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BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 05


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 1 a 15):

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Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

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Imagem: cabeçalho de página da obra (página 1)

CAPÍTULO I - QUESTÕES PRELIMINARES

Primeiras dúvidas entre os donatários sobre limite e posse das suas terras. - O que dizem os cronistas sobre esse assunto. - A donataria de Martim Afonso e a donataria de Pero Lopes. - As povoações que existiam nessa época. - A ilha de Guaimbé passa a chamar-se Ilha de Santo Amaro e a fazer parte da Capitania de Pero Lopes. - Ação dúbia ou dolosa dos governadores. - O capitão Jorge Ferreira tenta em vão fundar uma vila na ilha de Guaimbé, por conta de Pero Lopes.

este um assunto assaz importante de nossa história, do qual já tantos historiadores se têm ocupado, desde os séculos 18º e 19º e mesmo até nos nossos dias, restando, entretanto, alguns pontos a elucidar e muitas lacunas a preencher.

De todos os nossos historiadores, foram, incontestavelmente, Pedro Taques e fr. Gaspar os que mais se esforçaram em averiguar e expor os pontos intrincados e obscuros dessa longa demanda, trazendo à luz da publicidade grande cópia de documentos importantes e fortes argumentações.

Quem, porém, estuda hoje com calma e isenção de ânimo todas as fases e peripécias do litígio entre os herdeiros de Martim Afonso de Souza e de seu irmão Pero Lopes de Souza [1], que durou perto de dois séculos, há de forçosamente reconhecer que, embora a unidade de vistas e propósito desses dois cronistas andassem sempre em harmonia, no intuito de derramar luz sobre os pontos mais obscuros e de provar as injustiças tão clamorosas que então se praticavam contra o direito dos legítimos herdeiros de Martim Afonso, há de reconhecer ainda que estes historiadores não só se contradizem e claudicam, às vezes, como deixam grandes e importantes lacunas, as quais poderiam ser preenchidas naquela época, se os dois autores tivessem o cuidado de pesquisar, nos arquivos da Câmara de Itanhaém e demais vilas dessa capitania, os documentos que aí deveriam existir [2].

A obra escrita por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, publicada após sua morte, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, no 1º trimestre de 1847, sob o título História da Capitania de S. Vicente, nada mais é que uma Razão de Apelação - aliás muito justa, implorando a decisão de el-rei sobre as injustiças praticadas, nesse litígio, contra os direitos dos condes de Vimieiro e da Ilha do Príncipe.

Na carta dirigida aos sr. d. João de Faro, "Príncipe da Santa Basílica Patriarcal e do Conselho de Sua Majestade", que precede a dita História da Capitania de S. Vicente, vem este período final que bem exprime o seu intuito de historiador honesto e sincero: "Terei grande prazer que este meu excessivo como gostoso trabalho resulte em total utilidade ao exmo. sr. conde de Vimieiro, benemérito sobrinho de v. Ex. [3], para que restituído do que se tem tirado ao seu antigo morgado de Alcoentre, haja este de aparecer tão avultado que, em todo o reino de Portugal não admita competência com outro algum por muito grande que seja o rendimento; porque na verdade, esta Capitania, pela natureza da doação e foral, excede tanto o nome de morgado, que bem merece o de reino, pelas rendas que ao donatário pertencem.

"A pessoa de v. exc. guarde Deus, dilatados anos, dando-lhe vida vigorosa e forças, para que tenha a consolação de ver metido de posse ao exmo. sr. conde de Vimieiro desta sua Capitania, que algum dia foi denominada de S. Vicente (depois de Itanhaém) e hoje de S. Paulo".

Isto foi escrito por Pedro Taques em 3 de janeiro de 1772, época em que a antiga demanda ainda não estava terminada.

Dizem e afirmam, entretanto, alguns historiadores nossos contemporâneos que o litígio entre os donatários da Capitania de São Vicente (que passou depois a se denominar, ilegalmente, Capitania de Itanhaém) já estava terminado em 1772, pois el-rei d. José I havia anexado a Capitania de Itanhaém aos domínios da Coroa, por uma Carta Régia datada de 1753 e indenizado, ao respectivo donatário, a parte que de direito lhe pertencia.

Os esforços por nós empregados, até hoje, em descobrir essa Carta Régia de 1753, ignorada por Taques, da qual os autores modernos nos dão notícia, têm sido infrutíferos. Nem nos arquivos de São Paulo, nem nos do Rio de Janeiro, nem tampouco nos das Câmaras Municipais das vilas que estiveram sob a jurisdição da Capitania de Itanhaém, pudemos encontrar tal documento!

No Processo Vimieiro-Monsanto, publicado pelo dr. Antonio de Toledo Piza, no tomo V da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, na parte em que se refere à anexação à Coroa das duas capitanias de S. Vicente e Santo Amaro, diz o erudito autor: "Sem liquidar a questão de limites entre os donatários de S. Vicente e Santo Amaro, o governo português considerou a barra de S. Vicente como linha divisória e assim S. Vicente, Santos e S. Paulo ficaram incluídos na compra feita ao marquês de Cascais e anexados aos domínios da Coroa. Mais tarde o marquês de Pombal resgatou também a Capitania de S. Vicente [4] e a anexou aos domínios reais e assim desapareceram as duas antigas donatarias e as questões sobre a sua posse de divisa".

Em baixo desta página (149), o sr. dr. Antonio Piza escreveu esta pequena e lacônica nota: Este resgate feito pelo marquês de Pombal foi por ato de 1753-54.

Este ato ou essa Carta Régia, de 1753-54, anexando a Capitania de Itanhaém (antiga Capitania de S. Vicente), aos domínios da Coroa, não conta, nem do Processo Vimieiro-Monsanto, nem dos Documentos Interessantes do Arquivo Público do Estado de S. Paulo, publicados pelo ilustrado autor!

Se a donataria de Martim Afonso de Souza, conhecida ainda nessa época por Capitania de Itanhaém, ou Capitania de S. Vicente, houvesse sido anexada aos domínios da Coroa e necessariamente indenizado o seu respectivo donatário - em 1753 ou em 1754, como diz o autor do Processo Vimieiro-Monsanto -, não haveria razão para que fr. Gaspar e Pedro Taques viessem, vinte e três anos depois, dizer em suas memórias que o tal processo não estava terminado, visto que o governo da Metrópole não havia indenizado os respectivos donatários [5].

Nas "razões" apresentadas por Pedro Taques em 1772, alega ele não só os direitos que tinham ainda os donatários da Capitania de S. Vicente em reaver o que lhes pertencia, nessa venda ilegal feita pelo marquês de Cascais ao governo português em 1711, como - e mui principalmente - pelo esbulho que o mesmo governo havia praticado contra os condes de Vimieiro, privando-os da posse dessas cem léguas de costa e respectivo sertão que constituíam a Capitania de S. Vicente ou Capitania de Itanhaém, a qual, na opinião do mesmo Pedro Taques, "não admitia competência em todo o reino de Portugal" [6].

Não ousaremos contestar, ou negar, a existência da Carta Régia ou desse Ato do marquês de Pombal de 1753-1754, anexando o resto da capitania de Martim Afonso aos domínios reais, simplesmente pelo fato de não termos podido ver e manusear esse documento que nem Taques e nem fr. Gaspar, que com tanto interesse se ocuparam do litígio entre as duas donatarias, fizeram a menor referência a este ato do ministro de d. José I, que, alguns anos antes, deveria ter posto um termo à velha demanda! Ocupar-nos-emos ainda deste assunto, provando a não existência deste ato, quando tivermos ensejo de analisar os atos da Coroa e dos capitães-generais, na incorporação da vasta região da Capitania de Itanhaém à de S. Paulo.

A donataria de Martim Afonso de Souza primitivamente chamou-se Capitania de S. Vicente e abrangia cem léguas de costa e sertão ilimitado, divididas em duas partes, uma das quais começava na Barra de Bertioga e terminava doze léguas ao Sul de Cananéia, no lugar denominado Ilha do Mel, na barra do Lagamar de Paranaguá.

Diz o foral ou alvará dessa doação, concedido por d. João III, a 20 de janeiro de 1535: "Estas quarenta e cinco léguas (do Sul) começarão no Rio de S. Vicente (Bertioga) e acabarão doze léguas ao Sul da Ilha de Cananéia e no cabo das ditas doze léguas se porá um padrão, com as minhas armas".

Este padrão (diz Pedro Taques, na sua mencionada obra escrita em 1772), "descobriu agora, em Paranaguá, Afonso Botelho de Souza, andando na diligência da fundação de uma nova fortaleza: o dito padrão é uma pedra e nela esculpidas as reais armas de Portugal" (vide mapa topográfico da vila e fortaleza de Paranaguá, que vai no capítulo respectivo).

"A outra parte, ao Norte, que se compunha de cinqüenta e cinco léguas, diz ainda o mesmo foral, começava de treze léguas ao Norte de Cabo Frio (Rio Macaé) e acabava na barra do Rio Curupacé". O Rio Curupacé é hoje conhecido pelo nome de Jiqueriqueré, e fica ao Norte de São Sebastião.

A parte da donataria de Pero Lopes de SOuza, denominada mais tarde Capitania de Santo Amaro, composta de cinqüenta léguas de costa, estava assim dividida, conforme determinava o Foral de doação, passado pelo mesmo rei d. João III: "uma parte, ao Sul, que se compunha de quarenta léguas de costa, que começarão, de doze éguas ao Sul da Ilha de Cananéia [7], e acabarão na terra de Santa Anna (Santa Catarina), que está na altura de vinte e oito graus e um terço, e na dita altura se porá um padrão, e se lançará uma linha, que só correrá a l'Oeste".

A outra parte, ao Norte, que estava compreendida entre o dito Rio Curupacé (Juqueriquerê) e a barra de Bertioga, diz ainda o referido Foral, "compunha-se de dez léguas de costa".

Além destas cinqüenta léguas de costa assim discriminadas, foi ainda concedida a Pero Lopes de Souza outra doação de trinta léguas de costa, nas costas de Pernambuco e Paraíba, entre a Baía da Traição e Ilha de Itamaracá.

A razão desta extravagante e caprichosa divisão das duas donatarias, de Martim Afonso e de Pero Lopes, em seções intercaladas uma nas outras [8], já foi dada pelo dr. Theodoro Sampaio e baseia-se no fato de ser já conhecida, nessa época, pelos dois irmãos, a notícia da existência de minas de metais preciosos no interior desses sertões. A divisão, assim feita, viria evitar a possível injustiça de ficarem essas minas incluídas em uma só donataria.

Na pequena Memória que escrevemos para a Revista do Instituto Histórico de S. Paulo, sob o título A Villa de Santo André e a Primeira Povoação de Piratininga, já nos ocupamos também deste assunto, abundando nas mesmas razões do dr. Theodoro Sampaio.

"Martim Afonso fundou logo a vila de S. Vicente para sede da sua donataria e tomou, sem demora, diversas providências para seu povoamento", diz o dr. Antonio Piza (obra citada, "enquanto que Pero Lopes, talvez mais interessado no comércio de pau-brasil, da sua seção de Pernambuco, descuidou completamente das duas seções do Sul, que ficaram por muitos anos em abandono até depois da sua morte". Quando Martim Afonso fundou São Vicente não era ainda donatário.

A donataria de S. Vicente, não obstante os esforços de Martim Afonso e de seus loco-tenentes, não fez também notáveis progressos nesses primeiros tempos. Em fins do século XVI, só existiam nela quatro vilas pouco prósperas, que eram S. Vicente, Santos, S. Paulo e Conceição de Itanhaém, cujos predicamentos datam de 1532, 1546, 1560 e 1561. Algumas dessas povoações, como a de S. Paulo e Itanhaém, que foram elevadas a vila em 1560 e 1561, já haviam sido povoadas em 1532 e 1533, tempo em que o donatário aqui se achava. Outras povoações, como Iguape, Cananéia, que só receberam o predicamento de vila no começo do século XVII, já existiam também nessa época (vide Memoria historica da Capitania de Itanhaen, na parte que se refere à fundação dessas vilas).

No planalto da serra, nas proximidades da vila de São Paulo, já floresciam também, em 1580, algumas povoações como Parnaíba e outras que tiveram predicamento de vila no começo do século XVII. Se nessa época a Capitania de S. Vicente não se expandia mais, com novos arraiais e núcleos, é porque, como dizem Theodoro Sampaio e Gentil de Moura, "os domínios dos portugueses, nesse tempo, não iam além de Parnaíba e Cotia, cerca de 35 quilômetros ao poente da vila de S. Paulo". A seção das terras de Pero Lopes compreendidas entre Rio Juqueriquerê e Rio da Bertioga - que é o que nos interessa -, compunha-se, como se refere o Foral de doação já citada, de dez léguas apenas, que permaneceram em abandono por muito tempo, após a morte de seu donatário.

A respeito da morte de Pero Lopes, diz fr. Gaspar: "Somente posso assegurar que já era morto em 1542, porque sua mulher d. Izabel de Gambôa, no fim deste ano constituiu capitão loco-tenente das 50 léguas (das duas seções) a Christovam de Aguiar de Altero, e ouvidor a Antonio Gonçalo Affonso, como tutora que era de seu filho Pero Lopes de Souza. Este menino sucedeu a seu pai e foi o segundo donatário. Morrendo com pouca idade, passou a capitania a seu irmão Martim Affonso (sobrinho), que teve também como tutora sua mãe, d. Izabel de Gambôa".

Esta seção da capitania de Pero Lopes não tinha ainda, nesta primeira época, o nome de Capitania de Santo Amaro, porque os seus donatários e loco-tenentes, em observância ao que se achava determinado na Carta e Foral de Doação, só exerciam jurisdição na parte compreendida entre a foz do Juqueriquerê e a barra da Bertioga.

A ilha de Guaimbé - Santo Amaro - estava ainda muito legalmente fazendo parte da Capitania de São Vicente, como se depreende das concessões de sesmarias feitas pelos capitães loco-tenentes de Martim Afonso de Souza, conforme os documentos citados por fr. Gaspar e Pedro Taques, e outros que agora publicamos.

As cartas de sesmarias concedidas pelos primeiros loco-tenentes de d. Izabel de Gambôa eram bem explícitas neste ponto, isto é, em determinarem  parte de que então ela se achava de posse, na qual não vem mencionada a dita ilha de Guaimbé (ou Guahibe) que não tinha ainda o nome de Santo Amaro [9].

Na Carta de Sesmaria concedida a Jorge Pires, em 1545, por Christovam de Aguiar de Altero, cujas terras estavam situadas da Barra da Bertioga para diante, declara este loco-tenente: "Eu lhe dou a dita terra assim como pede, por se acharem na capitania da dita senhora d. Izabel de Gambôa e seu filho Pero Lopes de Souza" (Cartório da Provedoria da Fazenda - Livro de Sesmarias, Titulo - 1562).

A Capitania de Santo Amaro era nessa época conhecida simplesmente por Capitania da Sra. d. Izabel de Gambôa ou Capitania de Pero Lopes, como se está vendo.

"A primeira vez que vejo fazer-se menção da Ilha de Santo Amaro [10] mas, sem este nome, e ainda com o de Guaibe, como incluída nas 50 léguas de Pero Lopes, até no fim do ano de 1543, é no termo de vereação de 22 de dezembro, no qual o escrivão que o lavrou chama a Gonçalo Affonso, Ouvidor de Guaibe, por ser ouvidor das 50 léguas, sem falar em Santo Amaro...".

Fr. Gaspar pensa que a Carta de Doação de Martim Afonso devi ter vindo com João de Souza em 1532. A data 28 de setembro de 1532, em que foi lavrada, invalida esta afirmação: João de Souza poderia, quando muito, ter trazido algum Alvará de lembrança. Dando de barato que a doação partisse do reino apenas assinada e fosse logo transcrita no Tombo da Vila de S. Vicente, já não existiria na época em que começaram as dúvidas entre as duas capitanias, porque - logo após a retirada de Martim Afonso, os castelhanos de Iguape atacaram e incendiaram a primitiva Vila de São Vicente - em 1534 -, destruindo o livro do Tombo.

A Carta de Doação feita a Pero Lopes de Souza diz que a divisão desta parte de sua donataria seria "pelo Rio de S. Vicente da Banda do Norte", ao passo que na Carta de Doação de Martim Afonso de Souza, quando trata dessa mesma divisa, os termos são mais claros: "Será pelo Rio de S. Vicente - Braço da banda do Norte".

Ora, como o Rio ou Lagamar de São Vicente tem três saídas, ou três barras ou braços que deságuam no oceano, esse Braço da Banda do Norte era, incontestavelmente, a barra da Bertioga, e, portanto, a ilha de Guaimbé, ou de Guaibé, estava dentro da Capitania de São Vicente.

Os loco-tenentes de Martim Afonso, como já ficou dito, haviam concedido anteriormente muitas sesmarias nessa ilha de Guiambé, que de 1545 em diante, estava sendo mais ou menos povoada.

Entre esses moradores da ilha de Guaimbé, estava o ouvidor das terras de d. Izabel de Gambôa - Gonçalo Affonso -, ao qual já nos referimos. Este Gonçalo Affonso, por fatuidade, ou por comodidade, para as suas funções de ouvidor, é que teve a idéia de anexar, às terras de d. Izabel de Gambôa, essa ilha de Guaimbê, na qual se havia estabelecido, e propôs então à mesma d. Izabel que "as divisas de suas terras seriam daí em diante não pela barra da Bertioga, mas sim pela barra Grande de Santos".

A interpretação feita por Gonçalo Affonso, dizem os cronistas, foi baseada nesta declaração da dita carta - banda do Norte - conforme a doação de Pero Lopes. "Pode ser, acrescenta o cronista, que se enganasse Gonçalo Affonso, supondo, sem malícia, que d. João III, não tendo na primeira Mercê declarado a divisão, com clareza, mandasse depois que fosse pela Barra do Meio".

Para firmar esse engano,ou esse erro, origem de controvérsias e de intrincadas questões depois movidas, muito contribuiu, por certo, a ausência dos dois primeiros donatários que se achavam na índia e também o descuido de d. Anna de Pimentel, mulher de Martim Afonso, "a qual (diz ainda fr. Gaspar), devendo logo mandar para S. Vicente uma cópia autêntica da Carta de Doação, que el-rei fez a seu marido, depois dele ter navegado para a Ásia, parece foi omissa nesta parte, e por isso, se ignorava em S. Vicente a divisão contida na dita Carta, na qual declara el-rei que o Padrão se levante no Rio de S. Vicente, braço da banda do Norte".

Além de desídia ou descuido por parte de Martim Afonso e de sua mulher, o que mais contribuiu para que esse engano prevalecesse e viesse prejudicar seus herdeiros foi a atitude dúbia e quase escandalosa, que tiveram nessa questão os próprios loco-tenentes de Martim Afonso e alguns camaristas da vila de S. Vicente, os quais, em vez de se oporem à anexação da ilha de Guaimbé à Capitania de Pero Lopes, ainda contribuíram para que isso se realizasse, sem o menor atrito entre as partes.

Essa graciosa ou dolosa concessão, que tão insignificante lhes parecia então, viria, com o correr dos tempos, acarretar a espoliação tão clamorosa e tão injusta da qual haviam de ser vítimas os herdeiros primogênitos de Martim Afonso, quando os condes de Monsanto, em virtude da posse da ilha de Guaimbé (já então conhecida com o pomposo título de Capitania de Santo Amaro), viessem reclamar também o direito e a posse da Ilha de S. Vicente, com as suas respectivas vilas e com as demais povoações do planalto inclusive a vila de S. Paulo, da qual eles, os herdeiros da Capitania de Pero Lopes, fariam em breve a sede de sua Donataria de Santo Amaro, com o falso nome de Capitania de São Vicente; e, isto, ainda, com o assentimento das Câmaras da Capitania de Martim Afonso.

Da Carta de Doação, feita a Pero Lopes, em Évora, diz ainda o cronista vicentino, "foram extraídas duas cópias que ficaram registradas - uma na Câmara da Vila de Guaiana, hoje cabeça da Capitania de Itamaracá, e outra na Câmara de S. Vicente; porém, confrontando-se o texto destas duas cópias com a que trouxe d. Antonio Caetano de Souza nas 'Provas da Historia Geneologica da Casa Real Portuguesa', notam-se em ambas erros capitais - na parte essencial da doação que é a demarcação das 80 léguas nela concedidas; erros que talvez foram feitos nas ditas cópias por dolo..."

A Carta transcrita por d. Antonio Caetano de Souza, de fato, não é a cópia do original primitivo, isto é, do Foral de d. João III, mas sim da Carta de Confirmação das oitenta léguas, passada por d. João V ao marquês de Cascais, quando este vendeu à Coroa as cinqüenta léguas denominadas Capitania de Santo Amaro, em cuja venda foram incluídas as vilas de S. Vicente, Santos, S. Paulo, Paranaíba etc.

O dolo, a que se refere fr. Gaspaar, consistiu em mudar o número de léguas que ficavam compreendidas entre o Juqueriquerê e Bertioga e outras emissões, como já ficou demonstrado, a fim de que essa seção pudesse abranger, não só até o Rio de Santo Amaro (Barra Grande), como também até a barra do Rio de S. Vicente, conforme adiante explicaremos.

Tudo isso se fazia com a aquiescência das autoridades das câmaras e dos habitantes da Capitania de S. Vicente, fundada e povoada por Martim Afonso de Souza, em prejuízo de seus legítimos herdeiros e representantes!...

Entre os loco-tenentes de Martim Afonso de Souza que patrocinavam a causa de d. Izabel de Gambôa, na época em que a Ilha de Guaimbé foi anexada à Capitania de Pero Lopes, é citado o nome do capitão Jorge Ferreira.

"Este sujeito" - diz o autor das Memorias para a Capitania de S. Vicente - era dos primeiros da terra e dos mais nobres povoadores de S. Vicente. Estava casado com Joanna Ramalho, filha de João Ramalho e neta de Martim Affonso Tibiriçá, príncipe dos Guaianases, senhores da terra; era muito amigo de Christovam Monteiro, homem nobre, que depois casou com uma filha sua, e também de José Adorno, fidalgo genovês, muito rico e poderoso que veio a ser marido de uma neta sua. Todos os respeitavam muito por suas qualidades e alianças. Martim Afonso de Souza, quando cá esteve, e depois seus loco-tenentes, haviam concedido sesmarias de terras em Guaibe a João Ramalho, Jorge Ferreira, Christovam Monteiro, José Adorno e Antonio Macedo, filho de João Ramalho, e a outros irmãos seus, cunhados do dito Ferreira; de sorte que eles, seus parentes e amigos - possuíam quase toda a ilha, e por isso fez - com a sua autoridade - que os principais habitantes de Guaibe obedecessem ao filho de Pero Lopes".

"O mencionado Jorge Ferreira - continua o cronista - e mais habitantes principais de Guaibe, intentarão criar nela uma vila e, com efeito, derão princípio a uma Povoação, e nesta edificarão uma Capela dedicada a Santo Amaro. O título da capela não só se comunicou à povoação, mas também à ilha, como fica dito, e o nome desta passou às 50 léguas de Pero Lopes, as quais entrarão a chamar-se Capitania de Santo Amaro, depois que erradamente supuserão incluída nelas a Ilha do mesmo nome" [11].

Eis a maneira curiosa e insólita como se formou essa parte da Capitania de Santo Amaro, que tanta preponderância teve sobre a Capitania de São Vicente, subjugando-a e usurpando-lhe afinal não só a sua vila capital e as demais, como o título que lhe havia dado o seu fundador Martim Afonso de Souza.

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PLANTA TOPOGRÁFICA DA VILA DE ITANHAÉM - Demonstrando o traçado da primitiva vila e da Ermida no tempo de Martim Afonso e do outro traçado - de 1624 - após a edificação do Convento de N. S. da Conceição

Imagem: mapa inserido entre as páginas 4 e 5 da obra (Clique na imagem para ampliá-la)


[1] Quando nesta questão de Litígio entre as duas Capitanias (principalmente a partir do começo do século XVIII) nos referimos aos herdeiros de Pero Lopes de Souza, não queremos dizer que esses herdeiros sejam seus descendentes, mas aqueles que herdaram seus direitos sobre as capitanias de Santo Amaro e Itamaracá, depois de extinta sua família, na pessoa de d. Izabel de Lima, última descendente, que faleceu no fim do século XVI, antes do início definitivo dessa demanda.

[2] Nem frei Gaspar, nem Pedro Taques, fizeram pesquisas nos arquivos de Itanhaém e das demais vilas desta Capitania, antes de escreverem suas memórias. Fr. Gaspar serviu-se apenas das investigações feitas por Marcellino Pereira Cléto. Pedro Taques diz "que mandou copiar alguns documentos nessas vilas", mas lá não esteve pessoalmente.

[3] O autor fala aqui do conde de Vimieiro e não do verdadeiro donatário da capitania de Martim Afonso, que seria, nesta época, o conde de Ilha do Príncipe ou de Lumiares, como ficou se chamando por imposição de Pombal, conforme se vê do respectivo capítulo que se refere aos diversos donatários da Capitania de Itanhaém.

Nesta mesma carta dirigida a d. João de Faro, diz Pedro Taques: "Na mesma frota satisfiz a esta comissão, enviando a v. ex. uns apontamentos, que foram úteis para a causa entre o exmo. sr. conde de Vimieiro e o de Lumiares".

Este "conde de Lumiares", como se verá adiante, em uma nota feita pelo dr. Capistrano de Abreu, era o próprio "conde da Ilha do Príncipe", forçado a mudar o seu título por uma imposição do marquês de Pombal.

Deste dizer de Pedro Taques, isto é, que suas pesquisas históricas foram úteis para a causa entre o exmo. sr. conde de Vimieiro e o de Lumiares, parece coligir-se que, entre os dois herdeiros do morgado de Alcoentre, houve também alguma ação ou demanda, independente da que estamos tratando.

Nem Taques, nem fr. Gaspar, entretanto, nos esclarecem sobre este ponto.

[4] A Capitania de São Vicente - é preciso que se note - era então Capitania de Itanhaém. Os respectivos donatários não haviam ainda desistido desse título, como se verifica dos velhos documentos dessa época.

[5] Nos documentos oficiais do Arquivo Público de São Paulo, não existe esse Ato do marquês de Pombal ou essa Carta Régia de 1753-1754, anexando à Coroa a parte da Capitania de Itanhaém, que ainda estava sujeita aos donatários - condes da Ilha do Príncipe -, como está demonstrado.

Nas rebuscas que temos feito no Arquivo da Câmara Municipal de São Paulo, nada descobrimos sobre o referido Ato. No volume 168, que trata do Registro de Ordens Régias, de 1737-1757, bem como no vol. 145, Registro Geral de 1753-1766, nada consta também sobre tal assunto.

[6] Na estreita zona de dez a doze léguas que compreendia a seção da Capitania de Santo Amaro (Rio Curupacê à Barra da Bertioga) só havia então duas vilas: São Sebastião, no litoral, e Mogi, em serra-acima.

Entretanto, na venda à Coroa ficaram compreendidas não só as vilas de São Vicente e Santos, como as de São Paulo, Parnaíba e as demais que se achavam nessa zona.

[7] Diz Pedro Taques, em uma nota ao referir-se a este trecho do Foral: "Note-se que aqui é o lugar onde acaba a doação de Martim Afonso de Souza e se chama Barra do Paranaguá, onde Affonso Botelho de Souza descobriu o padrão referido".

[8] Vide Processo Vimieiro-Monsanto, do dr. Antonio de Toledo Piza. Vol. V. - Rev. do Inst. Hist. de S. Paulo.

[9] Memorias Historicas para a Capitania de S. Vicente, por fr. Gaspar - 1797 - e Historia da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques - 1772.

[10] Fr. Gaspar, obra citada.

[11] Essa povoação ou vila de Santo Amaro teve duração efêmera. Na obra de fr. Gaspar, Memorias para a Historia da Capitania de S. Vicente, vem ainda esta referência: "Em Santo Amaro e Guaibe nunca houve vila alguma; até a povoação de Jorge Ferreira se extinguiu antes de ter Pelourinho, e subir a maior predicamento, igual foi o sucesso da primeira Capela do Santo Abade, a qual também se arruinou totalmente e por esta razão os almoxarifados da Fazenda Real guardaram as suas alfaias, segundo consta de um livro da Provedoria da Fazenda Real de S. Pulo onde vem a carga, que dela se fez ao almoxarife Christovão Diniz, aos 24 de setembro de 1576". Nas Cartas dos Jesuitas - 1549 em diante - há, entretanto, várias referências à Vila de Santo Amaro na ilha do mesmo nome, mas está provado que essa povoação nunca teve predicamento de vila nem Pelourinho.

Imagem: adorno da página 15 da obra