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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PADRE VOADOR
Padre ensina Europa a voar em balão (3)

Bartolomeu de Gusmão foi o primeiro no mundo a demonstrar o aeróstato
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Ao se completar o segundo centenário da morte de Bartolomeu de Gusmão, o jornal santista A Tribuna registrou, na páginas 1 e 2 de sua edição de quarta-feira, 19 de novembro de 1924 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução da primeira página da matéria original

O segundo centenário do falecimento do Padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão

Santos, berço do precursor da navegação aérea, prestará, hoje, significativas homenagens à memória de seu grande filho - A participação das colônias lusitana e espanhola nas comemorações - O programa oficial dos festejos - Outras notas

São passados duzentos anos sobre a data do falecimento do "padre voador", como foi chamado, na época, pelos espíritos superficiais, o padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão, quando, dirigindo a sua passarola, ascendeu aos ares em Lisboa, em presença da corte real.

A primeira impressão foi de espanto; depois foi o precursor da aerostática equiparado a Ícaro; a ciência de então achou que Bartholomeu de Gusmão passava muito além das possibilidades humanas e, desamparado, ridicularizado, mofado, apodado, incapaz de lutar contra tantas adversidades, foi acabar os dias em Toledo, na febre em que o seu sonho realizado o deixara.

Verdadeiro mártir da ciência, sabe-se dele a realização de seu ideal imenso e a vida que arrastou, de miséria e de vexames, desde o dia glorioso em que firmou o domínio dos ares e a data em que, na penúria extrema, entregou a Deus a sua alma sublime.

Santos pode contar entre os seus grandes homens com a figura excelsa do grande Gusmão, que é não somente uma das glórias nacionais, como do universo. Bartholomeu não procedeu por tentativas. Construiu o aparelho que devia cindir a atmosfera e gravitar no espaço e, confiado em seus conhecimentos, meteu-se dentro da máquina, risonho e satisfeito, na esperança de que o seu invento seria bem recebido pela humanidade. Nunca supôs o jesuíta que o domínio dos ares viesse levantar a celeuma que suscitou. Não fosse a recepção fria e desalentadora que teve, e hoje, certo, a aviação teria outro desenvolvimento.

Seja como for, o dia de hoje e de viva alegria e justo júbilo para Santos, em cujo solo nasceu o verdadeiro e inconteste pai da aviação e precursor da aerostática.

Foi-lhe fatal a sua coragem, mas, por isso mesmo, às suas glórias de grande cientista e irrivalizável descobridor, junta, outrossim, a coroa de mártir da ciência.

Como todos os grandes homens, foi grande a sua desdita e a todas as desventuras juntou a de morrer em terra estranha, longe dos seus.

Grande tem sido a literatura feita em torno da vida do grande descobridor, mas de seu invento pouco se sabe, havendo a esse respeito meras conjecturas. Os documentos compulsados pouco revelam. As crônicas da época, imperfeitas e aleivosas, afirmam de útil apenas que ele ascendeu aos ares e dão a entender que tomou diversas direções, o que não se sabe se atribuir à mudança dos ventos ou a um dispositivo orientador do aparelho.

Recomendado pela rainha Isabel de Farnesio, da Espanha, a D. João V, foi por este feito capelão fidalgo da casa real, privando assim com o soberano, que muito o auxiliou, custeando as despesas da construção da passarola. Caiu, porém, no desagrado do soberano português, que o abandonou e perseguiu, vendo-se obrigado o padre voador a abandonar Portugal para evitar agruras maiores, começando aí a sua desventura, o desfazer lento e tenebroso do sonho que o embriagara toda a vida, o curtir das amarguradas horas, cujo epílogo foi a morte humilde e esquecida numa casa de caridade em Toledo.

Bartholomeu Lourenço de Gusmão nasceu nesta cidade, em 1665, num prédio que existiu na antiga Rua Santo Antonio, hoje Rua do Comércio, no local onde se encontra a casa Theodor Wille e Cia., sendo seus pais Francisco Lourenço, cirurgião-mor do presídio da então vila de Santos, e d. Maria Álvares.

Convém, desde logo, retificar um erro comum, o de ter o padre Bartholomeu de Gusmão pertencido a uma ordem regular.

Além de Alexandre de Gusmão, ministro de d. João V, teve o ilustre padre mais dez irmãos. Destes, professaram em ordens religiosas o padre Simão Alves, jesuíta; frei Patrício de Santa Maria, franciscano; padre Ignacio Rodrigues, jesuíta; frei João de Santa Maria, carmelita; Paula Maria e Archangela da Conceição, clássicas. O único presbítero secular foi Bartholomeu. Foi educado, assim como seus irmãos, no seminário de Belém, situado nas Cachoeiras, próximo da Bahia, fundado pelo jesuíta Alexandre de Gusmão, padrinho de seu irmão mais novo, e de quem ambos tomaram o apelido.

Muito novo, começou a aplicar-se dedicadamente aos estudos da Mecânica e da Física, para que se sentia com maior vocação. A primeira manifestação do seu engenho foi o mecanismo que inventou para fazer subir a água de qualquer rio, lago ou brejo, ou mesmo do mar, à altura a que se pretendesse. O seminário estava construído sobre um monte, e faltava-lhe a água para a alimentação e serviço da casa, no que a comunidade despendia bastante, e Bartholomeu de Gusmão estudou o assunto, conseguindo, por meio de um cano e maquinismo, fazer subir ao convento a água de um brejo que ficava inferior ao seminário 101 metros.

Tendo concluído os estudos, e deixado o seminário em 1705, tratou logo de tirar vantagem do seu descobrimento, e requereu à Câmara da Bahia lhe concedesse privilégio de invenção, o que ela fez em sessão de 12 de dezembro desse mesmo ano. Bartholomeu de Gusmão requereu, então, ao governo, para que o privilégio se tornasse extensivo a todo o Brasil. O conselho ultramarino, a que foi apresentado o requerimento, consultou favoravelmente sobre ele em 18 de novembro de 1706, obtendo o despacho d'el-rei só em 23 de março de 1707, e passando-lhe a referida carta de privilégio.

Foi então que o padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão seguiu para Portugal e matriculou-se na Universidade de Coimbra, na Faculdade de Cânones, em dezembro de 1708, doutorando-se muitos anos depois, não por falta de saber, mas por ser a sua inteligência aproveitada no estudo de grandes problemas científicos e de dirigir causas intrincadas de direito civil. Era muito versado não só na jurisprudência, mas nas humanidades; sabia com pureza a língua latina, falava com prontidão a francesa e a italiana e tinha grande predisposição para o grego e hebraico.

Sobre a prodigiosa memória de Bartholomeu de Gusmão, encontra-se num opúsculo inédito do padre João Baptista de Castro, datado de 1766, e faz parte do Cod. CXII 12-14 da Biblioteca Pública de Évora:

"Aprendendo eu filosofia no ano de 1715 com o rev. pe. Filippe Neri, da Congregação do Oratório, vi fazer na casa da aula ao dr. Bartholomeu Lourenço de Gusmão, chamado o Voador, notáveis ostentações de memória local que pareciam exceder as forças humanas. Abria-se um livro de folha que ele nunca tinha lido; punha-se a ler duas ou quatro páginas de uma só vez, e as tornava a repetir fielmente; o que mais admirava era também repeti-las de baixo para cima. Foi um homem de grande esfera e que mereceu grandes aplausos nesta corte, mas malogrado".

Este documento fidedigno, a que poucos biógrafos do ilustre sábio se têm referido, mostra claramente que naquela época ainda não se havia doutorado em Cânones o padre Bartholomeu de Gusmão; no entanto, desde 1709 que era lente de prima de Matemática da Universidade de Coimbra, com seiscentos mil réis de renda, de que lhe fez mercê d. João V.

Desde que chegou a Portugal que se dedicou ao estudo da sua grande invenção, que já ia amadurecido do Brasil.

E assim, logo que concluiu os seus estudos sobre essa maravilha que ia marcar uma das maiores glórias para Portugal, nesse reinado em que se importavam sábios estrangeiros, ele dirige a d. João V uma petição solicitando privilégio, nos seguintes termos:

"Diz o licenciado Bartholomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar, com muito mais brevidade; fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, nos quais instrumentos se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos e terras mais remotas quase no mesmo tempo em que se resolvem; no que interessa a Vossa Majestade muito mais que a todos os outros príncipes, pela maior distância de seus domínios; evitando-se desta sorte os desgovernos das conquistas, que provêm em grande parte de chegar tarde a notícia deles.

"Além do quê poderá Vossa Majestade mandar vir todo o preciso delas muito mais brevemente e mais seguro; poderão os homens de negócios passar letras e cabedais a todas as praças sitiadas, poderão ser socorridas tanto de gente, como de víveres e munições a todo o tempo; e tirarem-se delas as pessoas que quiserem, sem que o inimigo o possa impedir. Descobrir-se-ão as regiões mais vizinhas aos pólos do mundo, sendo da nação portuguesa a glória desde descobrimento. Além das infinitas conveniências que mostrará o tempo. E porque deste invento se podem seguir muitas desordens, cometendo-se com o seu uso muitos crimes, e facilitando-se muitos na confiança de se poderem passar a outro reino, o que se evita estando reduzido o dito uso a uma só pessoa a quem se mandem todo o tempo as ordens convenientes a respeito do dito transporte, e proibindo-se as mais sobre graves penas; e é bem se remunere ao Supp. invento de tanta importância.

"Pede a V. M. seja servido conceder ao Supp. o privilégio de que, pondo por obra o dito invento, nenhuma pessoa de qualquer qualidade que for, possa usar dele em nenhum tempo neste reino ou suas conquistas, sem licença do Supp. ou seus herdeiros, sob pena de perdimento de todos os bens, e as mais que a V. M. parecerem" (N.E.: Supp. = abreviatura de suplicante).

D. João V era orgulhoso por tudo quanto fosse grandeza, fausto e deslumbrasse o mundo, no que gastou milhões de cruzados. Assim, a petição do ilustre sábio foi bem acolhida pelo soberano, que logo viu o despontar de uma glória que atrairia para o seu domínio a atenção de todas as nações.

Não se fez demorar a expedição do alvará em favor de Bartholomeu de Gusmão, documento precioso que se acha arquivado em Lisboa, na Torre do Tombo da Chancelaria d'el-rei d. João V - Ofícios e Mercês, liv. 31, fls. 201w, nos seguintes termos:

"Eu el-rei faço saber que o padre Bartholomeu Lourenço me representou por sua petição, que tinha ele descoberto um instrumento para se andar pelo ar, da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia; no qual instrumento se poderiam levar os avisos de mais importância aos exércitos e a terras mui remotas, quase ao mesmo tempo em que se resolviam,no que interessa eu mais que todos os outros príncipes, pela maior distância dos meus domínios, evitando-se desta sorte o desgoverno das conquistas, que procediam, em grande parte, de chegar muito tarde a mim a notícia deles; além de que poderia eu mandar vir todo o preciso delas muito mais brevemente e mais seguro, e poderiam os homens de negócio passar letras e cabedais com a mesma brevidade, e todas as praças sitiadas poderiam ser socorridas, tanto de gente, como munições e víveres a todo o tempo, e retirarem-se delas as pessoas que quiserem, sem que o inimigo o pudesse impedir; e que se descobririam as regiões que ficam mais vizinhas aos pólos do mundo, sendo da nação portuguesa a glória desse descobrimento, que tantas vezes tinham tentado inutilmente as estrangeiras.

"Saber-se-ão as verdadeiras longitudes de todo o mundo, que por estarem erradas nos mapas causavam muitos naufrágios; além de infinitas conveniências que mostraria o tempo, e outras que por si eram notórias, que todas mereciam a minha real atenção: e porque deste invento tão útil se poderiam seguir muitas desordens, cometendo-se com o seu uso muitos crimes, e facilitando-se muitos mais na confiança de se poder passar logo aos outros reinos, o que se evitaria estando reduzido o dito uso a uma só pessoa, a quem se mandassem a todo o tempo as ordens que fossem convenientes a respeito do dito transporte, proibindo-se a todas as mais 'sobre graves penas'; por ser justo que se remunerasse a ele suplicante invento de tanta importância, me pedia que lhe fizesse mercê conceder privilégio, de que pondo por obra o dito invento, nenhuma pessoa de qualidade que for pudesse usar dele em nenhum tempo neste reino e suas conquistas, com qualquer pretexto, sem licença dele suplicante ou de seus herdeiros, sob pena de perdimento de todos os seus bens, a metade para ele suplicante e a outra metade para quem os acusasse, e 'sob' as mais penas que a mim me parecessem, as quais teriam lugar tanto que constasse que alguém fazia o sobredito instrumento, ainda que não tivesse usado dele para que não ficassem frustradas as ditas penas, ausentando-se o que as tivesse incorrido: E visto o que alegou hei por bem fazer-lhe mercê ao suplicante de lhe conceder o privilégio de que pondo por obra o invento de que trata, nenhuma pessoa, de qualidade que for, possa usar dele em nenhum tempo neste reino e suas conquistas, com qualquer pretexto, sem licença do suplicante ou de seus herdeiros, sob pena de perdimento de todos os seus bens, e metade para ele suplicante e a outra metade para quem os acusar: e só o suplicante poderá usar o dito invento como pede na sua petição. E este alvará se cumprirá, inteiramente como nele se contém; e valerá, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo da Ordenação do livro 2º, tít. 4º, em contrário.

"E pagou de novos direitos quinhentos e quarenta réis, que se carregaram ao tesoureiro deles a fl. 160, do liv. 1º, da sua receita; e se registrou o conhecimento em forma no liv. 1º do registro geral a fl. 149. José da Maia e Faria o fez em Lisboa, aos 19 de abril de 1709. Pagou desta quatrocentos réis Manuel de Castro Guimarães o fez escrever. - Rei - Conferido. Patrício Nunes: e comigo Joseph Corrêa de Moura".

Antes deste alvará, que só foi passado em 19 de abril de 1709, um despacho datado de 17 do mesmo mês e ano, na petição inicial, põe em relevo a suma importância da invenção, e a consideração em que foi tida pelo desembargador do Paço, que consultou a el-rei sobre as penalidades e prêmio que pedia o suplicante, que considerava mui limitados, e que se devia ampliar.

Em data de 17 de abril de 1709, com rubrica e guarda de Sua Majestade, saiu despachada a seguinte resolução, que traduz perfeitamente o sentir daquele tempo:

"Como parece à mesa; e além das penas, acrescento a de morte aos transgressores; e para com mais vontade o suplicante se aplicar ao novo instrumento, obrando os efeitos que relata, lhe faço mercê da primeira dignidade que vagar em minhas colegiadas de Barcelos, ou Santarém, de lente de primeira matemática na minha Universidade de Coimbra, com seiscentos mil réis de renda, que creio de novo em vida do suplicante somente".

"Estamos esperando o efeito e experiência deste inaudito invento, que prometia uma nova navegação de grande utilidade para o domínio português", diz o beneficiado Francisco Leitão Ferreira, prior da igreja do Loreto, em Lisboa, em manuscrito que esteve em mão de José Bonifácio, Patriarca da Independência.

Os efeitos não se fizeram esperar, pois é público e notório que o padre Bartholomeu de Gusmão, perante d. João V e muita fidalguia, realizou a sua primeira experiência do balão globo no pátio da Casa das Índias, subindo, suavemente, à altura da sala dos embaixadores.

Esta, porém, não é a sua experiência definitiva sobre a navegação aérea. Esse homem notável queria ir mais além. Não se limitava em ascender no espaço, entregando-se ao capricho dos ventos. A sua invenção era poderosa, estudada de forma a que pudesse um dia quebrar as cadeias humanas que acorrentavam o homem à terra, e elevando-se gloriosamente, triunfantemente, na atmosfera azul e radiosa desse país, ao qual, em remotas eras, cheias de esplendor, tinham já pertencido os primeiros navegadores do mundo, ele viesse trazer a seus irmãos de aquém oceano a glória definitiva do seu descobrimento, numa realização acarinhada desde longa data pelos espíritos inventivos de todos os povos.

Assim, aparece a Naveta, o aparelho já mais aperfeiçoado, em que o padre Bartholomeu de Gusmão realizou a sua célebre experiência, elevando-se no espaço, da praça d'armas do Castelo de São Jorge, em Lisboa, na manhã de 8 de agosto de 1709, data memorável na história da navegação aérea.

O primeiro vôo que se realizou no mundo - Começava a alvorada desse dia 8 de agosto, e o espantoso feito tinha corrido a cidade desde Alfama ao Bairro Alto. O povo movimentava-se para ver tão assombroso espetáculo. Um homem ia voar! Tinha relações com o demônio, certamente! Só os espíritos infernais lhe podiam dar o dom de escalar os céus! No Rocio, no Palácio dos Estáus, os dons freis de S. Domingos, cheios de caridade e ardendo em fé, abriram com as palavras sacramentais o processo de mais um auto em perspectiva. Em S. Roque, os jesuítas miravam de soslaio a audácia desse homem de ciência, que, sem o aplaudirem, admiravam. Os beatos da época acenderam lumes aos Santos protetores, temendo que a ira do Altíssimo caísse sobre a cidade.

Estas precauções não são para causar surpresa numa época em que Portugal, no dizer de Oliveira Martins, era "um cenário de ópera, armado numa igreja".

As sete colinas da cidade estavam apinhadas. O padre Bartholomeu de Gusmão, sem a maior segurança do que a temeridade da sua fé inabalável na máquina de andar pelo ar, aguardava a ordem real para subir no azul!

Eram dez horas, quando el-rei d. João V apareceu no eirado do formoso torreão do Paço da Ribeira, cercado da sua real família, embaixadores estrangeiros, secretários de Estado e oficiais-mores do Palácio.

Chegara, enfim, o grande momento em que um homem

"... pelo ar navega e voa,

Num barco sem piloto e sem remeiro"

Bartholomeu de Gusmão ascende na amplidão desse céu de anil, resplandecente de sol! Num surto ousado caminha para as estrelas. A Naveta toma a direção do Tejo, a multidão move-se. Colarejas e mariolas, todos em grita, correm para o Terreiro do Paço. As beatas arrepiam-se. El-rei contempla serenamente e com orgulho a realização desse sacerdote ilustre, que tão grande feito alcançara para o seu reinado. A máquina voadora, no entanto, ao passar junto do torreão da Casa da Índia, toca numa das cornijas e incendeia-se. O primeiro nauta dos ares não perde o sangue frio, conserva-se na barquinha até tocar no solo. Estava feita a experiência precursora das grandes realizações da conquista do espaço. O padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão voara, de fato, perante a corte e o povo da cidade.

D. João V estava satisfeito, pois ele de seu próprio bolso custeara todas as despesas da construção do instrumento voador.

Depois desta experiência, pode parecer estranho que o sábio padre não insistisse nos seus propósitos, porém não tinha meios para construir outro aparelho e o soberano português parece que, por influências poderosas, não estava disposto a abrir de novo o seu bolsilho. No entanto, não retirou a sua amizade e admiração ao padre "Voador". Pelo contrário, cercou-o sempre de consideração, admirando o seu extraordinário saber, e tanto assim que o nomeou capelão da sua Real Casa.

Voltou para a Universidade de Coimbra, a fim de prosseguir os seus estudos de Direito Canônico, espalhando, ao mesmo tempo, as luzes da sua inteligência nas aulas de Matemática e em sermões que ficaram memoráveis como peças de oratória.

Dotado de singular modéstia, de amável singeleza e candura d'alma, de tal sorte acanhado, que não parecia depósito de tantos tesouros científicos - diz o visconde de S. Leopoldo -, nunca fez alarde dos seus profundos conhecimentos de humanidades, porém o seu saber era admirado por todos os contemporâneos, e d. João V nunca olvidou o seu nome.

Assim, em 1720, o monarca enviou-o a Roma, a fim de negociar duas Bulas, que a corte portuguesa impetrava, uma do serviço da patriarcal e outra das quartas partes dos bispados. A Cúria Romana começou a mover-lhe embaraços e demoras pelos equívocos e faltas de percepção das intenções de d. João V. Deliberou este assistir-lhe seu irmão Alexandre de Gusmão, que, por fim, o substituiu, levando instruções claras da corte portuguesa, ordenando-lhe que residisse em Roma dois meses para esse fim.

Parece que o transcendente talento de Bartholomeu de Gusmão, formado para brilhar em esfera própria, como, com efeito, brilhou, e ainda a sua qualidade de eclesiástico, não lhe permitia tratar, na Cúria Romana, com aquela liberdade e vigor com que qualquer outro agente o poderia fazer, e ainda a sua natural franqueza relutava à sagaz e refinada dissimulação necessária muitas vezes em diplomacia, para chegar ao desenlace de enredadas negociações.

Bartholomeu de Gusmão regressou a Portugal; e ainda, nesse mesmo ano, para que fique bem evidente que não houve descontentamento régio, e se o houve durou pouco. D. João V, ao fundar a Academia Real de História Portuguesa, em 8 de dezembro, escolheu-o para um dos 50 membros efetivos.

Como acadêmico, escreveu o ilustre sábio brasileiro o prólogo das Memórias dos Bispos do Porto, trabalho que mereceu a aprovação de toda a Academia.

Apesar da proteção real de que gozava, o ilustre brasileiro não era persona grata de certos familiares do Santo Ofício, e, desse modo, sofria uma perseguição surda, que levou anos a lançar seus tentáculos, mas que, por fim, venceu. A antiga hombridade portuguesa, que a perversão universal tornava em bazófia - diz Oliveira Martins -, dava o braço à antiga piedade, traduzida por uma devoção piegas. O próprio ministro Alexandre de Gusmão, em certas ocasiões, apertava a cabeça com ambas as mãos, e exclamava: "A fradaria absorve-nos, a fradaria suga tudo, a fradaria arruína-nos!"

A sociedade, composta de casquilhos e sécias, metade da qual esperava a vinda do Messias, e a outra metade pela de d. Sebastião, segundo a opinião de lorde Tirawley, embaixador da Inglaterra, passava a vida nos templos e nas sacristias, e o próprio rei dava o exemplo, ostentando a sua piedade balofa, cantando cantochão nas grandes solenidades e fazendo do Convento de Odivellas o seu recreio favorito.

Para que se faça uma idéia precisa a que estado chegara a sociedade desse tempo, basta dizer que o cardeal Motta instou com o soberano, que só curava de coisas beatas e do rendimento do mealheiro das almas, para que "se proibisse o anúncio de raios, tempestades e trovões, nas folhinhas do ano, para sossegar op ovo, enquanto o papa não livrasse o reino dos espíritos malignos".

Foi num mar de superstição e ignorância que se afundou o saber do padre Bartholomeu de Gusmão, e quando viu que o Santo Ofício dominava por completo a própria consciência real e que a campanha que lhe moviam dia a dia o apertava em suas malhas, fugiu para Espanha, na certeza de encontrar refúgio seguro nessa corte, que também conhecia o valor de sua inteligência.

Acusado de feiticeiro, satirizado por poetastros do valor de Thomaz Pinto Brandão, o "Camões do Rocio", e outros zoilos dessa tarefa inglória, o sábio precursor da navegação aérea, ao deixar Portugal, em 28 de setembro de 1724, teve por despedida o seguinte soneto:

"Depois de dar ao povo mil pesares

Bartholomeu Lourenço, o Passarola,

Servindo-lhe o paquete de gaiola,

Também, também voou por esses ares

 

O medo lhe deu asas e talares

E qual Mercúrio, ou qual Padre Carola

De voador do ar, lhe deu na tola,

Ir ser agora voador dos mares.

 

Dizem, se sujeitou ir passar fomes

Fugindo ao Santo Ofício e logo, logo,

Antes que o raio se empregasse nele.

 

E assim sendo contrário aos seus dois nomes:

Sendo Lourenço teve medo ao fogo,

Sendo Bartholomeu guardou a pele".

Os poetas, no entanto, quer sejam bucólicos ou jocosos, são no fundo excelentes criaturas, e querendo ridicularizar o invento do padre Bartholomeu, concorreram par que, dois séculos depois, pudéssemos testemunhar com suas rimas a autenticidade do invento e da experiência, e mesmo da perseguição que o sábio brasileiro sofreu do Santo Ofício; se bem que este último ponto tenha sido contestado por alguns escritores que ainda no século atual (N.E.: século XX) caturram em defender os padres inquisidores, não explicando, porém, quais os motivos por que o "Voador" abandonou a corte portuguesa.

O padre Bartholomeu, para glória sua na posteridade, para se igualar aos que nas ciências, nas letras e nas artes deixaram o seu nome esculpido como buril de ouro; aos que combateram pela independência do solo pátrio, tinha que morrer esquecido dos homens, recebendo de esmola a própria mortalha.

Nesse sacrifício está o seu maior elogio, que deixou patente a superioridade do seu espírito.

Aos 19 de novembro de 1724, apagava-se para sempre a vida desse luso-brasileiro notabilíssimo, que dera a Portugal e ao Brasil a primazia de serem, na história, os países precursores da navegação aérea.

Por ser um documento interessante, deixamos aqui a certidão de óbito de tão célebre homem de ciência:

"Aos dezenove dias do mês de novembro de 1724 anos faleceu d. Bartholomeu Lourenço de Gusmão, doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra, natural da vila de Santos, no Brasil, de idade de trinta e oito anos, presbítero, residente na cidade de Lisboa, filho de d. Francisco Lourenço, já falecido, e de d. Maria Álvares, achando-se presentemente no Hospital de Misericórdia da paróquia de S. Romão desta cidade de Toledo, tendo se confessado e recebido por viático o Santíssimo Sacramento da Eucaristia e o da Extrema Unção. Faleceu sem testamento por não ter o que legar e foi sepultado nesta paroquial Igreja de S. Romão com assistência da Paróquia e da Irmandade do Senhor S. Pedro, vestido com hábitos sacerdotais e deu à paróquia desta igreja sessenta e seis reales pelos ditos hábitos e trinta reales pela sepultura, a qual quantia foi paga pela referida Irmandade dos Sacerdotes do Senhor S. Pedro, e por ser verdade firmei esta como cura colado da dita igreja. - Dom Francisco Gomes Mariscal".

Este documento preciosíssimo foi enviado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, acompanhado de um certificado de Francisco Adolpho Varnhagen, encarregado de negócios do Brasil em Madrid, e copiado por dom Joaquim Martinez, cura colado da igreja paroquial de Santa Leocádia e S. Romão, na cidade de Toledo, que o extraiu de folhas 115 do livro dos falecidos, que começou no ano de 1705 e terminou no ano de 1739.

Morrera o padre Bartholomeu de Gusmão e com ele a lembrança de ter sido o primeiro homem que conseguira construir um instrumento que abriu à humanidade o caminho do espaço. O primeiro cavaleiro dos ares entrara para o domínio da fantasia. No decurso de dois séculos essa lenda tinha sido adulterada com os mais extravagantes devaneios, que, pela sua insensatez, traziam ao espírito de muitos uma certa descrença, continuando a Passarola a ser, para quase todos - devido principalmente à sua depreciadora denominação - uma ave artificial, quase fabulosa!

Em França, os irmãos Montgolfier, em 1783, isto é, setenta e quatro anos depois da experiência definitiva do padre Bartholomeu, deslumbraram o mundo com as suas ascensões em balão esférico, primeiro em Annonay e a seguir em Paris.

A "invenção" dos Montgolfier havia transposto a fronteira da França, e ecoara maravilhosamente por todos os países, deixando os sábios deslumbrados, sábios cuja sapiência ia ao ponto de aceitarem como original aquilo que outro já havia realizado!

Os Montgolfier haviam vencido. Luís XVI chamou-os a Versailles. Paris saudava os primeiros aeronautas, e Paris já era então a grande voz do mundo!. O entusiasmo comunicara-se a todas as classes. Coisa nenhuma seria impossível realizar, a quem acabava de conquistar a atmosfera. A octogenária marechala de Villeroi, assistindo à ascensão do balão, de uma das janelas da Tulherias, cai de joelhos e chora!

Enfim, raiava a esplêndida aurora de promessas ilimitadas. Os poetas glorificavam os "inventores"; David fez um medalhão com as suas efígies. À prioridade de invenção ainda opuseram aos Montgolfier os nomes do padre Lana e do projeto de navegação aérea descrita, em 1755, pelo padre Galiano. No entanto, nada abalou o seu triunfo. Assim se passaram anos e anos. A conquista dos ares prosseguiu a passos agigantados, e sempre que o cronista rememorava os feitos dos próceres dessa realização, abria logo com o nome dos Montgolfier.

No século passado (N.E.: século XIX), os eruditos, os investigadores dos arquivos, não desprezando a lenda do padre "Voador", desse luso-brasileiro que deixara o seu nome ligado à primeira Academia Real fundada em Portugal, repuseram a questão de prioridade de invenção nos devidos termos, provando suas asserções com documentos preciosos que encontraram, e que acima transcrevemos.

Inicia-se então um movimento em prol do padre Bartholomeu de Gusmão. A França, em face da autenticidade histórica, abriu mão da prioridade de invenção. Nos congressos aeronáuticos, realizados em Paris e em outras capitais européias, começou-se a falar do invento do ilustre santista. Chegara, enfim, o dia da reivindicação. Travam-se polêmicas; mas, perante documentos insofismáveis, a verdade é uma única.

Em Paris, o marquês de Faria divulga a obra do sábio, quer pela imprensa, quer pelo livro, campanha em que é acompanhado por Xavier de Carvalho, e de que resultou a fundação da Academia Aeronáutica Bartholomeu de Gusmão.

Em Portugal, além dos trabalhos de investigação dos eruditos, em 1912, por interferência do Aero Club de Portugal, a Câmara Municipal de Lisboa inaugurou solenemente, em 8 de agosto, na esplanada do Castelo de S. Jorge, uma lápide comemorativa da ascensão da Naveta.

A alma dessa iniciativa foi o coronel de engenheiros Hermano de Oliveira Nascimento, inspetor do serviço de Engenharia do Campo Entrincheirado de Lisboa, comandante do Serviço de Torpedos Fixos, presidente da comissão de Aeronáutica Militar, criada por decreto de 8 de fevereiro de 1913, e presidente do Aero Club de Portugal, no que foi secundado por um grande divulgador do invento do padre Bartholomeu, o capitão de Artilharia Gustavo Tedeschi Corrêa Neves.

Nessa lápide lê-se:

"Bartholomeu Lourenço de Gusmão.

"Ao sábio português ilustre, que primeiro que nenhum outro realizou, em 1709, a genial idéia do aero-navegador, elevando-se em balão na Praça de Armas do Castelo de S. Jorge.

"Honra - Renome - Glória.

"Desta lápide comemorativa, recordando aos pósteros o arrojado invento.

"Glória também á Nação Portuguesa.

"Teve a iniciativa o Aero Club Português, sendo a sua inauguração deliberada pela Câmara Municipal de Lisboa.

"Realizada, em 8 de agosto de 1912".

O ato revestiu-se de grande brilho, e foi presidido pelo ministro da Guerra, coronel Corrêa Barreto, estando presentes o dr. Veloso Rabello, encarregado de Negócios do Brasil; o coronel Hermano de Oliveira, presidente do Aero Club, representantes da Municipalidade e vultos de destaque da mentalidade lusa. Nesse mesmo ano, realizaram-se em Toledo não menos solenes comemorações em honra de Bartholomeu de Gusmão, tendo à sua frente d. Felix Ladesma, presidente da Municipalidade, e como dedicado cooperador o erudito acadêmico dr. Juan Moraleda y Esteban.

Assim, em 5 de junho de 1912, foi colocada uma lápide no átrio da igreja de S. Romão, onde dormiram no esquecimento, durante anos, as cinzas do imortal inventor:

"En este templo de San Román Martyr, reposan los restos de D. Bartholomé Lorenzo de Guzmán, presbitero portugués, nascido en la ciudad de Los Santos, Brasil, año 1685, primer inventor de los aerostatos. Faleció en esta capital el 19 de Noviembre de 1724. La ciudad de Toledo le dedica este recuerdo".

Esse ano de 1912 foi de verdadeira glorificação para o padre Bartholomeu de Gusmão. Comemorava-se o 203º aniversário da grande experiência do ilustre sábio. Em Paris, achando-se ali em vilegiatura o comendador João Manuel Alfaya Rodrigues, foi o venerando santista cercado das mais altas provas de apreço, e a Academia Aeronáutica Bartholomeu de Gusmão, festejando a 8 de agosto a grande data precursora da navegação aérea, convidou o nosso distinto compatriota a presidir ao quarto banquete realizado em Luna-Park, sendo que o realizado em 1909 fora presidido pelo eminente sábio Camillo Flammarion.

A esse banquete compareceram os vultos de maior destaque da ciência e das letras parisienses, e ainda brasileiros e portugueses ilustres residentes na grande capital francesa.

O comm. Alfaya Rodrigues aproveitou essa distinção que lhe conferiram para, em discurso de agradecimento, divulgar a idéia, já mais ou menos formada, de se levantar em Santos o monumento do precursor de tão maravilhosa invenção, no que foi unanimemente aplaudido.

A Academia Aeronáutica, por influência direta do marquês de Faria, seu presidente, destinou a quantia de 25 mil francos para essa perpetuação da glória do primeiro nauta do azul.

E igual procedimento teve o Aero Club de Portugal, fazendo um donativo de 10 mil francos.

No Brasil, como nas outras nações, e no nosso país com muito mais razão, os eruditos nunca esqueceram a glória do compatrício que tão alto colocou o seu nome. Há estudos notáveis sobre a sua personalidade, desde o visconde de São Leopoldo a Vieira Fazenda e Valle Cabral.

Na propaganda da reivindicação, salientam-se o Aero Club Brasileiro, e o comendador Alfaya Rodrigues, que tem sido incansável pugnador por tudo quanto diga ao enaltecimento de glória dos vultos históricos que se acham ligados à terra santista.

Posteriormente, a Câmara Municipal de Santos deliberou render merecida homenagem ao sábio santista, encomendando ao prof. Lorenzo Massa, em Gênova, o belo monumento que se ergue na Praça Rui Barbosa, inaugurado solenemente em 7 de setembro de 1922.

Para a efetivação dessa homenagem, muito contribuiu o comendador Alfaya Rodrigues, vereador municipal, esforçando-se junto aos seus colegas para a realização daquele empreendimento.

É, porém, de justiça, deixar aqui registrado que pertence ao dr. Estácio Corrêa a iniciativa da primeira indicação sobre a ereção da estátua do padre Bartholomeu, e que foi apresentada à Câmara Municipal, em sessão de 8 de maio de 1907, sob a presidência do coronel Francisco Corrêa de Almeida Moraes.


Busto em bronze do rei d. João V, de Portugal, que assistiu à ascensão da Passarola, concedendo a Bartholomeu de Gusmão a sua proteção (o busto também figura na estátua ao Padre Voador)
Foto e legenda publicadas com a matéria

O programa oficial das comemorações - Consoante temos noticiado, o sr. coronel Joaquim Montenegro, prefeito municipal, de acordo com o sr. dr. B. de Moura Ribeiro, presidente da Câmara, o comendador João Manuel Alfaya Rodrigues, vice-presidente, organizou o seguinte programa para as comemorações de hoje:

1º - A Prefeitura mandará ornamentar a estátua do padre Bartholomeu de Gusmão, e, à noite, a praça será feericamente iluminada.

2º - Por coincidir a data do segundo centenário do falecimento do padre Bartholomeu de Gusmão com a Festa da Bandeira, será o Pavilhão Nacional hasteado, às 12 horas, no Paço Municipal, como de praxe, e a cerimônia assistida pelos alunos de todas as escolas públicas e particulares, com o concurso dos respectivos diretores e professores. Após o ato, realizar-se-á uma passeata cívico-escolar, em direção à estátua de Bartholomeu de Gusmão, onde chegará entre 12,30 e 13 horas. Falará por essa ocasião o sr. dr. José de Freitas Guimarães, em nome do povo de Santos.

3º - À noite, em coreto que será armado em frente à estátua, a banda de música do Corpo Municipal de Bombeiros realizará um concerto.

4º - O prefeito, em nome da Municipalidade, telegrafará ao sr. dr. Juan Moraleda y Esteban, historiador e membro da Academia Real de História de Madrid, que zela pelo túmulo do padre Bartholomeu de Gusmão, na cidade de Toledo, na Espanha, e ao marquês de Faria, fundador e presidente da Academia Aeronáutica Bartholomeu de Gusmão, de Paris, que têm feito publicar, a expensas próprias, uma série de livros em que estão colecionados todos os dados, documentos e pesquisas feitas sobre a iniciativa do glorioso inventor - renovando os agradecimentos da Municipalidade pelo muito que têm feito à memória do sábio santista.

Em redor do monumento, comissões de alunos dos grupos escolares estaduais e municipais e de escolas particulares aguardarão a chegada do préstito, que partirá do Largo Marquês de Monte Alegre, após a cerimônia do hasteamento da bandeira.

As solenidades na Praça Rui Barbosa, em frente à estátua do padre Bartholomeu de Gusmão, terão início entre 12,30 e 13 horas, conforme consta do programa supra.

- O sr. deputado César de Lacerda Vergueiro, presidente do Aero Club Brasileiro, será representado na cerimônia pelo sr. capitão João Salermo, diretor da secretaria da Câmara Municipal.

- Os srs. presidente da Câmara, prefeito municipal, e vereadores, após a cerimônia no Paço Municipal, dirigir-se-ão, incorporados, ao monumento, depositando ali uma coroa de flores.

No Real Centro Português - Uma sessão solene - O Real Centro Português, conceituada coletividade lusa desta cidade, vai prestar, hoje, simpática homenagem ao genial precursor da navegação aérea, padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão.

Assim é que aquela agremiação realizará, em seu salão nobre, pelas 21 horas, uma sessão solene, secundando, destarte, em nome da laboriosa colônia portuguesa de Santos, os festejos que serão efetuados pela Câmara Municipal, em homenagem à memória daquele ilustre santista.

Para essa solenidade, a diretoria do Real Centro Português já expediu vultoso número de convites às autoridades, imprensa, sócios e pessoas gradas.

Centro Republicano Português - Um convite - A diretoria deste Centro, desejando contribuir para o máximo brilhantismo da homenagem a ser prestada pela colônia portuguesa ao padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão, a qual será levada a efeito hoje, solicita de todos os seus associados que compareçam à romaria cívica organizada pelas autoridades municipais e na qual tomarão parte todas as sociedades lusas que, pelas representações, depositarão uma coroa no monumento do glorioso precursor da aviação.

Centro Espanhol de Santos - A distinta diretoria do Centro Espanhol de Santos, associando-se, também, às cerimônias de hoje, comparecerá no Paço Municipal, assistindo ali à festa da Bandeira, incorporando-se, depois, ao préstito que partirá dali em direção à estátua.

A mesma sociedade, em homenagem à memória do sábio santista, cujos despojos repousam em terra espanhola, depositará, igualmente, uma coroa de flores na estátua ao precursor da navegação aérea.


Retrato de Bartholomeu de Gusmão, existente na sala da Biblioteca da Câmara Municipal (de autoria do pintor Benedito Calixto)
Foto e legenda publicadas com a matéria

No Rio - Também no Rio de Janeiro a data de hoje será solenizada, por iniciativa do Aero-Club Brasileiro e da União Católica Brasileira.

Essa merecida homenagem ao precursor da aeronáutica constará de uma sessão solene, às 21 horas, no salão nobre do Instituto Nacional de Música, falando, em nome do Aero-Club Brasileiro, o sr. dr. Francisco Sá Filho, e, no da União Católica Brasileira, o sr. dr. Eugênio Vilhena de Moraes, que dissertarão sobre a personalidade histórica, patriótica e religiosa do padre-voador.

Há dias, conforme noticiamos, esteve reunida a diretoria do Aero-Club, assistindo à reunião, a convite do presidente, deputado dr. César Vergueiro, o dr. Joaquim Moreira da Fonseca, presidente da União Católica Brasileira, sendo, então, tomadas as necessárias deliberações para que a solenidade se revista da maior significação, de modo a, mais uma vez, ser reivindicada, para este brasileiro ilustre por tantos títulos, padre Bartholomeu de Gusmão, a glória de haver sido o verdadeiro precursor da navegação aérea.

Real Centro Português - Os associados do Real Centro Português reunir-se-ão, às 12 horas, na sede da Escola Portuguesa, de onde sairão, em cortejo cívico, que será formado pelas associações portuguesas, a fim de depositar uma coroa de flores no monumento do padre Bartholomeu de Gusmão, em nome da colônia lusa.

- A banda da Sociedade Musical abrilhantará, gentilmente, as homenagens que serão prestadas, nesta cidade, pelo Real Centro Português, ao "padre-voador".

No exterior - Em Portugal, na França e na Espanha, cujas nações, deram, em todos os tempos, as maiores demonstrações de carinho ao egrégio santista, serão efetuadas comemorações de caráter cívico-científico.

Em Paris, por iniciativa do marquês de Faria, haverá uma sessão solene na Academie Aeronautique "Bartholomeu de Gusmão", da qual aquele ilustre titular é presidente, e a que comparecerão personalidades de alto destaque nos círculos parisienses.

Além de idênticas homenagens em Lisboa, organizadas sob os auspícios do Aero Club de Portugal, o segundo centenário será também comemorado na Espanha.

O sr. dr. Juan Moraleda y Esteban, médico do serviço municipal de Beneficência da cidade de Toledo, membro da Academia Real de História de Madrid, e cav. da Real Ordem de Carlos III, tomou a si o encargo de ornamentar, hoje, o túmulo  onde repousam os restos do ilustre santista, no presbitério da igreja de San Ramon Martyre.


A figura, em bronze, do padre Bartholomeu de Gusmão (tamanho natural), que se encontra na estátua erguida na Praça Rui Barbosa - Trabalho executado pelo escultor prof. Lorenzo Massa
Foto e legenda publicadas com a matéria

Ainda na edição de 19 de novembro de 1924, página 2, do jornal santista A Tribuna, foi publicado este artigo assinado (ortografia atualizada nesta transcrição): 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

O Padre voador

Há quem acredite que só modernamente é que se cuidou em impor à admiração universal o nome do santista insigne, que a situação municipal atual definitivamente sagrou, elevando-lhe uma estátua na praça mais central desta cidade; esta crença carece de fundamento. E, na nossa humilde opinião, à homenagem que a edilidade santista lhe prestou, grande embora, falta ainda um atributo: a praça que contém a linda estátua não se deve chamar de Largo do Rosário nem Praça Rui Barbosa: ela deve-se chamar, simplesmente, de Praça Bartholomeu de Gusmão.

Também não nos parece razoável acreditar-se que as denúncias inquisitoriais se possam associar às suas experiências de física, porque entre elas, pelo menos, quinze anos medeiam.

Espírito superior, ele deve, em suas viagens, ter contraído relações intelectuais comprometedoras: naqueles tempos, ser admirador de Metastasio ou leitor de Voltaire era o bastante para dar ensejo ao Santo Ofício de efetuar diligências sempre desagradáveis aos precursores do grande movimento de 1789.

Leibenitz devia lhe ser familiar nos seus estudos favoritos; Quesnel, que atraiu sobre si a atenção de todo o mundo, com o seu livro sobre o jansenismo, talvez tenha tido em Gusmão um de seus admiradores. A discussão da bula Unigenitus dividiu em dois partidos formidáveis as pessoas inteligentes da época: a qual deles pertenceria Gusmão?

As denuncias naqueles tempos eram fáceis: às vezes, falsas ou carecendo de sérios fundamentos; mas, para se abater a influência de um homem ilustre e acatado na corte, como era este sábio luso-brasileiro, não é demais admitir-se uma intriga dessa ordem.

Viveu ele num período de atividade intelectual pouco comum; contemporâneo dos escritores citados já, ele o foi também de La Brayére, Stahl, Bossuet, Racine, Tournfort, Fenelon, Vauban, Papin, Lesage, Malebranche, Montesquieu, Daniel Foe, Addison, Hutcheson etc. etc.

Na eloqüência e na poesia, como na história e nas ciências exatas, na botânica e na moral, como na psicologia, Bartholomeu de Gusmão teve em seus contemporâneos os maiores representantes daquele tempo, dado era esperar.

E se seu nome não teve então a influência e a fama que à sua grande inteligência devido era, foi porque ele nasceu e foi viver num meio estreito ainda e ainda eivado de preconceitos, que a ignorância de uns e a inveja de outros - dos poetas que o satirizavam - por exemplo, sustentava e defendia.

Ainda assim, graças a D. João V, o moço sábio luso-brasileiro pôde escapar a todos os perigos a que uma inteligência tão nobre se expunha naqueles tempos; pôde deixar o seu nome cercado do respeito que seus méritos mereciam; e, finalmente, pôde deixar sinais tão evidentes de sua passagem e do seu saber, que, apesar de se admitir que o terremoto de Lisboa inutilizou a maior parte dos documentos que dele lá falavam, a sua estatura de sábio é tão alta, que até nas bibliotecas inglesas se encontram documentos a seu respeito.

Bartholomeu de Gusmão é, pois, um sábio de renome universal, e, sempre que oportuno se tornou, ele achou quem lhe defendesse a memória e lhe patenteasse a sua obra como sábio ou diplomata, orador sacro ou patriota.

Foi assim que, logo que os "Montgolfiers", em França, surgiram, alguém, em Lisboa, ergueu a voz e reivindicou para Gusmão a glória que aos dois franceses a ignorância e a parlapatice universais dar queriam.

Depois, de vez em quando, vozes competentes, patriotas e eruditas, vieram impondo ao mundo, com a energia que a razão dá, o nome do eminente santista; e o mundo aceitou e respeitou a obra destes abnegados obreiros da verdade e da ciência, tendo, na própria França, Larousse e Fernando Denis, entre outros, registrado nas suas monumentais enciclopédias o nome e os feitos do sábio glorioso.

Entre estes batalhadores, é de justiça salientar o dr. Augusto Felippe Simões e Brito Rebello; mas estes são os principais; a seu lado, antes e depois, muitos espíritos generosos vieram contribuir para que esta missão de justiça e reparação fosse completa.

Na revista portuguesa O Ocidente, muito se escreveu a seu respeito; e no almanaque da livraria Chardrou, para 1874, no Porto, o grande escritor Camillo Castello Branco escreveu contra os intelectuais contemporâneos de Bartholomeu de Gusmão uma carta, que é um doloroso termo-cautério impiedosamente aplicado.

Para se avaliar como esse grande espírito queimava a memória dessa gente, leia-se ao acaso este período: - "Tem o meu amigo ouvido dizer, e talvez já o dissesse, que a plebe é má porque é ignorante. A plebe de 1709 disse que o padre Bartholomeu de Gusmão era feiticeiro, mas os doutos, os poetas daquele tempo, que não acreditavam em feitiços, perseguiram o padre com a irrisão e, depois, com os quadrilheiros do Santo Ofício, porque ele, pactuado com o diabo, tecera as asas da passarola e afrontara a ignorância de frades e poetas, que nunca tinham ousado erguer-se acima da terra sem o auxílio de uma escada."

A prova mais cabal de que Gusmão foi feliz no seu invento e que só à ignorância dos seus contemporâneos se deve o fato de nunca mais pensar nele, é a estima que a família real lhe continuou a dispensar, apesar da guerra que os poetas de seu tempo e de seu tempo augures acatado, lhe moviam implacavelmente.

D. João V cumulou-o de louros e apoiou-o sempre e tanto, que o elevou à dignidade de fidalgo da capela real.

Diplomata habilíssimo, mais de uma vez foi por ele enviado a Roma, como emissário especial do governo português.

Em setembro de 1724, mais de 15 anos após as suas experiências aeronáuticas, é que teve necessidade de se ausentar; mas há que notar que a facilidade com que fugiu às impertinências do Santo Ofício e a placidez com que se fixou em Toledo denunciam bem a influência do seu poderoso protetor.

É que D. João V honra o súdito ilustre por largo tempo; e, quando a hora dos inquisidores soou, ele ainda teve a sorte de lho subtrair e enviar a terra segura, posto que estrangeira, onde se localizou e onde morreu em paz.

19-XI-24

A. D. de Mirandeira.


A Passarola, em que Bartholomeu de Gusmão realizou o primeiro vôo no mundo, em 8 de agosto de 1709, voando do Castelo de S. Jorge ao Terreiro do Paço, em Lisboa. Esse primeiro aparelho do grande sábio incendiou-se, ao tocar no torreão da Casa da Índia
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