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SANTOS DE ANTIGAMENTE - PINACOTECA - LIVROS
Memórias do Casarão Branco (07)

Clique na imagem para ir ao índice deste livroHerança da época áurea das exportações de café pelo porto santista, e uma das primeiras casas não-geminadas de Santos, a edificação que desde o final do século XX abriga a Pinacoteca Benedito Calixto, e foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (Condepasa) foi por várias décadas propriedade da família Pires.

Sua história foi contada pela escritora Edith Pires Gonçalves Dias, nesta obra publicada em 1999 e depois reeditada, com 130 páginas, impressa pela Mazzeo Gráfica e Editora Ltda., de Santos/SP. O livro foi composto e editado por Sonia S. Silveira, com capa de Carmem Silvia de Paula Cabral, revisão de Manuel Leopoldo Rodriguez Montero e contracapas de Orlando de Barros Pires e Maria Isabel Pires Isique. A autorização para esta primeira edição eletrônica foi dada pela autora a Novo Milênio, em 30 de julho de 2010. Páginas 65 a 76:

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Memórias do Casarão Branco

Edith Pires Gonçalves Dias

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VIRANDO A DÉCADA

No fim de 1929, aconteceu o crack da Bolsa de Nova York, atingindo duramente o comércio cafeeiro de nosso país e principalmente de nossa cidade.

A situação política também se tornava inquietante. Júlio Prestes, candidato do dr. Washington Luiz, venceu as eleições, mas não chegou a tomar posse.

Uma revolta chefiada por Getúlio Vargas explodira no Rio Grande do Sul, aos 3 de outubro. Suas tropas chegavam a São Paulo em três semanas.

Para evitar maior derramamento de sangue, altas patentes do Exército depõem o dr. Washington Luiz, que foi mantido no Forte de Copacabana até o momento de ser exilado para a Europa. Quanto ao dr. Júlio Prestes, foi recolhido na embaixada da Inglaterra, aguardando ordens para ir também para a Europa.

Estabelecia-se a ditadura em nosso país, assumindo as rédeas da nação o dr. Getúlio Vargas.

Lembro-me exatamente dos conflitos que ocorreram em nossa cidade, nesse fatídico 24 de outubro. Grupos de baderneiros dirigiram-se para a residência do dr. João Carvalhal Filho, correligionário do presidente deposto, que temendo as possíveis represálias deixara a casa juntamente com seus familiares. Ela foi invadida e depredada.

Era na Avenida Conselheiro Nébias, ao lado da Gota de Leite. Objetos de arte, louças, talheres, roupas foram roubadas. Muitas peças eram atiradas pelas janelas e o povo da rua as recolhia. Até mesmo o enxoval de sua filha Dizinha, que estava prestes a se casar, não escapou desse ato de vandalismo.

Alguém telefonou para nossa casa relatando o que estava ocorrendo. Corriam rumores de que esses agitadores pretendiam fazer o mesmo contra outros palacetes de nossa cidade.

Papai nunca se envolvera em política, pelo que não havia motivo de alarme, mas não deixamos de nos preocupar, mantivemos a casa às escuras e pelas frestas das janelas vimos grupos de baderneiros passarem em algazarra, mas, felizmente, nada foi feito contra nossa propriedade. Mamãe tinha um oratório no corredor de cima. Nele nos ajoelhamos, agradecemos a Deus, por nada nos ter acontecido.

Foi na virada da década, em 1930 e 1931, respectivamente, que nasceram no casarão Jorge e Otávio, filhos de Jorge e Leonor.

O ano de 1931 começou com grandes dificuldades. A crise atingiu o nosso dia-a-dia. Alguns empregados foram dispensados, para conter os gastos.

Beca estava cursando a Escola Normal do São José e decidiram que eu também fosse para esse colégio. Além do Stella Maris ser bem mais caro, não possuía curso Normal e, em vista da situação econômica adversa, todos acharam que eu devia me preparar para ser professora.

Creio que foi a primeira grande decepção da minha vida. Eu adorava o colégio por todos os motivos já expostos. Adorava o uniforme de verão, todo branco, com pregas que saíam dos ombros tornando-o muito bonito. O de inverno, composto de saia pregueada e blusão de sarja cinza, com punhos e gola de fustão branco bem engomados. Adorava as faixas coloridas que a rapaziada chamava de arreios...

Orlando e Olavo já estavam formados e começaram a trabalhar.

Em 1932 fui para o Colégio São José, no curso complementar que antecedia o curso Normal. Na parte da manhã freqüentava um curso de preparatórios em casa de da. Zeny Goulart, na Avenida Bartolomeu de Gusmão 75. Era uma casa bem antiga, com grande arvoredo à sua frente. Eu e as colegas procurávamos chegar antes do horário fixado e ficávamos jogando bola, divertindo-nos até que o vulto respeitoso da nossa professora aparecesse na varanda, acenando-nos para entrar.

Com a ditadura, ocorreram várias reformas no ensino. Feitos os exames de admissão, em vez de irmos para o 1º ano Normal, passamos a ser 4º ano ginasial, que naquele tempo era de cinco anos.

No fim desse ano, Beca formou-se professora e logo passou a trabalhar no grupo Cesário Bastos, como substituta, e como efetiva, no Ateneu José Bonifácio, fundado pelo dr. Porchat de Assis.

REVOLUÇÃO PAULISTA

O ano de 1932 foi muito difícil para todos. São Paulo, não suportando mais os desmandos do ditador, começou a se insurgir contra esse regime e preparar-se para lutar pelo direito de todos os brasileiros: uma constituinte e o retorno à democracia com a realização de novas eleições.

Os ânimos se exaltaram com a morte de quatro estudantes, Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, durante um conflito no dia 23 de maio. Nascia o movimento MMDC. Aos 9 de julho foi declarada a Revolução Constitucionalista, considerada até hoje como a maior prova de bravura do povo paulista. Lamentavelmente, ela não teve a ajuda que esperava de outros estados e acabou sendo derrotada.

Toda sociedade santista se movimentou. Os homens se alistavam como voluntários, seguindo para as frentes de batalha. As moças e senhoras se empenhavam em confeccionar fardas e agasalhos, para distribuição às tropas. As possibilidades econômicas eram pequenas, mas o amor pela causa fez com que se iniciasse a "Campanha do Ouro para o Bem de São Paulo". Foram arrecadadas milhares de jóias. Em nossa casa, foi tudo doado.

Não tendo mais o que oferecer, papai reuniu objetos de arte, tapetes persas e quadros de artistas famosos e montou uma vitrine na Casa Pedro dos Santos, para que fossem vendidos em benefício da revolução. Como havia dificuldade em comprá-los, em razão da situação econômica, cada vez pior, não conseguiram vender nenhuma peça e, com o final da revolução, elas retornaram para nossa casa.

Chico, que fora para a frente de batalha, foi feito prisioneiro e levado para a Ilha Grande. Até que soubéssemos do seu paradeiro, ficamos muito aflitos, sem saber se estava vivo ou morto. Só nos tranqüilizamos quando nos chegou a notícia de sua prisão. Quando ele voltou, esperávamos vê-lo abatido, magro, mas deu-se o contrário. Ganhou muitos quilos que, aliás, conservou e aumentou até o fim da vida...

Meu irmão Olavo, muito jovem ainda, ficou no Guarujá. Diariamente, mamãe preparava algumas guloseimas que, acomodadas num cesto, eram levadas pelo nosso fiel jardineiro, para Olavo e seus companheiros.

Muitos santistas perderam suas vidas: João Pinho, Carolino Rodrigues, Tiago Ferreira, Alfredo Schammas, Januário dos Santos, Ivampa Lisboa, Elói Fernandes, Alfredo Albertini, Durval do Amaral, Antonio Damin, Pérsio de Souza Queiroz Filho, Dagoberto Gasgon, Sebastião Chagas, Indalécio Costa, Alfredo Ximenes e Adolfo Porchat.

Os reflexos da crise do café incidiam com intensidade em nossa vida. Papai contava com dificuldades imensas, mas tinha a felicidade de contar com a compreensão da família. Reduzíamos os gastos, sempre que possível.

Eu estava com treze anos e, sem que me fosse exigido, renunciava às coisas que desejava e tomava as iniciativas que julgava necessárias. Comecei a ensaiar os primeiros passos na costura. Papai usava umas camisas italianas de tricoline de seda, listadas, que tio Bulle trouxera da Europa. Quando elas rasgaram no colarinho, aproveitei o restante que estava em boas condições e, sem qualquer noção de corte e costura, fazia blusinhas para mim, usando-as com a saia azul marinho do Colégio São José.

Certamente, de início, não seriam grande coisa. Mas mamãe, sempre maravilhosa, me ofertava grande incentivo, fazendo algumas correções. Naquele tempo, as mulheres não usavam calças compridas e eu ia patinar com esse traje improvisado. Aos poucos fui confeccionando vestidos e a verdade é que, aos 17 anos, costurava para mamãe e Beatriz. Clóvis adorava os vestidos que eu fazia para ela.

Abençôo as experiências que tive de enfrentar na tão difícil fase da nossa vida e sinto até orgulho por ter sabido aceitá-las e tirar delas grande proveito. Ajudava mamãe nos afazeres de casa, sem que ela o solicitasse. Tudo que fazia era espontâneo, ou, talvez seja melhor definir, como exata consciência dos meus deveres.

Nos estudos também sofri limitações, pois não podia comprar os livros indicados pelos professores. Então, eu prestava muita atenção nas explicações dadas na aula, ia rabiscando os assuntos num papel e, depois, em casa, formulava meus próprios pontos. E a verdade é que sempre me mantive nos primeiros lugares da classe. A primeira era sempre a nossa querida Ada La Scala, inteligência notável; a seguir, a Gilda Arruda Silveira e, em terceiro lugar, sempre estava eu.

Que saudade das colegas, muitas já se foram, e dos grandes professores que tivemos: Camargo, Luiz dos Santos, Edmundo Mendonça, Zeny Goulart, Laura Filgueiras, Quercita Falção, Nina Mazagão, Zulmira Campos, a quem devo meu gosto pela literatura, e Paulo Gomes Gardim. De parceria com meus pais, eles fizeram de mim o que sou.

Apesar de, mais tarde, a vida me sorrir e me oferecer condições que me compensaram das carências sofridas, abençôo realmente os reveses sofridos, que me tornaram compreensiva, paciente e tolerante com as adversidades.

Como o mundo mudou! Não se pode generalizar os fatos, mas a mocidade, hoje, é, quase sempre, exigente, não hesitando em sacrificar seus pais. A liberalidade excessiva, que lhe é concedida, só traz prejuízos e infelicidade. As concessões exageradas tornam os jovens sem estímulo para lutar pelas imprescindíveis conquistas.

LEMBRANÇAS DE MUITA GENTE

Para irmos ao São José, eu e outras colegas do bairro tomávamos o bonde na esquina da avenida, em frente da chácara do Júlio Conceição, o saudoso Parque Indígena. Na calçada havia uma palmeira contornada por uma mureta de alvenaria. Ali nos sentávamos até o coletivo chegar.

Ficávamos um tanto alvoroçadas e até mesmo um pouco exibidas, pois esse bonde servia também um grupo de rapazes que tinham aula pela manhã, no Santista e no Luso-Brasileiro. Entre eles, Oswaldo Paulino, Victor Vallejo, Luiz Oswaldo Negrão, José Augusto Rittes, Cleomar e Edgard Gonçalves, Raymundo Farah, Plínio Camargo. Era um convívio gostoso e de muito respeito. De repente, sinto aquela satisfação imensa de ter sabido conservar tantas amizades nascidas na adolescência.

Quando saíamos do colégio, geralmente vínhamos a pé até a Praça da Independência. Eram nossas companheiras, nessas andanças, Vera e Carmem, filhas do sr. Ismael de Souza, inspetor da Cia. Docas de Santos, cidadão estimado, de caráter íntegro e muita dignidade.

Conhecíamos todos os moradores daquele percurso e a quem pertenciam as casas, na maioria já desaparecidas. Lembro de Benedito Gonçalves, dos Covas, do Augusto Paulino dos Santos, dos Murray, dos Fernandes Carrera, dos Andrade, dos Simonsen, da família da tão querida Regina Stella Ferreira Martins, dos Vallejo, dos Espinhel, dos Lage, dos Negrão, dos Suplicy, dos Biller, dos Pontes, dos Pierri, dos Montero, de Polidoro Oliveira, de Sigefredo Magalhães, de Guiomar Fagundes, e outros que o tempo apagou de minha memória. Há uma forte lembrança de tantos casarões já demolidos, permanecendo nítida a silhueta do Palácio Episcopal, onde hoje estão o Cine e o Hotel Indaiá.

Em 1933, Chico casou-se com Nayr Del Nero. A cerimônia foi em Aparecida do Norte. A princípio eu não iria ao enlace, por não estar preparada, uma vez que a situação nossa piorava a cada dia. Mas a tia Leonor, com pena de mim, procurou nos seus guardados alguma coisa que desse para fazer o milagre de se converter num vestido. Encontrou um corte de "celes" rosa, com o qual fez um vestido tipo "Jamper", com uma blusa de filó, de salpicos de cor branca.

E lá fui eu, feliz da vida, participar do grato acontecimento. Nayr e Chico vieram morar em nossa casa, onde nasceu Ana Maria, a primeira filha, aos 16 de abril de 1934. Exatamente na véspera, conheci o Cyro, com quem vim a me casar em 1939, realizando uma caminhada de 58 anos, numa verdadeira simbiose de almas e corações.

Quero agora falar dos vizinhos, logo além da casa dos Wisling. Era uma casa muito grande, com porão alto. Chegava-se ao terraço por grande escadaria de pedra. Ali morava a família de José Vaz Guimarães Sobrinho. Dona Sinhazinha e o senhor Juquinha formavam um casal extremamente simpático, ela muito extrovertida, desmanchando-se em gestos de cordialidade a quantos freqüentavam sua casa. Eram seus filhos o Ricardo, que veio a ser médico, casando-se com Nathalia Salgado, Mariza, Constâncio, Conceição, Antonieta e José Roberto, o caçula. Estabeleceu-se, entre eles e os Pires, uma grande amizade.

Ainda há pouco tempo, Antonieta, hoje casada com Paulo Bandeira, dizia-me que, quando ia à janela do apartamento onde morava, no Edifício Núncio Malzoni, e olhava a pérgula com três bancos, logo à entrada do casarão branco da praia, lembrava-se de quando ali ficávamos, eu, Edith Araujo, Conceição e ela, vestindo as nossas bonecas, sob a orientação carinhosa de minha irmã Beca. Conceição veio a casar-se com o dr. Roberto Carvalhal.

José Roberto era uma graça! Trocava algumas letras por outras, o que tornava seu falar extremamente gracioso... Que me perdoem os fonoaudiólogos! Mas sua maneira de expressar-se era realmente encantadora.

Uma lembrança marcante, dessa época, nasceu de uma idéia do Orlando. Conseguiu umas pernas-de-pau, que o tornavam de uma altura imensa. Amarrou um lençol na cintura, vestiu um sobretudo de papai e um chapéu que quase lhe encobria o rosto. Caracterizado como um verdadeiro fantasma, bateu à porta dos Vaz Guimarães. A empregada da família, ao abri-la, quase desmaiou, mas o Orlando tratou de identificar-se e tudo terminou em risadas.

Recordo-me também do namoro da Mariza com o Fernando Ratto. Nessa época a rua já estava pavimentada. Ao lado dos trilhos havia uma calçada, não muito larga. Ele ficava circulando por ela durante longo tempo. Mariza, do terraço, correspondia-se apenas pelos olhares. Era o mesmo sistema dos namoros em nossa casa.

Constâncio foi um grande esportista. Chefiou várias delegações santistas nos Jogos Abertos do Interior e seu nome foi dado ao Ginásio de Esportes do Ibirapuera.

Depois da casa dos Vaz Guimarães, estava a residência do cônsul da Suécia em Santos, sr. Oscar Lundquist, gerente da Johnson Line Co., agência sueca de navegação. Ele tinha duas filhas moças, mas que não tinham convívio conosco, apenas um relacionamento formal.

Naquela época, os partos se faziam nas residências. Passaram por nossa casa as conhecidas parteiras, Madame Labart, Esther Rivas e Maria Pergolizzi. Mamãe tinha orgulho de ter uma verdadeira maternidade em seu lar, com todo aparelhamento para enfrentar a realização do maior milagre da natureza: - o desabrochar de uma vida humana.

Nossa família continuava crescendo. A chegada de sobrinhos virou rotina. Muitos nasceram no casarão. Além dos já citados, o Luis Carlos, em 1927, o Milton, em 1929, Mariza e Heloiza, em 1930, e o Ivo, em 1932.

O mais interessante no ritual por ela seguido nesses eventos, era o dia em que os umbigos caíam! Religiosamente, ela os levava até um canteiro onde só havia plantado "amor perfeito". Ali os enterrava. Hoje vejo, nesse fato, um simbolismo. Realmente, um filho representava a materialização de um amor perfeito, da união de duas criaturas que cumprem a missão sublime que é constituir família.

Antes de encerrar este capítulo, quero reverenciar aqui a excelsa figura de Maria Patrícia, que assistiu minha mãe no nascimento dos seus primeiros filhos. Criatura de grandes virtudes, sua pele escura escondia uma alma de incomparável brancura!

GENTE DE CASA

Dando continuidade a essa narrativa, quero citar outras famílias que, não tão próximas, eram, contudo, freqüentadoras de nossa casa.

Na Rua Oswaldo Cruz havia a casa de veraneio da família Conzo, grandes empresários paulistanos, que constantemente passavam temporadas em nossa cidade. Logo se estabeleceu um alegre convívio entre as famílias. Mais adiante residiam os Pol Fernandes e os Angerami.

Já na esquina com a Epitácio Pessoa, morava o Mário Barros Fontes, alto funcionário da Alfândega, casado com Ruth Piza. Tinham dois filhos, o Achiles e o Arnaldo. Uma filha deste último, Maria de Fátima Egydio Fontes Pimentel, por um feliz acaso, é hoje aluna de piano e grande amiga de meu filho Ciro Jr.

Com eles residia um irmã de da. Ruth, a Branca, que mais tarde veio a se casar com Nicolau Lunardelli. Os jovens freqüentavam nossa casa e jamais esquecerei a Branca, que me ensinou a fazer tricô. Com tão boa professora, o aprendizado se tornou fácil, iniciando por uma blusa azul água, de ponto de segredo...

A Avenida Epitácio Pessoa ainda tinha raras construções. Bem atrás de nossa casa, havia o chalé de madeira onde morava o lenheiro, que nos fornecia a lenha necessária. Sua mulher, de vez em quando, nos presenteava com uma grande broa de milho, uma delícia!

Mais adiante, estava o Armazém 5 de Outubro, de secos e molhados, do qual nos tornamos fregueses. Faço uma referência especial a esse estabelecimento, que é presença marcante na minha infância e que admiro por sua longevidade. Hoje é o Bazar 5 de Outubro, que tem tudo que se possa imaginar. Continua nas mãos da família que o fundou. Como isso é bonito!

Ele foi fundado em 1918 por Elísio da Silva & Prazeres. Da. Maria Prazeres, conhecida em todo o bairro, era um das sócias. O estoque do armazém oferecia grande variedade de artigos estrangeiros, em especial os vinhos portugueses.

Em sua longa trajetória, foi passando para outros elementos da família, como J. Esteves & Cia., e hoje pertence a um dos sobrinhos dos primeiros proprietários. Sua filha Célia ali trabalha, dando a toda a freguesia um atendimento muito carinhoso. Realmente, Célia irradia simpatia.

Passando a avenida, bem no canal 4, a mansão da família Federici. Henrique e Lydia foram grandes amigos. Crescemos lado a lado. Talvez isso explique o fato dela tantas vezes referir-se a mim e ao casarão em suas crônicas.

Eu era fascinada pela figura de da. Amália, uma das mulheres mais elegantes que conheci. Guardo uma imagem que jamais se apagou. Ela de vestido lilás, um tecido esvoaçante e grande chapéu de palha roxo. Era uma elegância só!

Pelo canal em direção à praia, íamos encontrar a família Souza Mello. Um casal com oito filhos. Ele era alto funcionário do Banco do Brasil. Não me lembro de todos os nomes, mas Ruth era uma adolescente de rara beleza. O Paulo também me encantava quando, vindo nos fins de semana a Santos, pois estava no colégio interno, desfilava com a linda farda dos salesianos.

Nessa época já havia o rinque de patinação no Miramar e muito convivemos nesse divertimento. Ficamos tristes quando o sr. Souza Mello foi transferido para o Rio de Janeiro, onde assumiu a carteira cambial do Banco do Brasil. Mas ficou uma saudade gostosa dessa feliz convivência.

Na casa ao lado, residia a família de Thomas Ritscher. Tinham um casal de filhos, a Margot e o Thomas Júnior. Este tornou-se o maior amigo do Orlando, amizade que persiste ao longo do tempo. Nós o chamávamos apenas de Tommy. Ele se casou com Cecília Macedo Soares e formam uma família admirável.

Logo depois, vinham os Baillão, já citados, e a família Maia, rapazes e moças que também freqüentavam nossa casa. O Raul, pela sua grande estatura, tinha o apelido de Fumaça. As moças eram todas muito bonitas. O Nelson tornou-se o pai do conhecido ator Nuno Leal Maia.

Mesmo morando um pouco mais distantes, eram inúmeros os freqüentadores de nossa casa. Os Taveira, principalmente o Fernando, cujo apelido era Doca, muito amigo do Chico. Certa vez, mamãe fez um colete de tricô para o Chico, branco, com detalhes no decote, em azul e vermelho, Enquanto mamãe não fez um igual para o Doca, este não sossegou.

O banho de da. Dorotéia, por ocasião dos festejos carnavalescos, era uma tradição do Clube de Regatas Saldanha da Gama. O Chico e o Doca participavam dessa realização e contavam com a colaboração de mamãe, que se esmerava na confecção das fantasias. Tenho muita pena que ele tenha se desvirtuado, ao ponto de ser banido do calendário dos festejos carnavalescos.

Faziam presença em nossa casa os Bento de Carvalho; Nazareth e Alvim, irmãos de nossa querida Candinha Ribeiro de Mendonça; Ivo Brancato, que imitava com perfeição um galo cantando; os Ribeiro dos Santos, Américo, o Memé, Gasatão e Nilde, muito ligados ao Olavo; Thomas Ritscher, Waldir Campos Pacheco, Carlos Caldeira Filho e os Maracajá.

Num carnaval, não posso precisar o ano, alguns deles compareceram ao baile do Clube XV, todos de branco e com as faixas do Stella Maris...

As respeitáveis cônegas de Santo Agostinho não gostaram da brincadeira, mas não sabiam a quem pertenciam as faixas. Eu, coitadinha, inocente nessa história, era a verdadeira possuidora delas!

As freiras eram muito rígidas. Ocorre-me reproduzir um fato, que se deu quando ali estudava. A aluna Sarita Ozores Troncoso, hoje Sarita Vallejo, que sempre foi de grande beleza, apareceu com um corte de cabelo que estava muito em moda. Obedecia o modelo Sue Carol, artista de projeção na época, que lançou a inovação.

Tratava-se de um corte bem curto e, o redor do rosto, surgiam os "pega-rapaz", aumentando o seu encanto. Sabem qual foi a represália das freiras? Fizeram a Sarita permanecer com o chapéu do uniforme na cabeça, durante todo o período de aulas, até que seu cabelo retornasse ao comprimento de hábito. É de rir, não?

A quadra de tênis do casarão era também um forte atrativo. Ali compareciam, todas as tardes, amigos e parentes para desfrutar do apreciado esporte. Tio Bulle, Miroel Silveira, Ivone Quintino, Oscar Cox, os Ribeiro Leite. Quando não havia árbitro, eu adorava me aboletar na sua cadeirinha, ou entretinha-me apanhando as bolas atiradas longe. TUdo era divertimento naquela idade.

Houve a fase em que brincava com as amigas e as sobrinhas Lena e Lúcia, na casa de bonecas, onde havia tudo que há numa casa de verdade. Mamãe colaborava com doces e bolos que servíamos na louça de brinquedo. Que gostoso era!

O dia em que mamãe se dispunha a fazer pão em seu forno caipira, era uma festa. Parece-me vê-la com as faces coradas pelo calor do forno, retirando, com a grande pá de madeira, os pães já assados, dispostos sobre folhas de bananeira. Fazia receitas diferentes, ora doces, ora salgados. De gloriosa memória, os pães recheados com lingüiça.

Também nos divertíamos com uma pequena charrete, puxada por um bode.

Luiza Canero - Antonio Canero

Foto publicada na página 85 do livro