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HISTÓRIAS E LENDAS DE GUARUJÁ - ILHA-FAROL
Moela, o mais antigo farol do litoral paulista (5)

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Matéria publicada no jornal santista A Tribuna em  2 de maio de 1910, páginas A-4 e A-5:

LUZ NO MAR – Farol da Ilha da Moela recepciona quem chega a Santos pelo oceano. Conheça o dia a dia dos guardiões desse lugar, distante cerca de 20 quilômetros da Capitania dos Portos, na Ponta da Praia

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria, na página A-1

 

ILHA DA MOELA

Localização: 24º63' de latitude Sul, 46º16' de longitude Oeste.

Área: 266 mil metros quadrados.

Distância: 11 milhas náuticas (cerca de 20 quilômetros) do cais da Capitania dos Portos, em Santos

 


Na Ilha da Moela, entrada da Baía de Santos, militares passam semanas longe da família para alimentar o farol mais antigo do Estado. Eles compartilham seu cotidiano com a saudade, as tempestades, as lendas e os fantasmas que rondam o lugar. Isolados, falam da importância de cuidar da sinalização às embarcações

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria

 

A luz e a solidão dos homens-ilha

 

Luiz Fernando Yamashiro

Da redação

Nenhum homem é uma ilha, decretou em versos o inglês John Donne. Mas quando a noite cai, uma luz solitária surge no mar, a desafiar o poeta. É o Farol da Moela, avisando aos navegantes que a Baía de Santos se aproxima. Há, sim, naquela pequena porção de terra, um homem. Cercado de saudade por todos os lados.

O faroleiro mantém ali um ritual quase tão antigo quanto a navegação: iluminar o topo das montanhas, criar um ponto de referência às embarcações. A referência, neste caso, é a Ilha da Moela, a menos de três milhas náuticas da Praia do Tombo, em Guarujá, de onde a luz pode ser vista à noite. O responsável por mantê-la é Antônio Anselmo do Nascimento, o homem que só retorna ao continente a cada 23 dias – se Netuno, deus dos mares, assim permitir.

Em seu auto-exílio, Anselmo tem como companhia outros dois homens. E dois cães: Amendoim e Paçoca. Seus latidos são a primeira coisa que o visitante ouve ao se aproximar da Moela. O bote ainda nem encostou e Amendoim, num salto, já está a bordo, inspecionando um por um com o focinho. O vira-latas é quem melhor conhece o lugar: vive nele há sete anos.

A ilha, sob custódia da Marinha, ganhou o nome devido a seu formato, que lembra  uma moela de galinha. Para colocar os pés nela, é preciso fazer um pequeno rapel, superando os rochedos com a ajuda de uma corda.

O farol fica no topo, a 100 metros de altura. Chegar lá significa enfrentar um caminho íngreme, desenhado no matagal. Na subida, ergue-se a imagem de Santa Bárbara, a guardar os ilhéus das tempestades.

Lá em cima, quatro casas se distribuem. É numa delas que vive Anselmo, desde dezembro de 2007. Ele poderia ter voltado para a família no fim do ano passado, como permite o regulamento, mas o colega que o renderia foi transferido para o Rio de Janeiro. Agora, só sai em 2011.

Até lá, contenta-se em passar apenas sete dias de cada mês com a mulher e o filho de 14 anos. É a folga concedida a quem dedica parte da vida ao farol. Voltar para casa é como subir à tona para respirar, após um mergulho de três semanas. Mas ele tem fôlego. Suboficial da Marinha, sabe, como bom militar, que missões importantes exigem sacrifícios. "É vocação", resume.

O suboficial Antônio Anselmo do Nascimento é o responsável por manter acesa uma luz de quase 200 anos

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria

O sargento – Na casa ao lado fica o sargento Vágner Pereira, também casado, com filho pequeno. Mais adiante, a do outro sargento, Edmílson, que está de folga.

Vágner foi o último a chegar. Está ali há quatro meses, mas nem por isso a saudade de casa é menor. Especializado em carpintaria, procura manter-se sempre ocupado, para não deixar o pensamento escapar para  longe da ilha. "É como diz o ditado: cabeça vazia...".

Oficina do diabo. E contra ele, o melhor antídoto é a Bíblia, companheira de todos os dias – principalmente aqueles em que o céu escurece, o  mar se agiganta e o vento balança a Moela. Na última tempestade, o sargento viu ondas de quatro metros engolirem a pedra do Pau-a-Pino, formação rochosa vizinha. "Olhando daqui, a coisa é mais feia".

Ao notar no sargento certa melancolia, o repórter-fotográfico Irandy Ribas tenta consolar: "Pelo menos aqui não vem vendedor bater na porta".

[1] Anselmo e Vágner abrem o farol

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria

O burro – A ilha parece mesmo um tanto melancólica. Há poucos meses, perdeu seu morador mais antigo: Lampejo, o burro mais inteligente de que se tem notícia. Foi trazido em 1992, para ajudar no transporte de cargas morro acima, pela estradinha. Mas  havia muito tempo que não carregava mais nada.

Ao ver ou ouvir embarcações se aproximando, o bicho sumia no matagal antes que alguém pensasse em colocar algo sobre seu lombo. Por isso, Anselmo o chamou Lampejo. "Fugia do trabalho com uma rapidez..."

No último dia de dezembro, poucas horas antes da virada de ano, o burro foi encontrado morto pelos militares. O corpo, caído bem perto da estradinha que ele tanto evitou em vida.

[2] Militares preparam bote para desembarque

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria

Os cães – Restaram Amendoim e Paçoca, atrações à  parte. O primeiro se atira na água, nada com desenvoltura. Paçoca, patas mais curtas, fica no rochedo, latindo, correndo de um lado para outro. Marujo novo, ainda não venceu o medo do mar.

Em terra firme, a coisa muda. Amendoim, mais velho, é mais obediente e disciplinado, como preferem os  militares. Anselmo diz que, quando amais novo, costumava ser mais alegre. A chegada de Paçoca, há dois anos, parece tê-lo aborrecido. Agora, porta-se como um rei que perdeu o trono.

Paçoca corre quase o tempo todo, atira-se aos pés as pessoas, persegue urubus, come tudo que lhe é oferecido – e também o que não e oferecido, como os pintinhos do galinheiro. Pula sobre Amendoim, rosna, provoca e, vez ou outra, leva uma mordida. De leve, só para lembrá-lo de que, também entre cães, há hierarquia.

A rotina – Do alto da ilha, paisagens distintas. De um lado, o Tombo, a Enseada, edifícios ao longe. De outro, a imensidão em tons de azul, mar e céu num horizonte sem fim. Os militares abrem a portinhola que dá acesso ao farol e lá encontram um beija-flor encurralado.

Erguido em 1830, o Farol da moela é o mais antigo do Estado. Desde então, vem projetando na escuridão um facho de luz com alcance de quase 50 quilômetros. A torre cilíndrica branca que o envolve ainda conserva partes originais, como o reservatório de querosene que o alimentava. Uma placa dourada informa a nacionalidade francesa do aparelho de luz: F. Barbier – Paris, 1891.

Com o dia claro, tudo ali repousa. Só no fim da tarde é que Anselmo acionará os controles, para acender as luzes da torre. Até lá, segue com Vágner a rotina de coletar dados nas duas estações meteorológicas locais. Temperatura,  umidade relativa, velocidade, direção dos ventos. As informações são enviadas três vezes por dia à Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha, em Niterói, Rio.

Uma vez por dia, alguém precisa descer ao portinho, onde ficam o gerador de força e um galpão para armazenar mantimentos. Escalado para a tarefa, Anselmo faz piada. "Vou no shopping, já volto".

Na despensa improvisada fica o excesso de bagagem trazida do continente. Quando retornam da folga, os marinheiros trazem comida e água em quantidade superior à necessária para os 23 dias porque, em caso de tempestade, ninguém entra, ninguém sai da Moela. É preciso ter o suficiente até que o humor e São Pedro melhore. "Cheguei a ficar 35 dias sem poder voltar para a terra", lembra o faroleiro.

[3] Beija-flor encontrado na torre do farol

[4] Trilha que leva ao topo da ilha

Fotos: Irandy Ribas, publicadas com a matéria

A noite – O sol desce e toca o mar, escurecendo a paisagem. Anselmo se encaminha à estação de rádio, centro nervoso da ilha. De repente, as luzes do farol iniciam um giro lento, hipnotizante, no branco e vermelho que identifica a Moela para os navegantes.

A navegação por satélite reduziu a importância dos faróis, admite o suboficial. Todavia,não é possível enfrentar os oceanos sem eles. "É como um carro com GPS (sigla em inglês para Global Positioning System). O computador indica as ruas, mas se nessas ruas você tiver um ponto de referência, fica mais fácil".

Falando assim, convence a si mesmo de que o isolamento vale a pena. A convicção é necessária para confrontar o vento que sopra da terra firme, trazendo o cheiro de casa. Necessária para enfrentar os exames psicológicos aos quais é submetido a cada seis meses. Necessária porque, ao longe, as luzes do continente parecem indiferentes à do farol. Enquanto as contempla, Anselmo lembra os sábados ensolarados, quando pessoas parecem formiguinhas espalhadas nas areias do Tombo. Ele as vê, mas tem quase certeza de que não é visto. Poucos sabem da existência de homens na ilhota.

Na solidão da torre, o silêncio permite até mesmo ouvir a farra nos transatlânticos que passam por ali, interrompendo os pensamentos do faroleiro. Pensar, aliás, é prática que se aperfeiçoa na ilha. "Nos centros urbanos, o homem passa muito tempo sem ver a própria sombra".

Os fantasmas – Missão cumprida, Anselmo vai dormir, mas sem entregar-se por completo ao sono. O gerador de energia pode falhar no meio da noite, e ele teria que acionar a rotação mecânica do farol, movida por um pêndulo. Em dias de tempestade com descargas elétricas, isso é comum.

A noite faz o tempo passar ainda mais devagar, amplifica o som das folhas arrastadas pelo vento. A tenente Andréia Leal, oficial que acompanha A Tribuna na ilha, aconselha a não caminhar na escuridão. Há cobras venenosas e aranhas caranguejeiras por todo o lado.

Os faroleiros mais antigos tinham outras razões para não sair de casa à noite. Iluminadas pelas luzes do farol, as muretas brancas costumavam revelar vultos de pessoas, principalmente quando havia estranhos por perto. As sombras, diz a lenda, são dos escravos que construíram a torre e lá morreram, enterrados longe de sua terra. Sempre que surge algum visitante, tentam pegar uma carona de volta ao continente.

José Rubens Nascimento, faroleiro local por 15 anos, cansou de ouvir a história dos mais antigos, embora ele mesmo jamais tenha visto assombração alguma. O fato é que a lenda sobrevive – alimentada, talvez, pelas sombras que o facho de luz projeta à distância nas folhas de bananeira.

O tempo – O céu clareia, afugentando serpentes, aranhas e fantasmas. Anselmo desperta e vai desligar o farol com um sorriso no rosto. Sabe que venceu mais um dia. O avançar do calendário traz o continente para mais perto, aproximando-o dos que ama – embora, em momento algum, lamente o exílio. Aos 44 anos de idade, 25 de Marinha, aprendeu a olhar as luzes, os ventos e a solitude da ilha com olhos de cumplicidade. Vai sentir falta de todos eles quando chegar a hora de partir.

Dia desses, se estiver navegando próximo à Moela ou olhando o farol de algum ponto do continente, acene. Pode haver um homem-ilha olhando em sua direção.

[5] Fenda no rochedo

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria

 

TESOURO

Fendas, de todas as formas e tamanhos, intrigam aqueles que navegam ao redor da Moela. Quem as teria aberto? Circula entre os mais íntimos da ilha uma velha lenda. Ela fala sobre um tesouro escondido no século 16 pelo corsário inglês Thomas Cavendish, que aterrorizava o litoral paulista naqueles tempos.

No livro Aconteceu no Velho São Paulo (Coleção Saraiva, 1954), o escritor Raimundo de Menezes menciona outro inglês, o ferreiro Taylor, estabelecido em São Paulo no ano de 1605. Certa noite, ele teria revelado à mulher, Úrsula, o paradeiro do ouro. "Está o mapa no fundo da bruaca (mala de couro), escondido e muito escondido. O tesouro está na Ilha da Moela, lá na costa de Santos. Só eu sei o lugar. Eu e Deus".

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