Clique aqui para voltar à página inicial  http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010405a.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/21/01 00:11:54

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA CURIOSO E DIVERTIDO
Gerundismo

Este texto foi publicado na edição de 16/2/2001 do Jornal da Tarde/O Estado de São Paulo, e remetido à lista Idioma pela tradutora e intérprete Jussara Simões. Desde sua publicação na imprensa, tem tido grande repercussão, com circulação constante em diversas listas de debates na Internet e reportagens na televisão (veja também, abaixo, uma contestação e a tréplica):

Sexta-feira, 16 de fevereiro de 2001 ----    ------------------------------------- 
Para você estar passando adiante
 
Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando e possa estar deixando discretamente sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa praga terrível da comunicação moderna, o gerundismo.
 
Você pode também estar passando por fax, estar mandando pelo correio ou estar enviando pela Internet. O importante é estar garantindo que a pessoa em questão vá estar recebendo esta mensagem, de modo que ela possa estar lendo e, quem sabe, consiga até mesmo estar se dando conta da maneira como tudo o que ela costuma estar falando deve estar soando nos ouvidos de quem precisa estar escutando.
 
Sinta-se livre para estar fazendo tantas cópias quantas você vá estar achando necessárias, de modo a estar atingindo o maior número de pessoas infectadas por esta epidemia de transmissão oral.
 
Mais do que estar repreendendo ou estar caçoando, o objetivo deste movimento é estar fazendo com que esteja caindo a ficha nas pessoas que costumam estar falando desse jeito sem estar percebendo.
 
Nós temos que estar nos unindo para estar mostrando a nossos interlocutores que, sim!, pode estar existindo uma maneira de estar aprendendo a estar parando de estar falando desse jeito.
 
Até porque, caso contrário, todos nós vamos estar sendo obrigados a estar emigrando para algum lugar onde não vão estar nos obrigando a estar ouvindo frases assim o dia inteirinho.
 
Sinceramente: nossa paciência está estando a ponto de estar estourando. O próximo "Eu vou estar transferindo a sua ligação" que eu vá estar ouvindo pode estar provocando alguma reação violenta da minha parte. Eu não vou estar me responsabilizando pelos meus atos.
 
As pessoas precisam estar entendendo a maneira como esse vício maldito conseguiu estar entrando na linguagem do dia-a-dia.
 
Tudo começou a estar acontecendo quando alguém precisou estar traduzindo manuais de atendimento por telemarketing. Daí a estar pensando que "We'll be sending it tomorrow" possa estar tendo o mesmo significado que "Nós vamos estar mandando isso amanhã" acabou por estar sendo só um passo.
 
Pouco a pouco a coisa deixou de estar acontecendo apenas no âmbito dos atendentes de telemarketing para estar ganhando os escritórios. Todo mundo passou a estar marcando reuniões, a estar considerando pedidos e a estar retornando ligações.
 
A gravidade da situação só começou a estar se evidenciando quando o diálogo mais coloquial demonstrou estar sendo invadido inapelavelmente pelo gerundismo. 
A primeira pessoa que inventou de estar falando "Eu vou tá pensando no seu caso" sem querer acabou por estar escancarando uma porta para essa infelicidade lingüística estar se instalando nas ruas e estar entrando em nossas vidas.
 
Você certamente já deve ter estado estando a estar ouvindo coisas como "O que cê vai tá fazendo domingo?", ou "Quando que cê vai tá viajando pra praia?", ou "Me espera, que eu vou tá te ligando assim que eu chegar em casa".
 
Deus. O que a gente pode tá fazendo pra que as pessoas tejam entendendo o que esse negócio pode tá provocando no cérebro das novas gerações?
 
A única solução vai estar sendo submeter o gerundismo à mesma campanha de desmoralização à qual precisaram estar sendo expostos seus coleguinhas contagiosos, como o "a nível de", o "enquanto", o "pra se ter uma idéia" e outros menos votados.

A nível de linguagem, enquanto pessoa, o que você acha de tá insistindo em tá falando desse jeito?

RÉPLICA:
Um professor de Linguística da Universidade de Campinas (Unicamp) discorda, entendendo ser o "gerundismo" uma construção gramatical válida na língua portuguesa:

"Quem é o bocó?"

Sírio Possenti (*)

Todos os defensores da língua pura estão criticando uma locução verbal supostamente nova que apareceu e se espalhou. Confesso que não a ouvia, ou não me dava conta de que existia, até que tive minha atenção chamada para ela pelos guardiões da língua que imaginam que tudo aquilo de que não gostam ou for novo - o que vier antes - é necessariamente ruim. Penso o contrário. Se não gostam, deve ser interessante. Se acham que não serve para nada, alguma serventia deve ter.

Não sei qual teria sido o estrato social que mais aderiu, ou aderiu antes, à novidade. A crer no manifesto endossado por Gaspari, o nicho seria o telemarketing. O certo é que a locução aparece em todas as falas de todas as telemarqueteiras. Devem receber severo treinamento, que inclui pelo menos duas exigências: não dizer nada que não esteja no script, e enunciar, em algum momento, a famosa fórmula "vamos estar -ndo". O que preenche "-ndo" vai depender do serviço. Se é uma encomenda, então a empresa "vai estar enviando". É uma reclamação? Alguém "vai estar providenciando". Mas a expressão invadiu também as escolas: alunos já me disseram que vão estar me enviando trabalhos por e-mail.

O alcance da novidade deve ser bem maior. Em pronunciamento em rede nacional de TV, em meados de agosto, o próprio Ministro da Saúde, José Serra, que não é jovem - mas talvez seja (tele)marqueteiro -, falou de "outra vacina que vamos estar aplicando amanhã". Não sei o que alguns (muitos, de fato) têm contra formas lingüísticas novas. Em quase tudo as novidades são índice de qualidade. Desconfio que todos gostam de novidades em tudo, exceto (pelo menos) os que cuidam da língua nos domínios da gramatiquinha. No que segue, vou mostrar que não há nada de esquisito nessa forma tão criticada. Seu único problema é não ser abonada pelas gramáticas. Vou apresentar uma análise preliminar. Vamos por partes.

Vejamos primeiro a sintaxe da locução: a ordem dos verbos auxiliares é perfeitamente canônica. Sabe-se que os verbos auxiliares vêm sempre antes do principal (como em "vou sair"). Se houver mais de um auxiliar, haverá ordens permitidas e outras proibidas ("tenho estado viajando", mas não "estive tendo viajado"; "vou estar saindo", mas não "estarei indo sair"). Resumo da história: a nova locução está em perfeito acordo com a sintaxe do português: sua ordem é ir + estar +ndo. É, pois, absolutamente gramatical.

Vejamos agora o que significa. Os que não gostam da forma dizem que não serve para nada, que há outra melhor para expressar a mesma coisa (eles não são nada sutis). Ao invés de "vou estar mandando", que se diga "vou mandar", ou "mandarei", dizem eles. Estão errados: pode ser que nem todos os casos sejam claros, mas em muitos, nitidamente, a nova forma veicula aspecto durativo (ou seja, anuncia um evento que durará algum tempo para se realizar). Para que falar de aspecto durativo não pareça estranho, relembre-se (ou anote-se) que o imperfeito do indicativo apresenta o mesmo aspecto: formas como "amanhecia", "pintava", etc., referem-se a eventos ou ações que não são instantâneas, que têm certa duração.

Por isso, não é a mesma coisa dizer "vou mandar" e "vou estar mandando", exatamente por causa da diferença entre "ir" (que marca só futuro) e "ir + estar" (que marca futuro, por causa de "ir", e duração, por causa de "estar"). "Vou estar providenciando" significa, entre outras coisas, que a providência não se dará instantaneamente. Além disso, o compromisso expresso em "vou providenciar" é mais incisivo do que o expresso em "vou estar providenciando". Mais ou menos como é mais incisivo dizer "providenciarei" do que "vou providenciar".

Além desses, a meu ver, há outro aspecto importante, este de cunho pragmático ou interpessoal: a expressão conota gentileza, formalidade, deferência (se verdadeira ou simulada, não importa). Ou seja: bem ou mal, mesmo que seja para postergar um serviço de que se precise urgentemente, deve-se reconhecer que a recusa é pelo menos expressa de forma não grosseira, nem mesmo franca, de fato (o que alguns preferem, no entanto; eu mesmo, aliás). Se eu receber um convite para fazer uma palestra e se não puder aceitar, agora sei como responder. Antigamente, eu dizia "não posso ir/aceitar", ou "não vou poder ir/aceitar". A segunda forma é notoriamente mais gentil do que a recusa seca expressa na primeira. Mas doravante direi, e imagino que soarei muito mais civilizado e moderno, que "não vou poder estar aceitando o convite", ou que "não vou poder estar deixando de dar aulas nesta data".

Além dos aspectos acima, seria certamente interessante investigar se a enorme aceitação desta nova locução não se deve a uma cultura da falta de compromisso. Não seria a primeira vez que se estabeleceria uma relação estreita entre um aspecto da língua e um traço de cultura ou de ideologia.

Assim, pode-se pensar qualquer coisa desse tipo de expressão, exceto: a) que não serve para nada, já que expressa aspecto (da ação), é sinal de deferência, pois se trata de uma fórmula gentil e talvez seja um indício revelador de um traço de nossa cultura atual; b) que é simples, bobo. De fato, como vimos, é algo bastante sofisticado. É necessária uma enorme sofisticação para dar conta da sintaxe da locução e para empregá-la na hora certa.

Uma coisa é não gostar da construção (de gustibus et coloribus non est disputandum). Isto é democracia. Outra é achar que isso não é português ou que não serva para nada. Aí já é falta de análise.

(*) Sírio Possenti é professor de Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

TRÉPLICA:
Mensagem divulgada em 18/4/2001 por Paulo Henrique M. Oliveira na lista eletrônica de debates Idioma, mantida pelo MNDLP:

O Professor Sérgio Possenti deveria ganhar o Troféu Abacaxi da arte de sofismar. E de falar besteira, também.

Interessante que ele começa dizendo que "TODOS OS DEFENSORES DA LÍNGUA PURA..." agem assim ou assado, mas ele NÃO. Ou ele não se considera um "defensor da língua" (e não é mesmo!) ou, se assim se considera, age no contrafluxo de TODOS os outros.

Não entendo - e não quero entender - a necessidade que algumas pessoas têm, em primeiro lugar, de ser "engraçadas" quando não lhes pertence o ofício do humor. Em segundo lugar, não entendo porque alguém acha que só é bom se puder contestar os demais.

Claro que a contestação é salutar e enriquecedora, mas ser "do contra" apenas para tentar, sem êxito, diga-se, ser "engraçadinho", submete pessoas cultas e capazes a este tipo de vexame que o Professor Sérgio Possenti acaba de protagonizar ao subscrever o artigo.

Gerundismo é horrível, desnecessário e é, sim, (queira o professor, ou não) uma forma de estrangeirismo (anglicismo).