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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PIONEIROS DO AR
Saint-Exupéry: desfeito o mistério

O famoso aviador francês Antoine de Saint-Exupéry, que também se celebrizou pela obra "O Pequeno Príncipe" (declarada leitura de cabeceira de onze em cada dez candidatas a rainha de algum concurso de beleza...) nunca se acidentou no Brasil, muito menos na Baixada Santista, nem foi seu aparelho o que pousou em Ubatuba em 1933 devido a uma pane ou ao nevoeiro, abreviando uma viagem que tinha como escala seguinte a pista de pouso da Latecóere (depois Air France), em Praia Grande/SP.

A história que deu origem a uma lenda na região litorânea paulista foi desvendada em reportagem de Edmar Pereira, publicada no Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde/OESP em São Paulo, 11 de janeiro de 1986, com o texto e as imagens a seguir reproduzidos:

O sr. Lindolfo (de chapéu e paletó branco, último à direita) observa o avião que fez um pouso forçado em Ubatuba

O sr. Lindolfo (de chapéu e paletó branco, último à direita)
observa o avião que fez um pouso forçado em Ubatuba
Foto publicada com a matéria

SAINT-EXUPÉRY
A incrível história de sua passagem por Ubatuba

Uma viagem imaginária

Reportagem de Edmar Pereira

Uma tarde luminosa do mês de junho de 1933 em Ubatuba, época de tanto peixe que as tainhas podiam ser apanhadas na praia, apenas com as mãos. Época em que os parcos 800 habitantes da cidade viviam ainda o espanto do seu primeiro contato com um automóvel, ocorrido poucas semanas antes. Mas nessa tarde o espanto seria maior: sem qualquer aviso ou preparação na praia de Itaguá, centro da cidade - cujas árvores haviam sido cortadas exatamente para uma emergência desse tipo na Revolução de 32, mas nunca sucedida -, desceu um avião. Um teco-teco da Cia. Gènèrale Aero-Postale, que fazia a linha aérea regular entre França e Argentina. Nos 11 mil quilômetros do percurso passava pela costa atlântica brasileira e teria descido em Santos, na base aérea da Praia Grande, não fosse por uma panne no motor.

O avião era pilotado por um certo Antoine, que naturalmente não falava português, assim como os de Ubatuba não sabiam francês. No máximo um "vous voulez quelque chose?" dos rudimentos ginasianos, recordado oportunamente por Washington Oliveira, o Filinho, que mais tarde ocuparia duas vezes a prefeitura da cidade e se tornaria seu principal historiador.

52 anos depois, o sr. Lindolfo aponta o local do pouso, hoje transformado em um jardim, em Ubatuba

52 anos depois, o sr. Lindolfo aponta o local do pouso,
hoje transformado em um jardim, em Ubatuba
Foto publicada com a matéria

Filinho foi também, sem qualquer má intenção, uma espécie de cultor e divulgador de um mito que Ubatuba teve como verdade durante 52 anos. O de que, após a visita do alemão Hans Staden mais de quatro séculos antes, a cidade recebera outro visitante internacionalmente célebre. Antoine foi imediatamente dado como Antoine de Saint-Exupéry, o famoso aviador e autor de O Pequeno Príncipe, livro que provocaria erupções de sensibilidade banal em vários cantos do mundo, incluindo as passarelas por onde desfilavam as candidatas a miss Brasil - embora nessa área venha nos últimos anos perdendo terreno para Feliz Ano Velho, de Marcelo Paiva.

Antoine, como esclarece hoje, após mais de 20 anos de pesquisa o jornalista, museólogo e pesquisador de cultura popular Luiz Ernesto Kawall, 58 anos de idade, não era um prenome. Tratava-se do piloto Léon Antoine, também um dos grandes ases da aviação francesa em todos os tempos, com mais de 21 mil horas de vôo, recordista mundial de vôo livre com um tempo de oito horas e 20 minutos, detentor da Legião de Honra e hoje em dia, aos 84 anos, aposentado e vivendo num bonito sítio em Javari, no Estado do Rio. Mas disso só se sabe agora. Tanto no folclore quanto na história de Ubatuba, o visitante que caiu do céu naquela tarde de 1933 acompanhado de um telegrafista chamado Chauchat, era mesmo Saint-Exupéry, embora em nenhum de seus livros se encontre uma única palavra sobre tal aventura.

Kawall: fim do mito
Foto publicada com a matéria
Kawall: fim do mitoKawall começou sua pesquisa a partir de uma notícia publicada em 9 de novembro de 1964. "Essa história foi criada como um conto de fadas. Em 1933, Ubatuba, isolada no Litoral Norte, onde só se chegava por mar ou então pelo céu - e aí só por acidente - estava reduzida a 110 casas, todas mais ou menos em ruínas, e em dez anos poderia acabar. Matava-se peixe a pau e apanhava-se milhares de tainhas cujos cardumes vinham dar à praia e eram enterrados como sobras. Quando o aviãozinho desceu, um grupo logo correu ao Itaguá e cercou a nave. Hélice parada, os tripulantes desceram, foram guiados por um agitado cortejo popular até a casa do radiotelegrafista da Aero-Postale, Gilberto Nogueira Brandão. Léon Antoine e Chauchat queriam ficar hospedados em sua casa, mas o telegrafista não tinha acomodação suficiente e isto chegou até a causar um pequeno desentendimento".

A partir daí, Antoine e Chauchat foram considerados hóspedes oficiais da cidade pelo então prefeito Deolindo dos Santos (aliás, tio do historiador Filinho) e levados para o Hotel Felipe, de pau-a-pique, porém de linhas coloniais, hoje já demolido. Nas lembranças de Antoine, levado a Ubatuba 52 anos depois por Kawall, ele e Chauchat viveram uma noite memorável, regada por duas garrafas de um inesquecível vinho Sauternes, raro e caro até mesmo na França.

Após o justo sono, os franceses, bem cedinho, no dia seguinte, voltaram à praia, com o propósito de retirar do avião uma parte do combustível, exatamente 200 litros de querosene, ofertados à população. Antoine se lembra de que chegaram com todo o tipo de vasilhame, de latas até penicos. Depois todos, com compreensível entusiasmo, ajudaram a empurrar o pequeno avião (um Latecoère) pela praia, até que o aparelho adquirisse velocidade suficiente para pegar e decolar. "Tomou rumo Sul, após uma suave evolução sobre a baía de Ubatuba". A cena jamais seria esquecida, incorporou-se ao folclore local. A crônica ubatubense registra ainda dois outros casos de ruidosas descidas de aviões em suas praias, mas nada que provocasse o mesmo frisson.

Antoine e Filinho: reencontro
Antoine e Filinho: reencontro
Foto publicada com a matéria

Tornada pública a partir de 64 por uma série de reportagens do jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, a inusitada visita de Saint-Exupéry passou quase que imediatamente a ser pesquisada por Luiz Ernesto Kawall. Que nesses 20 anos leu toda a obra do autor de O Pequeno Príncipe, "embora sem ficar particularmente impressionado por sua qualidade literária, acho tudo um pouco piegas demais, acho até que prefiro O Pequeno Príncipe do filme exibido pela Globo do que o do livro".

Kawall tornou-se então conhecedor da obra e da vida deste francês nascido em 1900 e cujo avião desapareceu sobre o Mediterrâneo no dia 31 de julho de 1944, entre Grenoble e Annecy, depois de haver partido de um campo de pouso na Córsega. "Não encontrei na obra do escritor nenhuma referência ao acidente de Ubatuba, suas maiores referências ao Brasil estão contidas no capítulo 13 de Vôo Noturno, onde fala sobre as montanhas 'recortadas com nitidez no céu brilhante', das florestas 'sobre as quais brilham incessantemente, sem lhes dar cor, os raios do luar', e de 'uma lua sem desgaste: uma fonte de luz'".

O avião, alvo da curiosidade
O avião, alvo da curiosidade
Foto publicada com a matéria

Sabe-se, comprovadamente, de Saint-Exupéry em Natal (onde se hospedava no hoje também já demolido Grande Hotel, que abrigou também Bing Crosby e o, na época, príncipe Feisal), na Praia Grande, em Pelotas e Porto Alegre. Mas a descida em Ubatuba tornou-se um mito tão forte que envolveu, ou foi corroborado, até por uma especialista imbatível na biografia do escritor-piloto-aventureiro, a dominicana irmã Rosa Maria. Ela ficou nacionalmente conhecida ao responder sobre Saint-Exupéry no programa O Céu É o Limite, tendo depois disso escrito um livro sobre ele. No prefácio, fazia referências a pousos forçados em Santos, Praia Grande e Ubatuba. Mas, Kawall explica, irmã Rosa Maria foi das primeiras a alertá-lo de que Ubatuba tinha poucas possibilidades de ter sido pelo menos uma vez incluída em seus roteiros.

Kawall, entre muitas outras pessoas, foi ouvir em Ubatuba - onde criou o Museu do Bairro Tenório, para preservação da memória, história e paisagem da cidade - dona Isabel de Oliveira Santos, a viúva do prefeito Deolindo, que considerou os acidentados franceses hóspedes oficiais. O raro vinho Sauternes servido a Antoine e seu companheiro foi possível por ser Deolindo "um comerciante, que tinha em sua casa vinhos de várias partes do mundo, especialmente franceses e portugueses, importava das casas de São Paulo e Rio..." Dona Isabel não se lembra bem dos aviadores no depoimento, tomado em agosto de 1973 (ela já faleceu), mas conta que "eles devem ter se hospedado no hotel Felipe, que ficava defronte da nossa casa, na Rua Maria Alves, e era o melhor e mais antigo de Ubatuba".

Saint-Exupéry (de terno) e Léon Antoine (de chapéu), em Cap Juby
Saint-Exupéry (de terno) e Léon Antoine (de chapéu), em Cap Juby
Foto publicada com a matéria

A saga exuperyana foi confirmada pelo historiador e ex-prefeito Filinho: "Quanto o avião desceu houve aquele burburinho, o aparelho foi cercado pela população. Um húngaro, Julio Kertz, tentou falar com o piloto em alemão, mas ele não entendeu". Ele lembra que "no dia seguinte os franceses ainda passaram a pé pela frente de casa, junto à praça da Matriz, se despediram com um au revoir e foram embora. Não sei se passaram telegrama no correio, acho que não, pois se a própria Air France (nome da Aero-Postale de 1933 em diante) tinha estação telegráfica não precisariam disto". Filinho informou que não há mais registro dos livros do hotel, porque seus proprietários morreram. Mas conseguiu descobrir o telegrafista Gilberto Brandão, da Air France, morando em Niterói, e este confirmou numa carta "a estada de Saint-Exupéry entre nós", embora sem conseguir precisar exatamente a data.

A "estada" de Saint-Exupéry está fartamente documentada em fotografias. Umas foram feitas pelo próprio piloto Léon Antoine e outras por um alemão (aliás, nascido na Guatemala), Herman Porcher, também já falecido mas ouvido por Kawall. O alemão estava na cidade como turista e mais tarde compraria "metade da praia de Santa Rita".

"Localizei esse Porcher morando em Santo Amaro, me diziam que ele gostava de freqüentar os bares do bairro e levei tempo até encontrá-lo. O garçom de uma choperia me deu o telefone dele, marcamos um encontro em seu escritório de numismática - ele trocara a fotografia pelo comércio de moedas. Que descoberta! Porcher não só relatou o caso dos aviadores como, depois de me descrever o jantar na companhia deles, mostrou quatro fotografias batidas na manhã de sua partida. Em Ubatuba, onde se hospedava no Hotel Idalina e planejava caçadas nas matas vizinhas com alguns amigos, usando culotes, perneiras e capas sobradas da Revolução de 32, o alemão lembrou-se de que eram por volta de cinco horas e já começava a escurecer quando o avião desceu na praia. Falou com os tripulantes em francês, ouviu deles que vinham de Natal, fazendo várias escalas e levando malas postais até Santos".

- Quando os franceses pediram vinho o prefeito foi buscar. O mais alto, ao ver a garrafa, exclamou: 'Mas onde o senhor arranjou isto? Na França este vinho custa um dinheirão!' Conversamos sobre aviões e a linha aérea francesa para a América do Sul e também sobre os vôos do Zeppelin, que eu tinha fotografado em São Paulo naquele mesmo ano. Depois do jantar fomos ver o avião na praia, um caiçara entrara na cabine e estava divertindo-se. "Cuidado, João, o avião pode levantar vôo", alguém gritou, e ele saiu correndo de medo".

Antoine, relatando suas lembranças do pouso em Ubatuba
Antoine, relatando suas lembranças do pouso em Ubatuba
Foto publicada com a matéria

Porcher contou também que, "por volta de 50 e poucos, quando Saint-Exupéry começou a ficar falado e famoso, eu soube que aquele homem alto e gentil que descera em Ubatuba era ele". O fotógrafo morreu antes de ver desfeito o equívoco. Mas com as fotos na mão, Kawall foi em frente. Uma das primeiras pessoas que procurou foi a dominicana Rosa Maria, que não pôde dizer com certeza se nas fotos estava ou não seu amado Saint-Exupéry. Talvez no lugar do escritor-piloto estivesse outra celebridade, o grande pioneiro da aviação e grande herói Jean Mermoz, que também pilotara para a Gènèrale Aero-Postale. Kawall tentou Joseph Halfin, da Air France, escreveu cartas para a França, mas nada de levantar com certeza a identidade dos dois franceses que pernoitaram em Ubatuba.

A verdade começou a aparecer em setembro do ano passado, quando se comemorava a travessia do Atlântico por Mermoz e a TV Globo entrevistou o jornalista francês Jean-Gérard Fleury, correspondente da revista Le Point. Ao vê-lo falar sobre o heroísmo pioneiro de Mermoz, Kawall intuiu que poderia ter dele um esclarecimento definitivo. Tinha razão. Fleury, que foi amigo de Saint-Exupéry, imediatamente se interessou pelo assunto, a partir de uma conversa telefônica.

Viajou para a França e lá recebeu uma carta do jornalista brasileiro, com várias perguntas. Entre as respostas, a de que "as fotos enviadas não são de Saint-Exupéry" e "Saint-Exupéruy nunca teve acidente no Brasil". E completava: "Achando muito simpática sua pesquisa sobre um episódio acontecido em Ubatuba, tenho grande prazer em completar as informações solicitadas. O avião que pousou naquela cidade em 1933 era pilotado pelo veterano comandante Léon Antoine, acompanhado pelo radiotelegrafista Chauchat. Hoje ainda Antoine se lembra da triunfal acolhida tanto pelo prefeito como pelo povo da cidade e evoca sempre com emoção um vinho Sauternes de admirável paladar, assim como suas conversas com o prefeito e um cidadão alemão que falava francês. Quando lembrei a Antoine este episódio ele se comoveu e falou de sua grande vontade em rever o lugar do acidente e as pessoas que lhe prestaram tão fraternal assistência".

O já demolido hotel Felipe, em guache de João T. Leite
O já demolido hotel Felipe, em guache de João T. Leite
Foto publicada com a matéria

A pesquisa estava terminada, ou quase. Luiz Ernesto Kawall decidiu então que tudo só ficaria completo depois de um encontro com o próprio Leon Antoine, sobre quem Fleury informara estar vivendo no Brasil desde que se aposentara na Air France. Antoine, casado, pela segunda vez, com Célia Regina, uma bela negra brasileira, de fato mora num sítio em Barão de Javari, no interior fluminense. Aos 84 anos, pai de dois filhos, tem cinco netos e dois bisnetos. Adora o Brasil e permanece um admirador de bons vinhos. Reconheceu imediatamente as fotografias feitas em Ubatuba do seu avião Late 26. Já pilotou todos os tipos e avião, do primitivo Brequet-14 até o Super G Constellation. Seu relato sobre o episódio:

- Nossa próxima parada seria Praia Grande, mas na altura de Ubatuba a cerração impediu o vôo visual. Nós nos guiávamos por cartas da Marinha do Brasil, sempre observando os faróis, e os homens da empresa acendiam fogueiras nos pousos de Praia Grande, Florianópolis e Pelotas para nos orientar. Com a cerração fechando o visual, baixamos um pouco e avistamos a torre da igreja de Ubatuba. Fizemos um vôo em círculo, escolhemos uma praia onde a vegetação era rala e decidimos descer. Fomos imediatamente cercados pelo povo, alguns nos olhavam como se fôssemos extraterrestres.

Antoine, entre muitas lembranças, conta que na hora da partida o dono do Hotel Felipe lhe ofereceu a compra do estabelecimento, "por seis mil contos, em moeda da época. Deve ter sido por causa do meu nome, Léon Antoine, que mais tarde se passou a acreditar que Saint-Exupéry teria dormido na cidade. Eu era mesmo parecido com ele. Não apenas nas feições, mas também pela altura. Só que ele andava mais curvado do que eu. Além disso, Saint-Exupéry nunca fez regularmente a linha para a América do Sul, mas como passou dois anos em Buenos Aires certamente andou por aqui. Não foi meu amigo íntimo mas eu o conheci bem, era um pouco do mundo da lua..." O piloto falou a Kawall de sua vontade de rever Ubatuba.

Na velha fotografia, o testemunho de um equívoco que durou 52 anos
Na velha fotografia, o testemunho de um equívoco que durou 52 anos
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O capítulo final dessa história que remete a memória aos tempos heróicos da aviação, à lembrança de homens como Saint-Exupéry, Mermoz, Guillaumet e Dumesnil, foi encenado há algumas semanas: Léon Antoine, após 52 anos, retornando a Ubatuba. Revendo os mesmos cenários hoje muito mudados, impossibilitado de hospedar-se no colonial Hotel Felipe, que não existe mais, para abrigar-se sob as sofisticadas quatro estrelas do Palace Hotel. As testemunhas da época são também poucas.

Mas lá estava Filinho, o historiador, farmacêutico, ex-prefeito. O homem que ajudara a cimentar um mito e que assistia à definitiva destruição do seu atraente mistério. Ubatuba, cujas areias receberam escritos do Anchieta, cujos índios foram introduzidos pelo padre Nóbrega aos rudimentos do que o Ocidente chama de civilização, cujas paisagens extasiaram o alemão Hans Staden, teria de abrir mão de sua mais palpitante história contemporânea: o Pequeno Príncipe jamais passou uma noite no Hotel Felipe.