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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/10/09 18:55:32

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Novo (des)acordo ortográfico

Matéria publicada na revista semanal AT Revista, do jornal santista A Tribuna, em 4 de janeiro de 2009, páginas 6 a 9:

Imagem: reprodução da capa da publicação

CAPA

Por dentro da reforma ortográfica

Bem antes de entrar em vigor na última quinta, a nova ortografia tem dividido opiniões. Colunista da AT Revista, o professor Pasquale Cipro Neto não só explica o que mudou como faz críticas à tentativa de unificar a escrita do português pelo mundo

Stevens Standke

Essa é a quarta grande reforma ortográfica pela qual a língua portuguesa passa no prazo de um século. A primeira foi em 1911, quando a escrita se aproximou da fala. As outras revisões aconteceram em 1943 e 1971. E agora, em 2009, entram em vigor as regras elaboradas em 1990, com o objetivo de unificar a grafia nas nove nações que adotam o português como língua oficial: Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

Em comparação com os outros membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), as mudanças por aqui não serão tão bruscas - estima-se que atinjam cerca de 0,5% da nossa ortografia atual.

Para entender melhor essa transição, a AT Rrevista bateu um papo por telefone com o colunista e escritor Pasquale Cipro Neto. Na entrevista a seguir, o professor de 53 anos - que é natural de Guaratinguetá, mas adotou São Paulo para morar - fala também do caminho que percorreu até alcançar o posto de apresentador do Nossa Língua Portuguesa, no rádio e TV Cultura, da sua paixão por futebol e avalia a influência da Internet na linguagem do dia a dia da população.

TRANSIÇÃO

Acha que a nova reforma ortográfica preocupa muita gente?

Não há nenhuma razão para desespero. As pessoas terão que se readequar. Nós vamos precisar aprender, nos acostumar com isso. E haverá tempo para tanto, pois a lei diz que até 31 de dezembro de 2012 valem as duas grafias - embora se saiba que toda a imprensa adotou as novas regras logo após a virada de ano. Ou seja, muita gente deve ter levado um choque ao pegar o jornal no dia 1º e ver, por exemplo, antissocial com dois esses (ss), antirreligioso com dois erres (rr) ou ideia sem acento.

Acha que o prazo de quatro anos é realmente suficiente?

Imagino que ele seja mais burocrático, para que as editoras possam se acomodar e, quando forem republicar seus livros, tenham condições suficientes para readaptá-los. Mas acho que a transição poderia ser feita em menos tempo. Apesar de que, na reforma de 1971, a lei estipulava cinco anos para a adequação. De qualquer maneira, penso que quatro anos são mais do que suficientes para que todos se enquadrem.

Mas há quem questione a necessidade dessa reforma...

É bom deixar claro que não se trata de uma modificação da língua portuguesa e, sim, da sua grafia, que é algo bem diferente. Não se mexe em uma língua por lei ou decreto. Ela é um sistema que evolui. Os seus usuários vão fazendo as alterações com o tempo e as situações. O que existe é uma reforma, que, na verdade, nasce como um acordo de unificação ortográfica. Teoricamente, ele elimina as diferenças gráficas entre o português do Brasil e o dos demais países lusófonos. Com exceção da gente, basicamente, todos seguiam Portugal. A idéia é evitar as barreiras que o contraste gráfico acaba criando...

Por exemplo?

Na hora de redigir documentos internacionais e publicar obras para o mundo inteiro. Na prática, essa questão da grafia diferente dificilmente funciona como um obstáculo para o lançamento de livros nos diversos países lusófonos. O José Saramago nunca permitiu que suas obras fossem traduzidas no Brasil. Sempre exigiu, em contrato, que seus livros fossem publicados aqui como em Portugal. E isso jamais virou motivo de impedimento de leitura. Você não sabe do caso de um brasileiro que tentou ler Saramago e não conseguiu por que havia um p em adoção (adopção).

E no que se refere ao lado diplomático?

Quanto aos documentos internacionais, pode até ser. De fato, toda vez em que Brasil e Portugal assinaram algo, sempre ficava a questão: em que português grafar? Virava e mexia, havia a necessidade de existirem duas versões do mesmo documento: uma grafada como se escreve lá e outra aqui, com o nosso português. Logo, em tese, a idéia de unificar a ortografia para eliminar essas barreiras é saudável. No entanto, não vejo como algo estritamente necessário. Eu não faria só por causa disso.

MOTIVO

Na sua opinião, o que realmente justificaria uma reforma ortográfica?

Se fosse para fazer, eu faria uma que eliminasse velhos problemas, como o do emprego do hífen, que não foi resolvido na reforma atual. Portanto, é verdade que o texto oficial deixa muita coisa em dúvida, que a gente não sabe como vai ficar no fim das contas.

Há uma previsão para que isso seja resolvido?

Nós só saberemos como ficarão tais aspectos quando o Vocabulário Ortográfico estiver pronto, o que deve acontecer no fim de fevereiro. Isso deveria ter ocorrido antes. A lei precisaria entrar em vigor já com o vocabulário pronto. Por sinal, ele deveria ser preparado em conjunto. Todos os países aceitaram que o Brasil e Portugal fizessem o vocabulário que valeria para os nove. Acontece que Portugal não participou dessa elaboração, pois demorou para resolver a questão, votou a reforma no Parlamento apenas em 2008. E, embora o projeto tenha sido aprovado no Parlamento e sancionado pelo presidente, a lei ainda não foi regulamentada. Não se sabe quando entrará em vigor em Portugal. O Brasil não quis esperar e resolveu agir sozinho, o que fere o acordo. Ficou algo bastante nebuloso, com cheiro de precipitação.

CONTRASTE

Existe alguma chance de a gente se confundir com o significado de alguma palavra?

Não vai acontecer nada nessa linha, até porque a questão é meramente ortográfica. Não tem nada a ver com semântica, sintaxe... Cada povo tem sua história, sua cor, seus sotaques, suas particularidades.

A fala, então, fica distante da escrita?

Ninguém, por exemplo, vai mudar a pronúncia da palavra ideia porque não viu o acento. Aliás, ideia, assembleia e geleia não têm acento em Portugal faz tempo. Nesse caso, houve uma concessão brasileira. Agora, ao se tratar das letras mudas - por exemplo, p de adoptar e c de víctima -, Portugal é quem cede. Isso não interfere em nada nas pronúncias de cada um dos nove países. Veja também que, desde o dia 1º, o Brasil não usa mais acento em voo, enjoo, veem e por aí vai.

REGRAS

Quais são as principais modificações impostas pela reforma ortográfica?

São três. Uma no alfabeto, pois k, w e y voltaram a integrar o alfabeto oficial - eles haviam sido excluídos na revisão de 1943. A segunda mudança é nos acentos. Embora não exista um acento novo, houve várias alterações nas palavras que já tinham acento. Em resumo, os acentos apenas caíram, nenhuma palavra ganhou acento. A única exceção é fôrma, que na regra antiga não recebia acento e hoje, por piada do acordo, isso é optativo. Além do que já foi citado anteriormente, morreu o trema, o acento do o e do e nas paroxítonas, quase todos os diferenciais - exceto o pôde e o pôr. Creio que o para do verbo parar não devia perder o acento. É um absurdo ter de escrever duas palavras do mesmo jeito, como acontece em ela para para pensar.

Faltou mencionar a terceira grande mudança...

Ela é a principal: o emprego do hífen mudou radicalmente. Não existe mais aquela particularização de tal grupo de prefixo pede hífen com isso ou aquilo, o outro requer em determinada situação... Há uma regra igual para todo mundo, que, fora os detalhes nebulosos, leva em conta, essencialmente, dois aspectos: nos prefixos e elementos de composição como mega, multi, macro e mini, só existe hífen quando a palavra agregada começar com h ou uma letra igual à última letra do prefixo ou elemento de composição. Por exemplo, anti-inflamatório e antissocial - nos agregados que iniciam com r ou s, deve-se dobrar o r ou o s.

Qual o conselho para quem quer se adequar logo à reforma?

Essencialmente, ler o material que os grandes jornais publicam sobre a reforma. As pessoas não precisam se tornar especialistas no assunto. Podem pegar o resumo das mexidas, que é algo, teoricamente, simples. Também devem observar a grafia dos textos dos jornais e revistas. Isso pode abreviar e facilitar o processo de adequação.

O senhor já está totalmente adaptado à nova ortografia?

Sim. No entanto, como não gostei da forma como essa reforma foi conduzida, serei bígrafo. Vou escrever publicamente na nova ortografia, mas, intimamente, na velha. Só vou tombar na passagem de 31 de dezembro de 2012 para 1ºde janeiro de 2013, se estiver vivo até lá.

 

"Há pouca leitura, o ensino do português muitas vezes é precário, privilegia a nomenclatura gramatical em detrimento da funcionalidade do idioma e do conhecimento efetivo do seu uso. O quadro é um tanto quanto sombrio"

 

As pessoas têm escrito e falado melhor o português?

Falar é uma coisa, escrever é outra. Eu diria que as dificuldades que as pessoas apresentam em relação aos dois processos se manifestam nas situações formais. Ninguém tem problemas para resolver fatos do cotidiano, como sair de casa para comprar açúcar e voltar falando que não conseguiu porque o português atrapalhou. Agora, quando o sujeito precisa se expressar ou escrever para uma situação formal, técnica ou que fuja do dia a dia, fica complicado. Qual a razão? Falta de contato com essa variedade da língua. Há pouca leitura, o ensino do português muitas vezes é precário, privilegia a nomenclatura gramatical em detrimento da funcionalidade do idioma e do conhecimento efetivo do seu uso. Nas avaliações nacionais e internacionais, o brasileiro médio sempre vai mal. Ao meu ver, esse quadro é um tanto quanto sombrio e quase não melhora com o passar do tempo.

Quais os erros mais comuns?

Não gosto de comentar isso, pois não penso assim. A questão fundamental é a incapacidade de perceber a conexão do texto. Várias vezes, as pessoas lêem algo e estabelecem nexos inexistentes. Por exemplo, o sujeito não saber distinguir uma certeza de uma dúvida. A dificuldade é principalmente de compreensão, o que não significa que as pessoas não cometam falhas gramaticais.

Quais as dúvidas mais recorrentes que recebe?

O pessoal que me pára na rua sempre faz perguntas bem pontuais... A expressão tal exige o quê? Como se grafa tal palavra? Por que dizemos tal termo? Qual a origem disso? Já quem escreve para a coluna costuma ter dúvidas um pouco mais elaboradas, normalmente sobre textos. Algo do tipo: o que se entende de determinada passagem? Ela é ambígua?

Vê com bons olhos o impacto da rede mundial de computadores na língua portuguesa?

Nem com bons, nem com maus. A Internet é um veículo e, dependendo da situação, a linguagem que se usa nela é adequada. Por exemplo, a forma com as pessoas escrevem no MSN é aceitável. Nesse contexto, há pressa, é quase um telefonema teclado, de modo que não faria sentido esperar que alguém escrevesse como em um texto técnico. Logo, abrevia-se as palavras e cria-se todos aqueles mecanismos que facilitam a comunicação. O importante é saber que existe uma roupa que vale para esse território e, fora dele, os trajes são outros. Quando o sujeito tem apenas essa roupa, fica de sunga no tribunal ou de terno na praia (risos).

DIDÁTICA

Anteriormente, o senhor disse que a qualidade do ensino do português muitas vezes é precária. Acredita que as escolas tentam rever sua metodologia?

É impossível falar de uma forma uniforme. Há ainda o velho ensino gramatiqueiro, que considero horrível. E existe gente que, por causa disso, acha que se deve abolir definitivamente a gramática da aula de português, o que também é horrível. Afinal, as escolas colocam nas ruas pessoas que não sabem diferenciar um substantivo de um adjetivo. Há também quem trabalha apenas a questão da oralidade ou da chamada língua vivíssima - ou seja, da crônica, do gibi. Essa abordagem é boa, mas se torna ruim quando só se recorre a ela. O ideal é trabalhar tudo. Preparar o aluno para ser capaz de ler um gibi, um editorial de jornal, um texto clássico, uma receita, a letra de um rap, um poema do século 19 etc.

A sua proposta de simplificar o ensino do português, aproximando-o da realidade da população, foi criticada pelos lingüistas, principalmente no início do Nossa Língua Portuguesa. Chegou a se preocupar com os comentários negativos?

Eu não dei e não dou a menor importância para isso, pois o meu critério é observar o resultado concreto do que faço. E esse resultado é curioso: as pessoas conhecem o que faço e muita gente passou a se interessar pela língua portuguesa justamente a partir da descoberta do meu trabalho. Portanto, se desagrado a direita ou a esquerda, é algo que não vem ao caso, que não me diz nada. Outro dia, fui a um restaurante e não sabia que havia outros professores almoçando no local. Um deles me chamou para dizer que liberei demais, que abri todas as portas, o que não podia (risos). Logo depois, outro professor veio falar que eu defendo o uso da língua do século 12. O sujeito precisa ser muito bobo, mal-intencionado e analfabeto para fazer um comentário assim. Se fosse ligar para o que comentam...

TRAJETÓRIA

Como surgiu a idéia para a abordagem que faz nos programas da rádio e da TV Cultura?

O programa na TV nasceu do de rádio, que também se chama Nossa Língua Portuguesa e estreou em 31 de março de 1992 - data nojenta, do Golpe militar. Quando me convidaram para trabalhar na Rádio Cultura, pediram para que apresentasse um projeto que atendesse o desejo da emissora de produzir um programa que tratasse da língua, sem ser um curso tradicional. Então, eles visitaram várias escolas atrás de professores interessados. Diversos colegas se candidataram e gravaram pilotos. No fim, escolheram o meu projeto. Em 1993, a Fundação Padre Anchieta, que é a mantenedora tanto da rádio quanto da TV, perguntou se não queria produzir uma versão televisiva do Nossa Língua Portuguesa. Meu projeto foi aprovado para entrar no ar em 1994.

HOBBIES

Como é o professor Pasquale fora da mídia?

Olha, é muito difícil eu não fazer nada e me dedicar ao ócio. Não sei o que é isso. Sempre estou fazendo algo dedicado ao meu trabalho, seja na leitura, propriamente, de livros da área, seja na leitura ou na audição por prazer, que está ligado diretamente ao que faço. Futebol também me dá prazer. Amo ver os jogos, só que não com os olhos de torcedor.

Por quê?

O torcedor, coitado, não assiste ao jogo. Ele vê o time dele. Amo o jogo em si, o seu drama, o seu teatro.

Torce para algum time?

Sim, para um time que, graças a Deus, não existe: o Juventus. Quem torce para ele, não torce para ninguém e fica livre para assistir à partida. Se eu fosse corintiano, palmeirense ou sei lá o que, não veria o jogo e, sim o Corinthians, o Palmeiras, o São Paulo... E ainda ficaria esperando o outro time errar. Eu não aguardo isso. Torço para os dois acertarem. Quanto mais bonita a partida, melhor para todo mundo.

Pasquale: "O Brasil não quis esperar (Portugal) e resolveu agir sozinho, o que fere o acordo. Ficou algo com cheiro de precipitação"

Foto publicada com a matéria original

Na mesma edição de AT Especial, em 4 de janeiro de 2009, foi publicada (na página 19) a primeira parte da coluna do professor Pasquale sobre esse tema, e que prosseguiria na edição seguinte, publicada em 11 de janeiro de 2009 (na página 30). Estes, os dois textos:

Imagem: reprodução parcial da matéria original de 4/1/2009. Ilustração de Alex Ponciano

AO PÉ DA LETRA

O (des)Acordo Ortográfico - 1

Pasquale Cipro Neto

Há muito tempo a ortografia põe brasileiros e portugueses em lados opostos. Já houve diversas tentativas de unificar a grafia, mas todas fracassaram. Na penúltima (em 1945), o Brasil assinou um acordo de unificação, mas não o cumpriu.

Que não se pense que as divergências ortográficas entre o português daqui e o de lá são abundantes ou geram incompreensão na leitura. Qualquer brasileiro familiarizado com a escrita consegue ler, por exemplo, Saramago no original, o que também se dá com um português em relação a Machado. Existem divergências, e muita gente vê nisso um obstáculo na redação de documentos internacionais. E foi justamente esse obstáculo o principal motor dos idealizadores do Acordo.

O Acordo que ora entra em vigor começou a ser gerado em 1986, no Rio de Janeiro. Lá se reuniram representantes de seis dos então sete países da comunidade lusófona (a Guiné-Bissau não compareceu). O projeto resultante desse encontro propunha o fim de muitos acentos, por isso foi considerado radical e acabou abandonado. A discussão recomeçou em 1990, em Lisboa, quando se chegou à essência do Acordo que ora entra em vigor.

Na verdade, o texto do Acordo dizia que as mudanças entrariam em vigor em 1º de janeiro de 1994 (é isso mesmo, 94) e que até 1º de janeiro de 1993 deveria estar pronto o "Vocabulário Ortográfico", cuja elaboração seria confiada à dupla Brasil/Portugal. Nada disso aconteceu. Em 2007, o Brasil se empenhou ao máximo para que o Acordo fosse posto em vigor, o que exigia uma adesão explícita de Portugal. Só em 2008 o Parlamento português votou e aprovou o projeto. Embora já tenha sido sancionado pelo presidente português, o Acordo ainda não foi regulamentado por lá, o que significa que ainda não vigora na terra de Camões. Moral da história: começamos o baile sem a presença de um importantíssimo membro da orquestra. E suspeita-se que esse "músico" jamais comparecerá.

É bom que se diga que, no Brasil, até 31/12/2012 ninguém é obrigado a cumprir as regras impostas pelo Acordo. Até lá, pode-se continuar com a escrita "velha" ou optar pela nova. E o que muda afinal? São três os itens: 1) o alfabeto; 2) os acentos; 3) o emprego do hífen.

O alfabeto passa a incorporar o "k", o "w" e o "y", que tinham sido banidos na reforma de 1943. Passamos a ter, portanto, 26 letras.

Quanto aos acentos, só há eliminações. Nenhuma palavra que não tinha acento passará a tê-lo. Na verdade, há um meio caso (sim, meio) de acento "novo": a palavra "forma" (com o "o" fechado, isto é, como sinônimo de "molde"), que pela norma "antiga" não tinha acento, passa a ter circunflexo optativo. Sim, optativo! O acento vai ficar a gosto do freguês! Desde quinta-feira, pode-se escrever "Preciso de uma forma de bolo" ou "preciso de uma fôrma de bolo". Haja criatividade!

E que palavras perderam o acento? Vamos lá. Morre o acento agudo nos grupos "ei" e "oi" das palavras paroxítonas. Palavras como "geleia", "assembleia", "ideia", "heroico", "apoiam" e "joia" (que se escreviam com agudo no "e" e no "o" dos grupos "ei" e "oi") passam a ser escritas sem o agudo. O acento não morre nas oxítonas, por isso continua o acento em "coronéis", "dói", "herói", "anéis" etc. Outro acento que morre é o dos grupos "ee" e "oo", em palavras como "creem", "deem", "leem", "veem", "enjoo", "voo", "magoo" etc. (Estou escrevendo a coluna, e meu computador vai colocando acento em tudo que perdeu o sinalzinho. Pobre computador! Envelheceu da noite para o dia!)

Outro falecido: o trema. Na verdade, o trema entrou em coma, já que sua morte "definitiva" só se dará em 31/12/2012 (tal qual a morte dos outros acentos). Muita gente acha que, com o fim do trema, o grupo "gui" de "lingüiça" será lido como o de "enguiça". Nada disso! O trema morre, mas a pronúncia não muda.

Bem, o espaço acabou, mas as informações sobre o que muda com o Acordo, não. A "novela" termina na semana que vem.

Até domingo. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Neto é professor de Português, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura. Contato pelo e-mail sueli@comunic.com.br.

Imagem: reprodução parcial da matéria original de 11/1/2009. Ilustração de Alex Ponciano

AO PÉ DA LETRA

O (des)Acordo Ortográfico - 2

Pasquale Cipro Neto

Na semana passada, tratamos do "(Des)Acordo Ortográfico". Vimos um breve histórico do "Acordo" e algumas das mudanças que ele impõe. Falamos do alfabeto, que passa a ter 26 letras, do fim do trema e da extinção de alguns acentos (o agudo que havia nos grupos "ei" e "oi" das palavras paroxítonas, como "ideia" e "heroico", e o circunflexo que havia nos grupos "ee" e "oo", como o que se punha em "creem" e "voo").

Ainda no território da eliminação de alguns acentos, convém mencionar outros casos. O primeiro deles se refere a palavras como "baiuca", "bocaiuva", "Sauipe", "feiura", que até 31 de dezembro recebiam acento agudo (grafavam-se, respectivamente, "baiúca", "bocaiúva", "Sauípe" e "feiúra"). Esse acento se encaixava na regra dos hiatos, segundo a qual o "i" e o "u" que estão em hiato com a vogal anterior recebem acento, desde que sozinhos na sílaba ou acompanhados de "s". O que mudou? Vamos lá: se esse "i" e esse "u" forem precedidos de ditongo, nada de acento. Complicado, não? E os idealizadores do Acordo dizem que ele veio para simplificar...

Bem, vamos traduzir a alteração que acabamos de ver: o "u" de "feiura" está em hiato (a separação silábica de "feiura" é "fei-u-ra"). Como esse "u" é precedido de ditongo (presente na sílaba "fei"), nada de acento. É nesse caso que se encaixam palavras como "baiuca", "bocaiuva" ou "Sauipe", que perderam o acento agudo.

Outro caso que merece comentário é o de algumas flexões de verbos como "apaziguar", "averiguar" ou "arguir". Deixaram de existir formas como "argúi" (do presente do indicativo: ele argúi), "argüi" (do pretérito perfeito: eu argüi), "apazigúe" e "averigúe" (do presente do subjuntivo: que eu/ele apazigúe, que eu/ele averigúe). Agora, "argúi" e "argüi" se igualaram: passam a "argui" ("o contexto define quem é quem", dizem os idealizadores do "Acordo"). "Apazigúe" e "averigúe" passaram a "averigue" e "apazigue", respectivamente (a leitura continua a mesma). Aceitam-se também as formas "averígue" e "apazígue" (a sílaba tônica é "ri" e "zi", respectivamente, e o "u" é pronunciado, atonamente, nos dois casos). O leitor ainda acha que a reforma simplificou as coisas?

Ainda sobre os acentos, chegou a hora de falar dos diferenciais. O "Acordo" pôs quase todos para correr. Foram eliminados (e já vão tarde), entre outros, os mais do que inúteis acentos de "polo", "pera" e "pelo". Foi eliminado também (este indevidamente, a meu ver) o acento da forma verbal "para" (escrevia-se "pára"; o acento diferenciava a flexão verbal da preposição "para", átona). De agora em diante, "para" pode ser verbo ou preposição, e só pelo contexto será possível diferenciar um do outro (isso quando de fato o contexto permitir diferenciar um do outro). Um título jornalístico como "Trânsito pesado para São Paulo" será ambíguo, por isso certamente não será mais publicado.

Para que fique claro: restaram apenas dois acentos diferenciais. Um deles é o de "pôde" (do pretérito perfeito), diferencial de "pode" (do presente do indicativo). O outro é o de "pôr" (verbo), diferencial de "por" (preposição, átona). Já vimos na semana passada que o "Acordo" dá como facultativo o acento circunflexo no substantivo "forma" (quando sinônimo de "molde"). Como já vimos, pode-se escrever, indiferentemente, "Preciso comprar uma forma de bolo" ou "Preciso comprar uma fôrma de bolo". Também se pode optar por "Unte a forma com manteiga" ou por "Unte a fôrma com manteiga".

A principal alteração imposta pelo "Acordo" se dá no emprego do hífen. Aí o bicho pega, caro leitor. Ainda há muitas nuvens escuras nesse céu (ou nesse pedaço de céu). Como o espaço acabou, será preciso mais um capítulo da novela (o terceiro e talvez último), o que me obriga a "descumprir" a promessa feita no fim da coluna da semana passada (a de encerrar hoje a "novela").

Até domingo. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Neto é professor de Português, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura. Contato pelo e-mail sueli@comunic.com.br.

Ainda na edição de AT Especial, de 4 de janeiro de 2009, na página 58, foi publicado este artigo do colunista Vicente Cascione, também abordando a questão da reforma ortográfica:

Imagem: reprodução parcial da matéria original de 4/1/2009. Ilustração de Max

CRÔNICA

Reformando a Deforma

Vicente Cascione

Isso é coisa de quem não tem o que fazer - costuma-se dizer de alguém que dedica seu tempo a inventar bobagens. Agora, depois de eu ter passado toda a minha vida a escrever, por ofício ou por gosto, aparece nova reforma ortográfica, desta vez para obrigar-me à mesma grafia de meus amigos do Timor Leste (que não conheço) e de meus desafetos de Goa (que nunca os tive).

Logo agora? Quando eu já estava ficando versado no idioma dos internautas, isto é, no estágio evolutivo para chegar à utilização da fumaça como forma de expressão criada pelos geniais índios peles-vermelhas; logo agora, quando eu já caminhava para uma etapa formidável da telecomunicação, ou seja, falar por meio do batuque dos tambores - uma espécie de telégrafo primitivo que abriu as portas da pós-modernidade - logo agora, resolvem retirar tremas, hífens, aceitos e sei lá mais o quê...? para pasteurizar a língua lusitana.

Desculpem-me os doutores e filólogos, mas não vou nessa, manos.

Acho uma judiação - diante da qual o estatuto do idoso deveria ser inclemente - obrigar homens antigos, como eu, a aprender algo além do que conseguiram entender ao longo da existência.

Se um dia eu decidir redigir sobre mim mesmo uma piedosa reflexão de fim de percurso, serei compelido a escrevê-la utilizando uma grosseira deformação gráfica capaz de arruinar ainda mais os estragos que o tempo me fez. Terei que escrever um autorretrato, com dois erres. Sem o hífen, parece um engavetamento. Um desaforo em causa própria; talvez merecido, para quem se mete a escrever sobre si mesmo, sobre as vivências de sua própria vida.

Querem arredondar a linguagem escrita. Talvez fosse mais útil fazer com que todos aprendessem a escrever serto, cem os erros comuns co-metidos por muitos univercitários que não podem pedir uma juda a cualquer universsitário, nem mesmo aos ke descansam suas mentes eruditas em navios de cruzeiro.

Querem, por exemplo, acabar com o trema. Ora, já que o k volta ao alfabético, seria mais simples, não havendo o trema, grafar elocuente, delincuente, e kestão, kerido, bemkerer, e assim por diante.

Deveríamos passar à reforma orelhográfica, cada um escrevendo de acordo com seu conhecimento áudio-visual ou audiovisual ou audio vi zu al. E pq naum papéu ao inveis de papel.

Se é para escrever certo, todos deviam aprender a língua portuguesa que não pode ser um privilégio de uns poucos filhos de Deus.

Alguns profissionais cujo ofício exige algo além do braçal e da força bruta, ou dos chutes na bola, deveriam ser ensinados a não escrever banana com casca e tudo.

Igualar a grafia e não conhecer a gramática faz um sujeito dizer: eu estava lá, em cujo lá apareceu um homem onde puxou um revolver e deu tiros para o ar, o qual eu acho de que foi horrível.

Nessa farofa em que preposições, advérbios, conjunções e pronomes esmurram-se entre si, a língua portuguesa agoniza.

Vamos à fumaça, aos tambores e à mímica. Sem gramática e sem hífen, sem ditongos minguantes e bobagens crescentes. E sem livros, porque a linguagem escrita é coisa da pré-história, que começou com o tal de Guttemberg. E ele já era, mano. Ta ligado?

Vicente Cascione é advogado e professor decano de Direito Penal na UniSantos. Contato: vcascione@uol.com.br.