Brito, "ilustre, homem educado e representante do governo do estado". Concorda com o diretor de obras quanto à "censura descabida", ainda que admita que o poder público é sujeito à crítica e à censura. E o prefeito traz para a discussão dois novos problemas: a falta de recursos para a realização das modificações exigidas pela planta e a especulação imobiliária que se iniciou em torno dos terrenos em torno das avenidas e jardins, o que fica para a próxima semana.

Referências:

O site do Centenário dos canais de Santos presta um valiosíssimo serviço aos que gostam da história da cidade. Na seção E-Book, o internauta pode ler ou baixar as seguintes obras: Planta de Santos, de Saturnino de Brito, publicada em 1915, com a transcrição dos ofícios em relação à planta, inclusive o do prefeito e do diretor de Obras; e O Município de Santos perante a Comissão de Saneamento, de Alberto Sousa, contratado pela câmara para redigir a argumentação da câmara contra Saturnino de Brito. As obras estão disponíveis em capítulos, digitalizados periodicamente.

Na seção História, a professora Dra. Wilma Therezinha Fernandes de Andrade conta o desenvolvimento dos canais de Santos e mostra um pouco da polêmica entre os dois poderes. O site também traz fotos e cartões postais com imagens antigas dos canais, além de crônicas e depoimentos de moradores sobre os canais de Santos.

Os volumes em papel da Planta de Santos trazem também os desenhos da planta proposta e da corrente, além de artigos de jornais publicados em A Tribuna e Diário de Santos contra ou a favor na pendenga. Um deles está na Biblioteca da Faculdade de Arquitetura de Santos e só pode ser consultado com aprovação da direção de bibliotecas (a obra é rara, ainda que esteja em bom estado).


MAPA 2 - Planta de Santos de 1896, defendida pela Câmara Municipal
(clique na imagem para detalhá-la)


Polêmica
A Câmara contra-ataca
Texto atualizado em 20 de Junho de 2006 às 05h55

Alessandro Atanes (*)

Porto Literário iniciou na semana passada a apresentação da disputa entre Saturnino de Brito, engenheiro da Comissão Estadual de Saneamento, e a câmara municipal, poder que governava a cidade naqueles idos de 1910. A comissão foi responsável pela construção dos canais 1 a 6 e mais três ramais do Canal 1 (1907-1927).

Falou-se da oferta da planta e da mensagem de recebimento por parte da câmara. Também surgiu no assunto o engenheiro ter exigido (em ofício protocolado em 1913) a aprovação imediata da sugestão; o motivo da censura foi uma intervenção realizada pela prefeitura na Vila Ablas que contrariava o plano do engenheiro da comissão estadual. Terminou-se com o prefeito Belmiro Ribeiro surpreso com a reação enérgica de Saturnino de Brito.

I

Em 1913 a câmara governava o município e a prefeitura, braço executivo, era chefiada por um dos integrantes da casa. Belmiro Ribeiro de Moraes e Silva foi o prefeito durante os quatro anos de legislatura (1911-1914) e já havia sido vice-prefeito durante o último ano do mandato anterior (1908-1911), quando o Partido Municipal assumiu o governo. No período seguinte, ele voltaria à câmara como suplente e assumiria no último ano com a morte de Oswaldo Cochrane. Entre 1917 e 1920 voltou à prefeitura, participou posteriormente de mais um mandato e, entre 1929 e 1930, chegou à presidência da casa, mandato interrompido pela revolução de 30.

Mas quero me afastar da seara da ciência política. O motivo da apresentação dos cargos de Belmiro Ribeiro é para demonstrar a força política que detinha. Sua reação, de estranhamento à "censura descabida" por parte de um homem "ilustre, educado e representante do governo do estado", revela também o poder político do engenheiro que construiu os canais.

Funcionários municipais escrevem sobre as obras executados pelo município para equilibrar as críticas, mas Saturnino de Brito não recua: escreve artigos em jornais reclamando da má vontade da câmara em aprovar sua planta e de apenas atender "conveniências" de amigos. Em outro momento, pede a intervenção do Estado no município, argumentando que a cidade não teve condições – técnicas e financeiras – de construir sozinha as obras de drenagem e impedir a continuidade da calamidade das epidemias.

Aí a câmara passa a rebater com mais força e contrata um profissional para preparar a resposta, o jornalista e historiador Alberto de Souza que redige o libelo O município de Santos perante e Comissão de Saneamento, publicado em 1914 com um parecer jurídico e outro técnico como anexos. O jornalista-historiador entra pela porta retórica aberta pela expressão "censura descabida" e parte para cima de Saturnino de Brito, chamando-o de arrogante e vaidoso e considera que as "glórias sanitárias" do engenheiro encheram-no de "ridícula soberba". Diz que a capacidade técnica de Saturnino de Brito não lhe dava "parcela alguma de autoridade moral para emitir sobre tão conspícuos cidadãos santistas juízos deprimentes e opiniões desairosas" e que sua reação demonstrava um "violenta impulso de desequilíbrio cerebral, determinado pela hipertrofia do órgão do orgulho".

II

Por outro flanco, Alberto de Souza busca também alfinetar Saturnino de Brito em sua técnica e fala sobre “erros palmares de seu malogrado projeto”, sem, contudo, apontá-los. O autor, no meio do texto, até abandona a terceira pessoa para se referir diretamente ao engenheiro, passando a tratá-lo por Sua senhoria:

"O Sr Saturnino de Brito sonha com o Município de Santos escravizado aos caprichos de sua Comissão e ao arbítrio do Governo Estadual – sem a prévia reforma da Constituição da República; como sonhou com a gigantesca e maravilhosa reforma da cidade – sem inquirir previamente onde encontrar dinheiro bastante para essa obra caríssima. S. s. é um sonhador, é um delirante, é um vigilâmbulo, sonha acordado, vive sob a influência auto-sugestiva das desvairadas inspirações de sua ardente imaginação, estimulada pelo seu orgulho".

Para o redator, Saturnino de Brito era especialista em obras sanitárias e não em construção de cidades.

Em outro artigo, o engenheiro da comissão estadual declara serem os jornalistas inimigos dos positivistas – categoria de pensadores em que se enquadra – devido a uma frase de Augusto Comte – um dos pensadores da doutrina humano-científica do final do século XIX – contra os profissionais da escrita.

Alberto de Souza ataca Comte em sua privada e arremata, visando atingir Saturnino de Brito:

"E todavia os positivistas são tão severos, tão rigorosos e tão intolerantes para com as naturezas que caem como seu chefe, sem possuírem, contudo, os predicados deste!".

III

Os ataques de parte a parte são recorrentes, mas o fato é que a planta de Saturnino acabou orientando o crescimento de Santos do Macuco, bairro portuário, em direção à Ponta da Praia, com a colocação no papel da Afonso Pena, avenida diagonal em relação ao eixo de crescimento anterior, formado pelas avenidas Conselheiro Nébias e Ana Costa.

Referências:

Francisco Martins dos Santos. História de Santos. 1532-1936. Volume I. São Paulo: Empresa Gráfica dos Tribunais da Revista dos Tribunais, 1937.

E repito a apresentação do site (...)


Estado x Cidade
Para além da polêmica entre Saturnino de Brito e a Câmara de Santos
Texto publicado em 27 de Junho de 2006 às 01h18

Alessandro Atanes (*)

Nas duas últimas semanas Porto Literário explorou alguns temas da polêmica travada entre o engenheiro Saturnino de Brito, responsável pela construção dos canais de drenagem de Santos, e a Câmara Municipal, acerca da proposta de uma planta para a cidade desenhada pelo engenheiro da Comissão Estadual de Saneamento. A peleja reuniu desde desqualificações pessoais até embates sobre atribuições e responsabilidades do Estado e do Município em relação às obras de saneamento. Hoje vamos ver o contexto em que a coisa se desenrolou.

I

Tudo começa lá atrás, em 1891, com a promulgação da primeira Constituição da República, em torno da qual divergiam sobre o modelo de organização dos serviços sanitários os médicos Azevedo Sodré, carioca, e Nina Rodrigues, baiano. O primeiro era favorável à ação local dos Estados, enquanto o segundo defendia a centralização dos serviços no governo central. Assim como Brito e o poder municipal, os dois influentes médicos (ambos eram professores e pesquisadores) defendiam seus pontos de vista em artigos de jornais, embora pareça que em nível mais civilizado que o usado pelos expoentes da contenda local.

Azevedo considerava que o poder estadual conhecia a realidade sanitária de sua área de atuação e teria melhor desempenho no serviço. Rodrigues temia que a descentralização sujeitaria o serviço sanitário a pressões políticas e grupos de interesse. Acreditava ainda que os estados e municípios eram desprovidos de recursos e quadros técnicos.

Apenas em 1918, quando Rodrigues já havia morrido, a coisa se resolve quando Azevedo Sodré, então deputado federal, revê suas posições e apresenta uma proposta de centralização dos serviços sanitários, no que seguia "parte considerável da elite médica".

Em A Era do Saneamento, o cientista político Gilberto Hochman descreve como a organização do sistema de saúde no Brasil, principalmente as políticas de saúde e saneamento faziam parte do processo de construção do Estado Nacional nas duas primeiras décadas do século XX. Embora a obra seja focada na instauração de políticas e obras de saneamento no interior do país, a questão do porto de Santos não passa ao largo de sua análise:

"Santos era o centro do comércio exterior do café e a cidade de São Paulo despontava como centro do poder político-econômico da economia agro-exportadora. A insalubridade de ambas ameaçava e afetava seriamente toda uma infra-estrutura que sustentava as bases da economia paulistas e suas relações com o exterior".

Essa situação fez com que o serviço sanitário estadual se desenvolvesse de forma autônoma, mesmo que interdependente, do poder central. Era interesse da elite cafeeira e de seus representantes no legislativo estadual que o próprio estado fosse capaz de enfrentar a questão sanitária como forma de manter a independência. Foi Vicente de Carvalho que organizou o serviço sanitário estadual, ao assumir em 1892 a Secretaria do Interior do Primeiro Governo Constitucional do Estado. Criou o Hospital de Isolamento do Instituto Bacteriológico e reuniu cientistas estrangeiros para o programa sanitário implantado em Santos.

Foi essa estrutura que levou à formação da Comissão de Saneamento do Estado que, chefiada por Saturnino de Brito, realizou a construção dos canais de drenagem em Santos. Poderia arriscar que foi a experiência acumulada dos técnicos do Estado, aliada ao sucesso dos canais, que permitiu ao engenheiro condições políticas para exigir que a Câmara aprovasse sua proposta de planta, uma sugestão, já que seu trabalho era cuidar do saneamento, não do urbanismo, apesar da ligação óbvia entre as duas categorias de desenvolvimento da cidade. 

Voltemos ao que diz Hochman: "A experiência da criação da autoridade pública no âmbito estadual representava, em São Paulo, capacidade de agir coercitivamente sobre a população e intervir no território das elites locais, mantendo-se independente do Governo federal. A difícil convivência entre autonomia municipal e dependência financeira e, portanto, política, indicava, prematuramente, que a competência para lidar com saúde pública estaria consolidada nas mãos da chefia estadual".

O autor ainda acrescenta que a constituição estadual dava ao congresso estadual competência para legislar sobre saúde pública e nenhuma menção fazia às competências dos municípios neste assunto. Em 1896, uma reforma legislativa aumentava ainda mais o poder dos serviços sanitários estaduais, o que volta a ocorrer em 1906, o que resultou em uma concentração ainda maior de poder. Só em 1911 os municípios paulistas ganhariam a responsabilidade pela vacinação, manutenção dos hospitais de isolamento e a geração de estatísticas, além do serviço de inspeções em fábricas, mas isso só aconteceu devido à criação de um código sanitário em que o Estado estabelecia as regras.

II

Outra questão da polêmica de Santos foi a crítica que a Câmara faz ao autoritarismo de Saturnino de Brito, ao exigir a aprovação de seu projeto e por chegar a pedir em artigos de jornal a intervenção do poder estadual na cidade. Brito era vinculado ao pensamento positivista que dava os moldes de boa parte do pensamento científico e social do final do século XIX em um Brasil que passava, no dizer de alguns críticos, por uma modernização conservadora (apesar do fim da escravidão e da chegada da República, os anseios de democratização da vida social não foram alcançados - outros autores utilizam ainda a expressão "modernização sem modernidade"), em que as oligarquias mantinham a hegemonia política e econômica.

Parte da intelectualidade do período, a chamada Geração de 70, formada por nomes como Euclides da Cunha (engenheiro, além de escritor) e Lima Barreto, foi um desses grupos que se frustraram com o crescente autoritarismo do governo de Floriano Peixoto. Em suas aulas, o professor Elias Thomé Saliba conta como José do Patrocínio foi um paradigma do intelectual brasileiro no período Guerra do Paraguai-abolição-república. Filho de ex-escravos e jornalista engajado, ele acaba sendo exilado por Floriano Peixoto. Em 1902, depois de ter voltado da Amazônia, decide construir um dirigível, que nunca deixa o solo – metáfora da própria participação dos intelectuais na vida política nacional.

Esse momento foi descrito desta forma pelo historiador Nicolau Sevcenko:
"Dispondo de um indiscutível domínio sobre o aparato governamental desde 1894, esses estadistas desenvolveriam um singular processo de transformação do Estado num instrumento efetivo para a constituição de uma ordem liberal no país. Forma ousada de inspirar um arejamento do ambiente nacional de cima para baixo, já que o inverso não se revelara possível. Forma ousada e conspurcada pela própria natureza da sua origem".

III

Nesse ambiente social em que intelectuais não tinham voz ativa (quanto mais a população?), o discurso da ciência, positivista ou naturalista, forneceria a chave para a construção do país. A imagem é da socióloga e historiadora Simone Petraglia Kropf: "Erigia-se a crença ilimitada no poder da ciência como chave para a promoção de um saber objetivo e eficaz sobre a realidade, um conhecimento tido como infalível no sentido de apontar os caminhos seguros para o bem-estar moral e material da sociedade".

Ao lado da intervenção médica, o trabalho da engenharia desenvolvia também um papel de estruturação da nação, como louvou em 1888 o engenheiro Antônio Paula de Freitas, em solenidade referente aos 25 anos de criação do Instituto Politécnico Brasileiro: "Lançai vossas vistas sobre a extensa região do Brasil: comparai o que foi, o que é atualmente, ou tende a sê-lo; encontrareis por toda a parte o dedo do engenheiro, e reconhecereis que temos ganho não somente na civilização como no progresso nacional, e que toda essa evolução, única crescente e realmente eficaz, é fruto da engenharia nacional".

É o clima que permite às autoridades, por exemplo, o poder de intervenção no ambiente privado da população, como ocorreu com a imposição da obrigatoriedade das campanhas de vacinação. A Revolta da Vacina, por exemplo, de 1905, não era só um resquício de atraso por parte da população, foi uma reação a uma série de medidas autoritárias (desapropriações, exílios) que estourou quando os batalhões de sanitaristas de Oswaldo Cruz começaram a entrar nas casas das pessoas para lhes aplicar obrigatoriamente uma dose de vacina.

De novo, Sevcenko: "Foi, aliás, esse mesmo temor de uma manipulação arbitrária, que se impunha pela pretendida autoridade científica, sem qualquer consideração pela humanidade do paciente, que motivou a rebelião popular na violenta Revolta da Vacina".

Voltando à nossa polêmica, Saturnino de Brito não era um louco interventor, seguia a cultura política do Estado em relação às questões sanitárias e, assim como os batalhões de sanitaristas nas residências, não viu obstáculos em marcar com ferro e cimento os terrenos públicos ou privados por onde passariam as ruas e avenidas que havia projetado em sua planta.

Referências:

Gilberto Hochman. A Era do Saneamento. São Paulo: Editora Hucitec-ANPOCS, 1998.

Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2ª Edição, revista e ampliada. São Paulo. Companhia das Letras, 2003.

Simone Petraglia Kropf. O saber para prever, a fim de prover – a engenharia de um Brasil moderno. In: Micael M. Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira (organizadores). A invenção do Brasil moderno. Medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Elias Thomé Saliba. Nacionalismo e Produção Cultural no Brasil: Dilemas Metodológicos e Perspectivas de Pesquisa. Curso do mestrado em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1º Semestre de 2005.

(*) Alessandro Atanes é jornalista, servidor público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo.

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