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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - TORTURAS ETC.
Tempos negros da ditadura e do CCCS (3)

Sem defesa: alguém dizia que você era comunista e jogava a bomba...

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Matéria do jornal santista A Tribuna, em 28 de fevereiro de 2011, páginas A-1, A-4 e A-5:

Chamada da matéria, publicada na primeira página do jornal (A-1)

CRIMES SEM PERDÃO

Santista foi torturado e morto pela ditadura

O jornalista santista Luiz Eduardo Merlino morreu em 19 de julho de 1971, vítima da ditadura militar. Integrante do clandestino Partido Operário Comunista, foi submetido a choques elétricos e pauladas para delatar companheiros. O silêncio custou a sua vida.

Imagem: reprodução da página dupla A-4/A-5 com a matéria

Tortura e morte nos porões da ditadura

Pendurado no pau-de-arara, jornalista santista é submetido a sessões de choques elétricos e pauladas para delatar companheiros do clandestino Partido Operário Comunista (POC). O silêncio custou a sua vida

Renato Santana

Da Redação

Concepção gráfica: Luiz Sérgio Moura

O inconfundível óculos de aro grosso e escuro do jornalista Luiz Eduardo Merlino estava sobre uma mesa num dos corredores da Operação Bandeirantes (Oban), na Rua Tutoia, Vila Mariana, em São Paulo, central de tortura do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) paulista.

Naquele 15 de julho de 1971, militantes que não eram da direção do Partido Operário Comunista (POC), clandestino, desconheciam o retorno de Merlino da França, país onde se exilou quase um ano antes.

Leane Almeida, integrante do POC e contato de Nicolau (nome usado pelo jornalista na clandestinidade), seguia para mais uma sessão de interrogatório quando passou pela mesa e viu os óculos. Merlino estava ali e, barbaramente torturado, definhou durante quatro dias até a morte, em 19 de julho.

A raiva dos torturadores aflorava na medida em que Merlino não falava sequer o próprio nome. Tomou choques elétricos, pauladas e ficou 24 horas pendurado no pau-de-arara. Jogado numa solitária, chamada de cela-forte ou x-zero, o jornalista se queixava de fortes dores nas pernas, fruto de uma grave complicação circulatória decorrente da tortura. A dormência que sentia se alastrou por todo o corpo e o suplício foi testemunhado por outros presos políticos. Leane, da ala feminina, apenas ouvia os gritos de Merlino.

"Durante três dias seguidos ouvimos seus gritos. A repressão já possuía um organograma do POC e a atitude de Merlino de não falar nada (confirmada por um carcereiro chamado de Marechal) interrompia o fluxo de informações", disse.

Leane também sofreu torturas. No dia de sua queda e da de Merlino, muitos outros militantes do POC foram presos. Durante o suplício da jornalista, o enfermeiro da Oban disse, na sala de curativos, que ela estava bem se comparada ao "coitado que não tem nem mais onde se enfiar uma agulha". Ele se referia a Merlino.

Uma janela, junto ao teto da cela de Leane, dava para o pátio. Numa manhã, ela ouviu o alvoroço de veículos e agentes da repressão. Outras presas ergueram-na para ver o que se passava lá embaixo. "Vi o Merlino desacordado, possivelmente já morto, sendo colocado no porta-malas de um carro. Lembro que estava vestindo uma camisa de padrão xadrez miudinho, característica dele". À frente da atrocidade estava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista entre 1970 e 1974.

Em 2007, a família de Merlino entrou com processo criminal pedindo a condenação de Ustra por seus atos criminosos (tortura e morte de Merlino). O Poder Judiciário não aceitou. A justificativa é que a Lei de Anistia, de 1979, renuncia qualquer punição. Uma nova tentativa, dessa vez na área cível, está em andamento e o julgamento ocorrerá nos próximos meses. A intenção é deixar claro para a sociedade que Ustra é torturador e assassino.

Regina viu o irmão pela última vez da janela de casa, quando agentes da repressão o levaram até a Capital

Foto: Walter Mello, publicada com a matéria

Preso em Santos – Luiz Eduardo da Rocha Merlino nasceu em Santos, em 1948. Cresceu na Cidade e em São Paulo se destacou como jornalista no diário Folha da Manhã. Rose Nogueira, colega de redação de Merlino, lembra do amigo: "Uma pessoa muito educada, doce. No final da década de 60, era redator da editoria de Brasil. Tinha uma cultura incrível e um texto brilhante".

A comoção com a morte de Merlino foi grande. Amigos definiram-no em duas palavras: revolucionário de veludo. "Apesar de ser um militante político de uma organização clandestina, era muito delicado", disse Rose. E com a conhecida polidez, Merlino recebeu os agentes do DOI-Codi que foram buscá-lo na residência da família, no nº 13 da Rua Itapura de Miranda, Boqueirão, em Santos.

Por volta das 21h30 do dia 15 de julho, três homens armados e à paisana bateram à porta. Merlino tinha chegado da França dias antes. A irmã do jornalista, Regina Maria Merlino Dias de Almeida, abriu e os sujeitos, sem identificação, invadiram a casa. Um deles de metralhadora nas mãos. Durante uma hora interrogaram Merlino na sala da casa. A irmã, a mãe e a tia do jornalista presenciaram o interrogatório iniciado pelos agentes. Perguntaram por vários militantes do POC, entre eles Angela Maria Mendes de Almeida.

Merlino e Angela se conheceram em 1966 e iniciaram um namoro. Ela era estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) e ele, de História, além de já trabalhar como jornalista. A partir de 1968 passaram a militar juntos no POC e neste mesmo ano estiveram juntos no congresso da União Nacional de Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), interrompido pelas forças da repressão. Merlino fazia a cobertura jornalística para o jornal Folha da Tarde. Na ocasião, Angela foi presa e logo solta.

Em 1969, o POC caiu na ilegalidade. No ano seguinte, a situação se complicou. Muitos militantes do POC foram presos e torturados. Angela foi identificada e condenada de acordo com a Lei de Segurança Nacional. Era questão de tempo a localização do casal pelos órgãos de repressão. Desse modo, a organização decidiu que os dois deveriam sair do País por um tempo. Desembarcaram em Paris, na França, para estudos e contatos com 4ª Internacional Socialista – organização mundial à qual o POC era ligado.

O retorno de Merlino ao Brasil era justamente para providenciar a volta de Angela e reorganizar a resistência aos militares. Poucos sabiam da decisão de Merlino. Acredita-se que algum militante preso falou sob tortura ou os militares estavam espionando a casa da família Merlino. "Descobrimos uma base do DOI-Codi na frente da nossa casa, num apartamento. Ficavam da janela de um prédio olhando com binóculo", disse Regina.

Angela soube da morte do companheiro por meio do Jornal A Tribuna, que noticiou a missa de sétimo dia

Foto: Walter Mello, publicada com a matéria

Enterro e ameaças – No interregno da volta de Merlino ao Brasil e sua morte nos porões do DOI-CODi, Angela ficou sem informações na França. Passou a estranhar a falta de notícias. "Até que um amigo nosso, de Santos, me chamou para conversar com uma carta que falava sobre a morte de Merlino. Tive uma crise de desespero", relatou Angela.

O corpo do jornalista foi velado em Santos com o caixão lacrado. É bem possível que a informação da morte de Merlino tenha chegado através de notícia, publicada por A Tribuna, sobre a missa de sétimo dia, na Catedral da Sé.

Regina, irmã de Merlino, contou que os três homens que invadiram sua casa e levaram o jornalista para a Rua Tutoia estavam na primeira fila da missa de sétimo dia. "Os canalhas ainda vieram cumprimentar mamãe e eu. Minha mãe não os reconheceu e estendeu a mão. Eu os reconheci e não fiz o mesmo. Na saída falei para ela, que me disse: 'Quem sabe eles ficaram com remorso'". Merlino foi enterrado no Cemitério do Paquetá, localizado na região central de Santos.

No auge da ditadura militar e sob a censura imposta pelo Estado de exceção, a imprensa noticiou de modo discreto a morte de Merlino

Imagem: reprodução, publicada com a matéria

Luta pela verdade e justiça – Angela e Regina propuseram a ação criminal contra o coronel Brilhante Ustra em 2007. O Poder Judiciário indeferiu, fundamentando a sua decisão com a Lei de Anistia. "Eu diria que podemos chamar esse processo de guerrilha. A lei de anistia diz que estão anistiados os crimes políticos e conexos. Essa palavra 'conexos' não quer dizer nada. Ela auxilia o crime político e não se contrapõe. Mas houve uma convenção que aquilo queria dizer os torturadores. Uma convenção que se você tentar discutir juridicamente com alguém não se sustenta", explicou Angela.

O jurista Fábio Konder Comparato mudou de tática e entrou com a chamada Ação Declaratória na Área Cível. "O ajuizamento da ação tem sentido profundamente ético, e o pedido condenatório formulado constitui mera consequência processual desse sentido ético. O interesse das autoras não é econômico, mas puramente moral", diz Comparato no texto do processo.

Além desta ação envolvendo a tortura e assassinato de Merlino, o coronel Brilhante Ustra é citado em ação movida pela família Teles. No mesmo préido do DOI-Codi em que Merlino foi assassinado, na Rua Tutoia, Maria Amélia de Almeida Teles, militante de esquerda, foi torturada junto com o marido, os filhos e a irmã Crimeia em dezembro de 1972 – mantinham militância no então clandestino Partido Comunista do Brasil (PcdoB). A família foi torturada por Brilhante Ustra. Em 2008, o juiz da 23ª Vara Cível de São Paulo declarou Ustra como torturador em decisão inédita.

Comparato segue na argumentação processual: "Trata-se de saber se o novo Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 1988, reconhece ou rejeita, por intermédio de seu Poder Judiciário, a responsabilidade dos atos criminosos praticados pelo réu (Brilhante Ustra), na vigência do anterior Estado de arbítrio". O pedido é que o Judiciário reconheça o dano moral sofrido por Angela e Regina e a consequente condenação pelos atos de tortura.

 

Regina não esquece a dor que sentiu ao ver o irmão sendo levado: "Ele ainda nos defendeu porque um dos agentes ficava me cutucando com a ponta da metralhadora. Esse cara disse para mim que era analfabeto (ao observar a quantidade de livros que tinha nas estantes), mas que não tinha irmão terrorista. Respondi: ninguém te perguntou. Ficou uma fera"

 

Intenção era sumir com o corpo

Quatro dias depois de Merlino ter sido levado de sua casa, em Santos, a família do jornalista recebeu a notícia de que ele estava morto. A versão oficial dava conta de que cometera suicídio na BR-116, altura de Jacupiranga, Vale do Ribeira, quando era levado ao Rio Grande do Sul para identificar militantes do POC.

Os agentes do DOI-Codi pretendiam desaparecer com o corpo de Merlino. O plano daria certo, não fose pelo delegado da polícia santista Adalberto Dias de Almeida, marido de Regina. "Ele localizou o corpo do meu irmão num IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo. Estávamos todos na Capital e meu marido chegou dizendo: o Merlino está morto mesmo, mas ele não se matou. Foi torturado até a morte", relatou Regina.

Adalberto passou a ser conhecido como o policial parente de terrorista. Se aposentou sem nenhuma promoção. Morreu sem nunca ter falado como estava o corpo de Merlino: "Talvez por dor ou por querer me preservar. Não sei. Mas ele nunca conseguiu falar", disse Regina.

Um tio de Merlino, que acompanhou Adalberto ao IML, partiu para cima do médico que assinou o laudo necroscópico. O legista Isaac Abramovitch atestou, junto com um colega, Abeylard de Queiroz Orsini, que o jornalista faleceu de "anemia aguda traumática".

 

Na certidão de óbito de Merlino, lavrada em um cartório do Jardim América, em São Paulo, consta como declarantes Alcides Cintra Bueno Filho. Ele foi delegado de polícia e coveiro oficial de cadáveres produzidos pelo Dops e DOI-Codi. Tinha o apelido de Porquinho. Sua indicação foi feita por Romeu Tuma, então chefe do Dops e morto este ano.

 

Gritos do jornalista são lembrados

O repúdio de quem estava preso na Oban é completo. Atual presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe/SP), Ivan Seixas, estava numa das celas. Seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, foi uma das vítimas da Oban: "Nós ouvimos a noite inteira os gritos dele. Era o Nicolau (codinome de Merlino) que estava lá. De manhã, por volta das 5 horas, houve alvoroço porque ele tinha sido morto".

De acordo com Seixas, o coronel Brilhante Ustra participou das sessões de tortura e dirigiu a limpeza. "Ele que comandou a tortura. Tudo era sob o comando do Ustra. Na manhã da morte do Merlino, ouvíamos ele coordenando a limpeza deixada pela tortura, o destino do corpo", lembrou Seixas.

No livro Brasil Nunca Mais, obra que reúne denúncias e relatos sobre a tortura e as vítimas dela durante a Ditadura Militar (1964-1985), Laurindo Junqueira, ex-presidente da |Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de Santos, afirmou à 1ª Auditoria de São Paulo, em 1972, que assistiu a espancamentos de um companheiro de organização chamado Luiz Eduardo da Rocha Merlino.

Outra integrante do POC, Eleonora de Oliveira Soares, afirmou também ter assistido a morte de Merlino. O ex-ministro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos Paulo Vannuchi também estava na Oban nos dias em que Merlino esteve lá a caminho da morte. Junto com Ivan Seixas, ouviu o suplício de Merlino. "Aqueles gritos nunca mais saíram das cabeças de quem os ouviu", finalizou Seixas.

 

Luiz Eduardo da Rocha Merlino nasceu em Santos, em 1948, e estudou no Colégio Santista. Em 1970, já alvo dos órgãos repressores da ditadura, viajou para a França. O jornalista, que usava na clandestinidade o codinome de Nicolau, retornou no ano seguinte ao Brasil e foi detido na casa de sua família, no Boqueirão. Agentes do regime autoritário haviam instalado uma base em frente ao imóvel e o vigiavam. Levado ao quartel-general da Operação Bandeirantes (Oban), na Rua Tutoia, em São Paulo, morreu no quarto dia de prisão, em 19 de julho de 1971

 

Imagens: reproduções, publicadas com a matéria

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