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HISTÓRIAS E LENDAS DE GUARUJÁ - BARRA GRANDE
Um vento vermelho na capela da fortaleza (19)

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Unindo patrimônios histórico e artístico, numa simbiose entre passado, presente e futuro, um painel abstracionista de Manabu Mabe surge no interior da centenária Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, surpreendendo por sua atualidade os visitantes que ali talvez esperassem encontrar um altar. A restauração desse forte é o tema desta monografia, publicada na edição de agosto de 1997 (nº 64, volume XXIII) da Leopoldianum - Revista de Estudos e Comunicações da Universidade Católica de Santos (Unisantos):
 


Situação em 1990
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A História do Restauro da Barra Grande: de Lúcio Costa à participação de todos

Vitor Hugo Mori (*)

Das últimas obras de restauro efetuadas pelo IPHAN em São Paulo, o projeto da Fortaleza da Barra Grande na Ilha de Santo Amaro foi, sem dúvida, o mais polêmico. Incitou manifestações públicas de aprovação e repúdio. Esteve presente ininterruptamente na mídia sob múltiplos enfoques e críticas.

Passados cinco anos do início do movimento pró-Fortaleza coordenado pela UniSantos, e da apresentação pública do anteprojeto de restauro por convite do amigo Arq. Fábio Serrano, em Santos, pressente-se uma quase unanimidade, quanto à aprovação do critério arquitetônico adotado. A visão do monumento paulatinamente ressurgindo, branco e vigoroso, na paisagem do Canal da Barra, depois de décadas de abandono, vandalismo e arruinamento, arrefece as diferenças conceituais de opiniões, sendo aos poucos substituídas pela cumplicidade na ressurreição deste monumento.

O partido arquitetônico deste projeto, que elaboramos conjuntamente com o arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade, tem sua origem na primeira proposta de restauro formulada para a Fortaleza da Barra Grande, de autoria do arquiteto Lúcio Costa [1], em 21/09/1950, que assim se manifestava sobre este monumento: "já indevidamente reformado, cabendo agora, na eventualidade de obras de adaptação, beneficiá-lo com novo telhado (mais baixo e com telhas de modelo antigo), recompondo-se ainda os arcos e demais vãos modernizados".

Para nós, arquitetos, a polêmica sobre este projeto fomentou uma profunda reflexão e questionamento sobre os conceitos formulados nas cartas de restauro, cuja discussão é parte das preocupações atuais de inúmeros congressos internacionais.

Os diversos posicionamentos assumidos por grupos ou pessoas ao longo deste processo quase que refletem os mesmos argumentos que deflagraram debates incessantes na Europa, sobre os procedimentos de restauro a partir do século XIX.

Alguns defendiam a idéia romântica da simples manutenção do status quo, ou seja, a preservação da Fortaleza como ruínas; outros, a restauração dos edifícios em suas formas originais idealizadas por Giovani Battista Antonelli [2] no século XVI; havia os partidários de se recuar o monumento no tempo até início do século XVIII, conforme concebido pelo Brigadeiro João Massé [3], e opositores que pregavam o retorno dos edifícios às feições assumidas recentemente quando abrigava o Clube Militar. Imaginaram até mesmo a possibilidade de se continuar as obras interrompidas em 1894 por falta de recursos, completando-se as duas fachadas que faltaram com modenaturas ecléticas.

Os partidários da manutenção do aspecto de ruínas da Fortaleza, consciente ou inconscientemente, evocavam o posicionamento romântico de John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896) no século XIX, ideologicamente firmado na crítica à revolução industrial emergente e à sociedade burguesa. Sobre a restauração, defendida por Viollet-Le-Duc (18141879) na França, Ruskin [4] afirmava ser "impossível restaurar qualquer coisa que foi grande e bela na arquitetura, como é impossível ressuscitar dos mortos, (...), aquele espírito que se comunica através da mão do artífice não pode jamais voltar à vida". A seguir, o autor justificava esta afirmação [5]: "nós não temos direito algum de tocá-los, não são nossos, pertencem àqueles que o construíram e, em parte, a todas as gerações humanas que os seguiram."

É, porém, William Morris, seguidor do pensamento de Ruskin, o autor de inúmeros enunciados que ajudaram a definir o moderno conceito de preservação cultural. Morris foi o criador do "The Anti-Restoration Movement", em 1877, e da "SPAB - Society for The Protection of Ancient Buildings", fundamentado na crença de que apenas a sociedade organizada e conscientizada daria eficácia a uma política preservacionista. Liderou um movimento internacional contra a restauração da catedral de São Marcos, em Veneza, defendendo o "conceito de patrimônio da humanidade" em artigo intitulado "The Restoration of St. Mark's", em 1879, quando afirmava: "Os edifícios de uma nação não são somente propriedade desta nação, mas são do mundo todo" [6].

Em outro artigo, datado de 1885, "The Demolition of Churches in York", Morris [7] defendeu a idéia da preservação de conjuntos urbanos, das pequenas construções cujas demolições "significariam arrancar da cidade, a sua alma, torná-la um local banal", discutiu a preservação das "pequenas e humildes igrejas paroquiais dignas de proteção como as grandes catedrais do país", e afirmou a necessidade do uso do edifício como meio de preservação: "cada arquitetura possui a sua particular função (...), quando a função vem a faltar, toda a construção se extingue. Por essa razão é importante encontrar uma função social inclusive para as velhas igrejas abandonadas (...)".

O arquiteto Gustavo Pereira assim sintetizou o pensamento de Morris sobre a intervenção em monumentos: "reparar, ao invés de restaurar; prevenir, para não ter que remediar" [8].

Em oposição aos princípios definidos por Morris e Ruskin, Viollet-Le-Duc, na França, propõe os fundamentos do restauro moderno, no seu clássico "Dictionnaire raisonné de l'architecture française du XI au XVI siècle" (1854): "restaurar um monumento não é apenas reconstittuí-lo, repará-lo ou refazê-lo, mas restabelecer um estado completo que pode jamais ter existido". Gallego Fernandez [9] prefere traduzir o termo "état complet" por "estado ideal", por entender ser o objetivo do restauro violletiano a edificação de um modelo idealizado - um arquétipo formulado através dos "momentos de privilegiada síntese" [10] da história da arquitetura, desconsiderando-se o que o precede (formação) e o que o procede (decadência).

O pensamento de Viollet-Le-Duc não pode ser dissociado do pensamento arquitetônico do século XIX, expresso parcialmente nas restituições ideais que arquitetos e arqueólogos realizaram na Europa, e dos ensinamentos nas escolas de arquitetura, que motivaram uma séria crítica de César Daly por ensinar "O antigo e nada mais que o antigo. E entre o antigo, nem o começo nem o fim, e sim exclusivamente o apogeu" [11].

Também não podemos desconsiderar o confronto ideológico de Le Duc com os partidários da arquitetura clássica, que defendiam ser a cultura greco-romana a gênese da arquitetura nacional francesa, inclusive do românico. Para Viollet-Le-Duc, era o gótico do século XIII idealizado, o arquétipo que representava o espírito nacional. Esta tese libertava a França da influência e dependência cultural de Roma, afirmando sua gênese na arte oriental trazida pelos cruzados. Na restauração de Saint-Front de Perigueux, com assessoria direta de Viollet-Le-Duc, seu discípulo Paul Abadie materializou esta tese, "construindo" uma igreja bizantina, tendo como modelo ideal a igreja dos Santos Apóstolos em Constantinopla, sobre uma igreja típica da Aquitânia, que se comprovou posteriormente ser suas cúpulas (demolidas por Abadie) produtos de uma cultura local que "seguiu adotando os modos de construir romanos" [12].

Idênticas posturas de restauração foram executadas em São Paulo, conforme demonstrou o prof. Antonio Luiz Dias de Andrade, sob a égide do pensamento violletiano, cujo paradigma pode ser simbolizado na obra da Cadeia de Atibaia [13].
Os defensores da idéia de restituição da imagem da Fortaleza, tal qual ela se configurava no século XVI ou XVIII, enquadram-se na vertente de pensamento denominada "Restauro Estilístico", originária dos postulados de Viollet-Le-Duc.

Desconhece-se com precisão a configuração primitiva da Barra Grande entre o primeiro e o segundo séculos. É a partir do projeto de reestruturação da Fortaleza, no início do século XVIII, que podemos acompanhar a evolução arquitetônica deste complexo militar até os dias de hoje. Do relatório do Brigadeiro Massé podemos concluir que já existiam as cortinas da batteria de baixo, e da bateria de cima, a casa de pólvora cujo arcabouço foi transformado em capela em 1743 pelo Brigadeiro Silva Paes, e o edifício do quartel profundamente alterado nos séculos XIX e XX, todos remanescentes do século XVI ou XVII.

A hipótese de retorno aos dois primeiros séculos implicaria, na prática, em destruir todo o conjunto existente, mantendo-se apenas as duas baterias, ainda assim diminuindo-se a altura em 6 palmos (acrescentados por Massé) e manter o quartel em sua tipologia palladiana, especialmente semelhante às casas bandeiristas do planalto, porém mais baixo que a construção atual e sem as arcadas acrescentadas no século XIX. A outra hipótese de retorno às feições do século XVIII também implicaria na demolição e reconstrução de 50% do quartel, ainda assim calcado em conjeturas, pois inexistem evidências materiais ou iconográicas confiáveis para definir os elementos como portas, janelas, detalhes técnicos, cobertura etc.

A polêmica sobre a restauração no século XIX, que criou as bases para o restauro moderno, na verdade, não se limitou aos personagens Ruskin, Morris e Viollet-Le-Duc. O arqueólogo R. Bordeaux, em sua obra "Traité de la reparation des eglises: Principes d'Archèologie practique", de 1862, insere na discussão um dos postulados básicos do restauro moderno: "conservar respeitando o antigo sem mutilar os agregados que o tempo incorporou" [14]. A restauração do Arco de Tito em Roma em 1821 por Valadier apresentou o princípio da distinção do material e da técnica, entre o antigo e o novo.

A sistematização deste conjunto de idéias é obra de Camillo Boito (1836-1914), que persegue a conciliação dos pensamentos divergentes, traduzindo-os num único corpo conceitual. Boito reconhece a validade do restauro como ato excepcional, contrapondo-se à corrente inglesa, porém negando os princípios apregoados por Viollet-Le-Duc relativos à unidade estilística.

Esta teoria intermediária pode ser sintetizada como a recusa das posições românticas antagônicas: "ruínas total de um lado; reconstrução total de outro" [15]. Defende a conservação dos acréscimos incorporados, à semelhança de R. Bordeaux, ao afirmar "que o monumento tem suas estratificações, como a crosta terrestre, e que tudo, da profundeza à superfície, possui seus próprios valores e que devem ser respeitados" [16].

O princípio da diferenciação entre a nova intervenção e a parte antiga, aplicado por Valadier, é parte dos oito pontos propostos por Boito, no Congresso de Engenheiros e Arquitetos em Roma (1884). O critério conservativo de Morris e Ruskin é reafirmado, principalmente no denominado Restauro arqueológico (Antiguidade) [17], admitindo-se apenas a consolidação e a anastilose (N.E.: = recolocação em seus lugares dos elementos originais encontrados, recomposição de partes encontradas desmembradas), e na recomendação de conservar para não restaurar.

A conceituação proposta por Camillo Boito, ao invalidar o ruinismo e a reconstrução (mimética, dedutiva, arquetípica), eliminou as propostas aventadas para a restauração do Forte da Barra Grande, referentes à sua conservação como monumento arqueológico ou à restituição de sua imagem perdida irremediavelmente no passado.

Os restos remanescentes da fortaleza configuravam ainda a espacialidade do complexo militar. A articulação destas partes, compostas de cortinas, guaritas, praças de armas, paredes, oitões, envasaduras, pisos, arcadas etc., e a paisagem transformada definiam volumetricamente e espacialmente o monumento, portanto, tratava-se de arquitetura e não de ruínas arqueológicas.

A partir do pensamento de Boito, Gustavo Giovannoni (1873-1948) consolida a "Teoria do Restauro Científico" em seu texto intitulado "Restauri dei monumenti" de 1912.

Liliana Grassi assim sintetiza esta teoria: "Por restauro científico se entende a operação que se limita a consolidar, recompor, valorizar os traços remanescentes de um monumento (...)" [18].

A Conferência Internacional de Atenas, em 1931, normatiza os critérios de Giovannoni, dividindo a obra de restauro em trabalhos de: consolidação; recomposição por anastilose; liberação de acréscimos privados de efetivo interesse; complementação de partes assessórias para evitar a substituição; inovação [19] ou acréscimo de partes indispensáveis com concepção moderna.

Partidário da escola "giovannoniana", o arquiteto Ambrogio Annoni, autor do clássico "Scienza ed arte del restauro" (1946), diverge quanto à necessidade de normatizar as operações de restauro em um código de procedimentos. Annoni defendia a tese de que a circunstância ditaria o critério, "il caso per caso". Grassi afirma que esta postura de Annoni nasce a partir de um bom senso formulado na prática das obras de restauro, sendo "hoje particularmente atual" [20].

A destruição, provocada pelos bombardeios na Segunda Guerra, de inúmeros centros históricos e edifícios monumentais europeus, levou ao questionamento dos conceitos do "Restauro Científico", que exigiam uma postura de quase neutralidade do arquiteto em relação ao monumento.

O momento dramático reclamava dos arquitetos uma postura ativa frente à destruição generalizada, quando do estabelecimento das bases do "Restauro Crítico". Piero Gazzola reedificou estilisticamente a ponte do Castelvecchio em Verona, completamente destruída pelos alemães. O próprio Giovannoni reconheceu, conformado, naquele momento, que "será melhor um restauro cientificamente imperfeito, que represente uma nota perdida na história da arquitetura, que a renúncia completa (da carta de restauro), a qual privaria as nossas cidades dos seus aspectos característicos nos mais significativos monumentos" [21].

Em 1964 reconsagram-se os princípios do Restauro Científico, durante o Congresso realizado na cidade de Veneza, quando os pensamentos de Boito-Giovannoni são revistos e ampliados. A partir destes conceitos teoricamente reelaborados por Cesare Brandi é redigida a Carta Italiana de Restauro de 1972. Brandi conceitua a restauração de bens culturais como "o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dupla polaridade, estética e histórica, tendo-se em vista a sua transmissão para o futuro". O segundo princípio de Brandi é que "o restauro deve mirar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar os traços da passagem da obra de arte no tempo" [22].

A partir dos anos oitenta, inicia-se um intenso debate na Itália objetivando a reformulação dos preceitos normatizados na Carta de Veneza de 1964 e na Carta Italiana de Restauro de 1972.

A ampliação do conceito de bem cultural nos últimos anos em contraposição aos mesmos princípios de intervenção formulados no início deste século (N.E.: século XX) demonstra um equívoco de origem na formulação das Cartas.

Internacionalmente, contesta-se, hoje, o conceito tradicional de "autenticidade", a partir do qual foi construída a teoria do restauro conservativo. Paulo Marconi adianta que o termo "falso histórico é impregnado de moralismo de sacristia" [23]; cita como exemplos de autenticidade as reconstruções dos monumentos japoneses e a reconstrução, no séc. XVII, da fachada gótica construída por Carlo Fontana no Palazzo Pubblico di Siena, responsável pelo milagre estético da Piazza del Campo.

A generalização das posturas do restauro independentemente das diferenças dos objetos tratados, é considerada impraticável. A impossibilidade de se restaurar a cidade histórica, a paisagem, o edifício, com idêntico critério de intervenção da pintura, escultura, objetos históricos, obriga a uma ampla revisão nos critérios de Brandi, já contestado no passado por Roberto Pane. Busca-se uma nova conciliação entre o liberalismo arquitetônico do "Restauro Crítico" e o pensamento conservativo do "Restauro Científico".

A arquitetura (das cidades, dos edifícios, das paisagens transformadas), denominada "Monuments vivants", possui intrinsecamente o caráter da mutabilidade, que constitui o fator primordial de sua permanência através dos tempos. Ao contrário das obras de pintura ou escultura, está exposta aos cataclismos, aos desgastes do uso, ao tráfego, às intempéries, às variações climáticas etc. Constitui-se no espaço privilegiado onde a sociedade se transforma, e sua sobrevivência depende da sua capacidade de adaptar-se às novas exigências sociais.

Camillo Boito, ao reconhecer os valores de permanência das estratigrafias sobrepostas nos monumentos arquitetônicos, indiretamente reconhecia o seu caráter de mutabilidade.

A exigência do respeito absoluto às marcas do passado, tanto na arquitetura como nas demais artes, segundo o pensamento de Brandi, permite que "uma cidade se reduza à cenografia" arqueológica, mero objeto de fruição visual [24]. O conceito de restauro fixado em Veneza em 1964, ao abolir o liberalismo do pós-guerra, valorizou a importância absoluta do passado, assegurando-lhe o direito exclusivo de transmissão para o futuro. O processo histórico de transformação deveria ser interrompido, de modo a alijar a época presente do direito de permanência. O espaço da intervenção contemporânea deveria ser sempre "fora" do espaço histórico; afinal, o tempo atual seria privado de autenticidade - "um falso histórico".

Da Convenção do "Consiglio Nazionale delle Ricerche", em Roma (1986), nasce a "Carta 1987 da Conservação e do Restauro de objetos de arte e de cultura" [25], cuja alteração principal das Cartas anteriores funda-se na separação metodológica e conceitual do restauro das obras de arquitetura dos demais objetos de arte e cultura. O coordenador dos trabalhos de redação desta nova Carta [26], Arq. Paolo Marconi, sintetiza este documento apropriando-se de uma frase do Arq. Roberto Gambetti: "far rientrare l'architettura nella sua storia".

O projeto final de restauro da Fortaleza da Barra Grande tem, como compromisso, reintroduzir o monumento à vida cotidiana da Baixada Santista, devolvendo à vida um espaço agonizante. Reincorporar sua arquitetura no processo histórico interrompido, através de uma proposta projetual contemporânea, implica necessariamente em buscar o respeito mútuo entre a nova arquitetura e a estrutura antiga.

A "restauração prismática" ou recomposição volumétrica da Casa do Comandante, vislumbrada pelo mestre Lúcio Costa há quase cinqüenta anos - centro focal do conjunto, e hierarquicamente destacada na organização do espaço militar - foi possível com a execução de uma delicada estrutura metálica, moderna e discreta, que parece quase tocar nas superfícies antigas, porém afasta-se, respeitosamente, até cobrir um vão protegido de quase 40 metros. A contemporaneidade do desenho espacial concebido em aço Cos-Ar-Cor revela a obediência aos termos da Carta de Veneza, quando prescreve: "todo trabalho complementar reconhecido como indispensável por razóes estéticas ou técnicas, destacar-se-á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso tempo".

Não se buscou, assim, a imitação do passado recente ou remoto; optou-se em assumir a arquitetura contemporânea como uma verdade de nosso tempo, reversível tecnicamente, mas com direito à permanência, se o futuro assim determinar.

Todas as marcas do passado serão mantidas, conforme recomendava Brandi, e a unidade potencial da obra se assegurará através da presença da arquitetura de hoje, elo necessário para transmitir o monumento para o futuro, como assegura a Carta de 1986.

O debate sobre este projeto foi um espelho da história da restauração, o que nos leva a creditar a todos os que, direta ou indiretamente, participaram da luta pela preservação da Fortaleza [27], a co-autoria da obra que se inicia. Foi um projeto amadurecido por quase cinqüenta anos, do mestre Lúcio Costa à participação de todos.

(*) Vitor Hugo Mori: arquiteto do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, graduado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie.


Restauração
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NOTAS:

[1] O arquiteto e urbanista Lúcio Costa era nesta ocasião diretor de Estudos de Tombamento do IPHAN.

[2] G. B. Antonelli, responsável pela primeira edificação de um ponto fortificado na Barra Grande em 1583, ocasião em que acompanhava a esquadra de Flores de Valdez, era segundo Rafael Moreira, em seu texto "A arquitetura militar", in "Arte em Portugal" - Editora Alfa, engenheiro militar italiano que chegou a Portugal acompanhando o Duque de Alba, e foi autor de "interessantes estudos para ligar Abrantes ao escorial e Madri por via fluvial", juntamente com o "seu auxiliar o jesuíta Gaspar Sampere", empreenderam inúmeras obras "no Rio de Janeiro e Santos (1582-1584) e no Nordeste (1597)".

[3] O engenheiro militar Brigadeiro João Massé é autor da reestruturação da Fortaleza da Barra Grande em 1712, e também de interessante projeto de defesa para a Vila de Santos.

[4] RUSKIN, John - "Le sette Lampade dell' Architettura" - apresentação de Roberto Di Stefano - Milão - Editorial Jaca Book - 1981 - pág. 227.

[5] RUSKIN, John - op. cit. - pág. 228.

[6] LA REGINA, Francesco - "William Morris e l'Anti-Restoration Movement" - Revista Restauro - nº 13/14 - 1974, pág. 130.

[7] LA REGINA, Francesco - op. cit. - pág. 135.

[8] PEREIRA, Gustavo - "A questão da preservação segundo John Ruskin e William Morris e a criação do anti-restoration movement em 1877" - trabalho para a disciplina Restauro I - FAU-USP/FUPAM.

[9] GALLEGO FERNANDEZ, Pedro Luís - "Viollet Le Duc: la restauracion arquitectonica y el racionalismo arqueologico fin de siglo", in "Restauración Arquitectónica", Universidade de Valladolid - 1992, pág. 29.

[10] ARRECHEA MIGUEL, Julio Ignacio - "De la 'Composición' a la arqueologia", in "Restauración Arquitectonica", Universidad de Valladolid - 1992, pág. 12.

[11] ARRECHEA MIGUEL, Julio Ignacio - op. cit. - pág. 12.

[12] GALLEGO FERNANDEZ, Pedro Luís - op. cit. - pág. 38.

[13] DIAS DE ANDRADE, Antonio Luiz - "O Paradigma de Atibaia" - Trabalho programado para Tese de Doutoramento - FAU-USP.

[14] GALLEGO FERNANDEZ, Pedro Luís - op. cit. - pág. 31.

[15] GRASSI, Liliana - "Storia e Cultura dei Monumenti" - Società Editrice Libraria - Milão - 1960, pág. 434.

[16] BOITO, Camillo - "Questioni Pratiche di Belle Arti" - capítolo "Restaurare o conservare" - Milão - 1893 - op. cit. in Grassi, Liliana - op. cit. - pág. 434.

[17] Boito distingue a arte do restauro em três partes: Restauro arqueológico (Antiguidade), Restauro pictórico (Medieval) e Restauro arquitetônico (Renascimento).

[18] GRASSI, Liliana - op. cit. - pág. 446

[19] GRASSI, Liliana - op. cit. - pág. 448 - sobre a "inovação", a autora acrescenta que Giavannoni não acreditava nesta operação de restauro, pela impossibilidade de coexistência entre a arquitetura moderna e a antiga.

[20] GRASSI, Liliana - op. cit. - pág. 448 - Annoni é autor de inúmeras obras de restauro, com vasta experiência no canteiro. Nestas obras nota-se "a aceitação dos princípios boitianos".

[21] GRASSI, Liliana - op. cit. - pág. 451 - cit. "Il restauro di monumenti" (1945-46)

[22] BRANDI, Cesare - "Teoria del Restauro" - Piccola Biblioteca Einaudi - G. Einaudi Editore - TOrino - 1977 - pág. 6 e 8.

[23] MARCONI, Paolo - "Il restauro e l'architetto - teoria e pretica in due secoli di dibattito" - Marsilio Editore - Veneza - 1995 - pág. 10.B

[24] MARCONI, Paolo - op. cit. - pág. 5.

[25] Reproduzida na obra de MARCONI, Paolo - op. cit. - anexos A e B - págs. 207 a 228.

[26] Participaram, além de Marconi, na redação final desta Carta: Umberto Baldini e Paolo Mora (Instituto Centrale per il Restauro), Franca Manganelli (ICPL), Giovanni Di Geso (Ufficio Centrale), Giorgio Tempesti (Accademia di Belle Arti) etc.

[27] Vale ressaltar em especial o empenho de dois ex-militares: o Cel. Reginaldo Moreira de Miranda e o Cel. Élcio Rogério Secomandi.


Reconstituição hipotética - séculos XVIII e XIX
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