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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 03/13/03 08:14:19

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Novilíngua brasileira... ou geração vidiota?

Esta matéria foi publicada na edição de 2 de junho de 1986 da revista semanal Fatos, da Editora Bloch (Rio de Janeiro/RJ):

A maratona de quadrados e cruzinhas no vestibular: o vernáculo sofre

Novilíngua brasileira

Nem modismos, nem neologismos: tem muita gente falando mal

Salvyano Cavalcanti de Paiva

Nos anos 60 e 70, era a juventude - principalmente a de classe média - que falava e escrevia mal e pobremente. Agora, é a nação em peso, exceto uns poucos maiores de 50 anos. Acabaram com a Língua Portuguesa no Brasil. Muitas são as causas, mas aos meios de comunicação de massa cabe parcela ponderável de culpa na tragédia. A imprensa diária, o rádio e, acima de tudo, a televisão, desmantelaram a estrutura formal e subverteram as normas do idioma pátrio. Hoje, 136 milhões de pessoas passivamente reproduzem o dialeto dos que utilizam esses veículos de transmissão de idéias: é a catastrófica geração vidiota.

A crise atingiu tal ponto que o presidente José Sarney, impaciente com a precariedade gramatical dos textos oficiais, recentemente recusou-se a sancionar um deles: designou um grupo de redatores para reescrever o decreto complementar ao do pacote econômico. E foi criada uma Comissão Nacional para o Estabelecimento de Diretrizes Relativas ao Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa, a fim de salvar o que resta do idioma.

Vai ser uma batalha cruenta. Os meios audiovisuais e impressos se anunciam como meios de cultura. Mas F. Nietzsche já escrevia, lucidamente: "São os meios de cultura que atualmente põem em perigo a cultura". Tomava a cultura no sentido de desenvolvimento intelectual, e parecia antever o caos instaurado neste século [N.E.: século XX] pela massagem cerebral tão louvada pelo profeta contratipográfico Marshall McLuhan. A cultura de massa corrói e recalca as demais, e liquida de vez a cultura humanista.

Um advogado de Nova Iguaçu, formado em faculdade de fim de semana, disse no Foro de Teresópolis que não fazia citações em Latim, em suas defesas, por se tratar de idioma "estrangeiro". Nada a estranhar: advogados não sabem mais redigir petições, médicos escrevem com-pre-mi-dus nas receitas. E professores universitários se especializam em anestesiar os alunos com as teorias de Lacan, Barthers e Chomsky mas não conhecem, empregam ou ensinam o bê-a-bá gramatical de Mário Barreto, Said Ali ou Celso Cunha. Por isso, inventaram que falar e escrever certo ou errado é conceito reacionário embutido na luta de classe, falácia tão burra que até o filólogo J.V. Stálin a desmascarou num tratado de lingüística publicado nos anos 50.

É claro que, ao lado dos meios de comunicação social, outras causas contam na degenerescência da linguagem. Pela enésima vez, vozes autorizadas se ergueram para denunciar os motivos: o descaso familiar, o ensino mal emitido pelo professorado moderninho, vanguardista e alienado dos cursos superiores; a falência gritante do ensino básico, abandonado pelos poderes públicos; o ensino médio explorado pela mesquinhez, a ganância e a incompetência dos educandários particulares, sempre defendidos com arrogância e cinismo pelos mercadores do laicato e da religião.

Contudo, reside nos meios de comunicação de massa o maior número de desusos, maus usos e abusos da língua portuguesa face à tradição escrita e falada da elite cultural e em face da norma escrita. Tudo começou com o advento dos meios audiovisuais em 1930, cresceu velozmente após a Segunda Guerra Mundial com o domínio da televisão e se intensificou com a massificação do ensino após 1960. Os professores improvisam, não ensinam as normas - que desconhecem ou subestimam - e, em conseqüência, amplia-se o número de analfabetos funcionais.

A língua é um instrumento de intercomunicação humana; mas quando o falar errado substitui o falar certo, quando a leitura de clássicos é relegada ao baú da obsolescência e a antropologia da pândega estimula a subversão lexical, sintática e semântica, é hora de agir, ou a atitude irresponsável de supostos educadores poderá conduzir a sociedade a um modelo espartano, totalitário, no qual os poucos que sabem irão dominar os muitos que ignoram ou vice-versa.

Como escreveu o filólogo e enciclopedista Antônio Houaiss, não se poderá transmitir cultura com provas escolares de múltipla escolha, preenchimento de quadrículas com cruzinhas. Houaiss, que participa da comissão oficial que criará as novas diretrizes do ensino do idioma, acha que "o pensamento está sendo interditado pela massificação. Só escreve e fala correntemente aquele que tem opinião, que possui uma visão crítica, que pensa a realidade que o cerca".

Tanto como a minoria sensata, Houaiss deve ficar perplexo com a algaravia enunciada por uma gama de cidadãos que abrange desde locutores de telejornal, atores de telenovelas e animadores de programas de auditório até figurantes de comerciais e membros da alta hierarquia do governo federal.

O vício mais recente é a intercalação imediata do pronome pessoal da terceira pessoa entre o sujeito da oração e o predicado quando o substantivo já está bem determinado, um pronome absolutamente desnecessário. Parece até que todos colocam reticências após o sujeito... Nas entrevistas, via TV, virou moda. O empresário Jorge Chama, após ser recebido por Sarney, disse: "O presidente ele ficou entusiasmado" (sic). O ministro Almir Pazzianotto, respondendo com lentidão às perguntas, discutindo o pacotão, falou: "O... gatilho... ele... é...". Telê Santana, diretamente da Toca da Raposa, explicou as derrotas dizendo: "A Seleção ela está..." (sic).

Nos pronomes oblíquos, a bagunça é com os pessoais não reflexivos tônicos, do singular ou do plural, principalmente mim, nós e vós, porque abandonaram o conosco e o convosco a título de serem vocábulos eruditos. E lá vem besteira: em uma entrevista de fim de noite, um político soltou tremenda "haja visto" quando a expressão é "haja vista". Quando Escadinha fugiu da Ilha Grande, o telerrepórter disse que "a polícia o teria preso, se chegasse a tempo" em vez de "o teria prendido". Na novela das sete, vivem dando "uma telefonema" e bebendo "a champanhe", efeminando o macho... Certa noite, um telecanastrão falou: "Chegou uma ordem para mim fazer não sei o quê", jogando o próprio eu para escanteio. Também vivem todos direcionando esforços em vez de os dirigir para o aprendizado do falar correto, enquanto os burocratas se esfalfam em agilizar (com z) em lugar de agilitar (com t) para maior proveito.

Chico Anísio: "Essa é uma boa"
Foto: Sérgio de Souza

Outro erro irritante atual é do emprego de pronome demonstrativo esse quando a vez é do este. Chico Anísio segura a garrafa de cerveja e diz: "Essa é uma boa!" O humorista não sabe que este (com t) é que designa pessoa ou coisa presente e próxima de quem fala, e também o lugar onde se está, onde se mora, onde se nasce. O esse (com s) fica mais distante no espaço e no tempo. E o esquecido aquele fica na lua. Mas os ministros Marco Maciel e Dílson Funaro, os mais atuantes frente às câmaras (e não câmeras com e) de televisão, vivem a falar desse país (sic), que a gente se pergunta se eles fazem referência ao Brasil ou à Cochinchina.

É um verdadeiro recorde (a tônica na segunda sílaba) de solecismo igual àquele rrécorde (com acento na primeira sílaba) vigoroso dos locutores de telejornal. Não adianta chiar, pois a atriz de novela dirá desculpa (com a final) substantivando o verbo, porque dizer desculpe (com e final) no tempo e modo certos, é algo que jamais ocorre.

A coisa se complica quando os redatores de telejornais ou das telenovelas trocam dique por eclusa, ramalhete por buquê e matiz por nuance. Aqui entre nós, eclusa é quase um palavrão. E o ouvido arrebenta quando a heroína informa, ingênua: "Eu fui na cidade" (sic). Será cidade um novo veículo automotriz? Outra declara que anda "meia triste" sem qualificar que espécie de meia. E o galã garante querer "namorar com ela". Ou afirma: "Eu amo ela" Moela de pata ou de franga? Os locutores esportivos mandam brasa nos topônimos: dizem Anvers, Bâle, Torino, Genéva e Mainz até que o telespectador descobre que se referem a Antuérpia, Basiléia, Turim, Genebra e Mogúncia.

A escritora Helena Silveira observou, risonha: "A máquina desalfabetiza o povo". Uma reportagem publicada em um grande jornal sobre os anos 50 estampa, como se fossem termos de gíria da época, palavras do vernáculo como estróina e transviados e a expressão inglesa café society. Alguns redatores desconhecem a regência verbal, e certos editores exigem que o copidesque enxugue o texto de tal modo que este acaba ressecado como fundo de açude em tempo de seca.

Um professor da UFRJ (N.E.: Universidade Federal do Rio de Janeiro) recomenda aos alunos a leitura cotidiana de jornais sensacionalistas como a ideal por ser "a mais ligada aos interesses do povo". E para os jovens lingüistas da Faculdade Hélio Alonso, "o discurso popular, com todos os erros, é que representa o verdadeiro idioma". Por isto, alunos do oitavo semestre não hesitam em escrever exitar e excessão (sic). E acham cômico o emprego do pronome enclítico. Jamais empregam fê-lo andar, vimo-lo de longe ou ei-lo que chega. E há barbaridades desta espécie: saudarei-o em vez de sauda-lo-ei e fixariam-se em vez de fixar-se-iam.

Além disto, ainda temos de suportar a oratória dos líderes da classe dirigente pejada de economês, pedagogês, medicinês, militarês e tecnocracês. E ao publicitarês se atribui a invenção da abominável mercadologia, quando desde o século 18 existe, com o mesmo sentido, merceologia (tradução de marketing), embora lexicógrafos sem memória entrem naquela de fazer uma diferenciação inexistente. E ainda há quem diga que esse falar e escrever de bárbaros é metacomunicação.


Antônio Houaiss: "Massificação interdita pensamento"
Foto: Rauf Tauile