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A história da República, contada em 1939 (1)

Na sua edição especial de 15 de novembro de 1939, comemorativa do cinqüentenário da Proclamação da República - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):


Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, o proclamador da República
Foto publicada com a matéria

O cinqüentenário da Proclamação da República

Há meio século, na data de hoje, o Exército, a Armada e o povo brasileiro realizavam uma grande aspiração nacional, implantando o regime republicano e democrático no país

O Brasil comemora hoje o cinqüentenário da proclamação da República. Os acontecimentos que se produziram na capital do país há meio século correspondem a uma transformação radical no regime político do Estado. O que essa transformação trouxe, se não contou com estrita permanência na vida nacional, ainda aí subsiste, estruturando basicamente as Constituições que se sucederam.

Depois da declaração da independência política, a data da proclamação da República, no Brasil, assume nos fastos da história pátria a maior significação. O progresso que com esse acontecimento se obteve, desde a data da independência, era singularmente grande. Atuando sob fatores os mais diversos, a nacionalidade assumiu, por movimento próprio, a direção política e administrativa do país, realizando profundos anseios, tantas vezes expressos nos movimentos libertadores do Brasil colonial, e mesmo depois, nas subversões da ordem imperial.

A proclamação da República, na verdade, não se prende tanto a sucessos de caráter subversivo limitado, mas vinha de mais longe, e de mais fundas razões do que qualquer outra aspiração nacional. Por mais de uma vez, a idéia republicana se incluiu nas conspirações da independência, antes do 7 de setembro, e se produziu também depois em diversos movimentos dispersos, acabando por cristalizar-se nas organizações de clubes e partidos, cujos princípios se consubstanciaram no manifesto de 1870. Estava-se apenas nos primeiros vinte anos do segundo Império...

Hoje, que se podem ver com firme nitidez traçados os caminhos percorridos pela idéia republicana, a comemoração deste cinqüentenário é sumamente útil. Ela fará evidente, ao nos recordarmos das lições da História, que a consciência brasileira sempre pediu a República.

As manifestações desse imperativo vêm de um longínquo passado, o que compensa, enormemente, a sua aparente falta de extensão popular. Nem se poderia exigir, de um país sem pensamento político fortemente disciplinado - circunstância irremediavelmente ligada a todas as deficiências do meio - uma idéia política, por mais generosa que fosse, embebendo todos os matizes da opinião pública.

E é preciso ver, na análise deste ponto, que essa mesma opinião pública, com todas as suas restrições, era informe naquele tempo, e muito mais fracionada do que hoje, se se a considera em função das massas populares, que povoam as nossas cidades do litoral e do interior, em todas as distâncias. Além das dificuldades de comunicação que constituíam entraves insuperáveis, o analfabetismo, o reduzido nível de vida, a desordem econômica trazida pela abolição, tudo concorria para aumentar a diversificação daquela opinião pública, para dispersá-la, para torná-la impotente, naquilo que se pensa ser a indiferença do povo brasileiro pela vida política do país.

Sempre, porém, que se pensou e se fez acompanhar de ação o pensamento, na independência e no progresso da terra brasileira, a consciência nacional dos conspiradores e dos revolucionários se apresentava denunciadora do que enunciamos: a idéia da República vivia larvada na inteligência e na vontade dos nossos índices de ação política.

Se já no século XVIII as tendências libertadoras e republicanas se prenunciam, no século XIX todos os movimentos, quer os de reduzida proporção, locais, deficientes, ou os de mais larga e efetiva concretização, quase todos ingloriamente abafados nas execuções e nos combates exauridores, todos, repetimos, indistintamente, se apresentam iluminados pela reverberação democrática, visando a republicanização do Brasil.

Era, aliás, muito compreensível, desde que, por todas as circunstâncias do meio e da época, as idéias avançadas do tempo, na América, giravam em torno da República e da democracia. A independência dos Estados Unidos, vazando-se em República, a grande revolução francesa, a evolução industrial e econômica, os moldes em que se formavam os Estados hispano-americanos, tudo isto propiciava a aspiração republicana. Foi ela que fez de nossos heróis políticos somente heróis republicanos, "de Bernardo Vieira a Tiradentes, aos esquecidos executados de 1799, na Bahia, ao padre Pessoa, a frei Caneca, Sabino, Pedro Ivo", como recentemente o recordava o professor Hermes Lima.

O Império aumentou todas aquelas razões históricas, sentimentais e econômicas. Transplantara para a colônia, ao fim de um século de decadência da mineração, uma nobreza que aqui artificialmente se reproduziu, na ausência de bases tradicionais e de raça. E o Segundo Império, herdeiro das deficiências do Primeiro, acentuaria todo o drama de sua incompatibilidade, pela incompreensão da atualidade econômica, pela insistência nos erros de nossa formação nacional, desde as soluções dadas ao problema da educação brasileira, até e principalmente o alheamento com que deixou escoar diante de si as condições do trabalho, ou sejam as da produção. O Segundo Império falhou por não ter uma base orgânica com estabilidade econômica.

***

Comemorando o 50º aniversário da proclamação da República, não iremos além da significação do fato, do histórico de acontecimentos que precederam a Proclamação, da evocação do amadurecimento da idéia, entre os sucessos históricos paralelos. Esta edição destina-se, pois, nas páginas dedicadas à grande data de hoje, a pôr em foco fatos e personalidades, todas objetivando o 15 de novembro. Não cabe, efetivamente, abordar mais do que isto.

A data lembra e celebra a mudança do regime, o que dá origem ao meio século das nossas instituições. Os cinqüenta anos decorridos puseram à prova a Constituição de 1891, as emendas a essa Carta, consubstanciadas na Constituição de 1926, a de 16 de julho de 1934, cuja vigência foi apenas de três anos, e, finalmente, a de 10 de novembro de 1937, outorgada pelo atual governo da República.

Não penetraremos na análise do período histórico que essas Constituições compreendem. Acresce que, ao lado da inoportunidade de um balanço geral, meio século nada é, na história, e que os homens que viveram a República, em grande parte, ainda aí estão, participando das atividades contemporâneas. Nem a distância deu nitidez ao recente passado, ensejando um julgamento... Protagonistas e testemunhas dos sucessos destes cinqüenta anos, acham-se ainda vivos, ou mal fechadas as campas em que repousam. As paixões, os entusiasmos, a fé que despertaram, bem como o ódio e a oposição que arrostaram, ainda palpitam em torno de sua memória.

Explicado o fim destas páginas comemorativas do 15 de novembro de 1889, cabe-nos alongarmos ainda, fora da evocação cronológica de datas, de homens e de episódios, aos motivos por assim dizer essenciais que determinaram, no conteúdo e no fundamento da história da decadência do Império, a transformação operada.

Esse estudo das causas será feito aqui, para que o leitor tenha uma idéia mais precisa de como se processou o movimento da republicanização do país, desde que se impôs a iniciativa organizadora, com partido, clubes e jornais de propaganda, abrangendo o país todo, e sem a dispersão e a localização regional que se distingue, tão nitidamente, em outras fases da evolução da idéia republicana, como no movimento da Inconfidência, da revolução pernambucana de 1817, na da Confederação do Equador, na Sabinada ou na guerra dos Farrapos.

A história, como a entendia notável polígrafo patrício, não deve ser colocada a serviço da apologia gratuita ou da crítica póstuma. A história deve explicar... Apresentando aqui um exame retrospectivo, de um largo período do Brasil independente, sem nos afastar dos moldes jornalísticos, tencionamos, cingido às melhores fontes, explicar o mais possível.

***

Não só a vida dos homens mas também a vida dos povos decorre da satisfação de necessidades orgânicas. O desaparelhamento econômico do Segundo Império está na base de seu depauperamento. Toda a vida parlamentar imperial, copiada da Inglaterra, é o produto exótico de uma adaptação formalista. Na frase de um historiador moderno, ao império brasileiro faltava o que os navios não transportavam: a ação. Daí o desaparecimento econômico e a inocuidade das medidas tomadas para conjurar as crises, para extinguir o trabalho escravo, para organizar a produção, vivificando a exploração da terra.

Não viu Pedro II os sinais da grande transição econômica do século. Escapou ao imperante a magnitude da mudança formidável que a indústria introduziu, nesse surpreendente século XIX, nas realidades básicas das sociedades humanas. Nunca transição alguma operara tão violentamente um plano econômico.

Desde a Grécia de Aristóteles, a existência do escravo estava condicionada como uma necessidade das sociedades humanas. O século XIX, por intermédio do carvão e da máquina, veio dispensar o escravo. A pioneira da economia moderna, a Grã Bretanha, surge, no panorama mundial, como vanguardeira da emancipação dos escravos. E, entretanto, nas últimas décadas do século anterior ela importara dois milhões de negros.

A transição explica porque a Inglaterra liderou a substituição da base da economia aristocrática, situada no ouro e no escravo, pela base moderna do século situada no carvão e na máquina, como resultado da revolução industrial.

Os interesses feridos pela política emancipadora, cuja expressão mais nítida é o "bill" Aberdeen, em 1845, deveriam reagir acompanhando uma transformação que se impunha em toda a economia mundial. O Império brasileiro não o compreendeu. Premido pela transição econômica conduzida pela Inglaterra, tendo sido obrigado a extinguir o tráfico porque a lei do conde Aberdeen colocara um cruzeiro inglês contra o comércio de escravos nas águas do Atlântico, o Brasil continua, inconscientemente, com a sua política parlamentar imperial, com os seus condes e viscondes, seus barões e conselheiros... Não se compreendera a célebre frase do odiado e combatido Bernardo de Vasconcellos: "A nossa civilização vem da Costa d'África"... Ora, suspenso o tráfico, deixou-se de importar esse elemento de civilização, ou seja, essa base do império, principal fator que era da produção nacional.

Cinco anos depois da lei de Aberdeen, quando a Inglaterra, em nome de uma cruzada humanitária, passa a intervir nos mares contra os navios negreiros, é decretada a extinção do tráfico. A lei de Eusébio de Queiroz é de 1850. O comércio resiste, porém, ainda mais três anos, extinguindo-se só em 1853.

Essa data será tomada algum dia como início da história da decadência do Império. Efetivamente, sem o seu fator orgânico essencial, o trabalho escravo, não resta mais justificação ao Império. Prova-o o fato de terem daí em diante os partidos políticos perdido a sua justificação, pois diante do fato consumado os conservadores abandonaram o Trono... Este procurou o apoio dos liberais, e surge a fórmula de conciliação. Os agrupamentos liberais e conservadores, sem programa, passam assim pela crise bancária de 1864, o índice mais evidente do mal-estar econômico, que a extinção do tráfico determinara.

Denunciaram-se as más colheitas que haviam seguido à extinção do tráfico. A denominação de "crise bancária" revela, porém, que o fenômeno levara os seus estremecimentos até a cidade. Examinando retrospectivamente a situação, Mauá dirá, em 1878, que a denominação de "crise bancária" era imprópria, porque na raiz das dificuldades comerciais sentidas no Rio estava a "crise da lavoura".

Antonio Ferreira Vianna, estudando naquele mesmo ano a situação, pintava o quadro assim: "A crise veio de um grande número de operações mal concebidas, de empresas temerárias, do jogo dos fundos públicos, das ações das companhias e dos graves transtornos por que passou a lavoura".

Colocava, como se vê, o fator principal no fim da enumeração de motivos... Porque, na verdade, foi a crise agrícola que serviu de fator básico da crise. Interrompido o tráfico, deixando de entrar no país a média de 30.000 escravos por ano, os capitais aí empregados foram deslocados abruptamente. No desequilíbrio verificado, não contando com capitais fáceis como os tiveram o Canadá e a Austrália (a política dos juros altos até agora persiste), observa-se uma verdadeira corrida dos lavradores para a Corte, e a partir daí as propriedades se entregam desbragadamente à hipoteca.

Um fato a notar é que nem mesmo as casas bancárias, o alto comércio que dispunha de capitais, era nacional. Formava a maioria dessas casas a colônia portuguesa, e portugueses haviam sido os dirigentes do comércio de negros. Se neste setor a influência britânica esmagara os lucros, com a extinção do tráfico, no financiamento à lavoura iriam eles desforrar-se das perdas, minando as bases da produção nacional. A desorganização da lavoura acha-se expressa na marcha do café, que se transfere através o território brasileiro, descendo do Ceará até São Paulo, à procura de produção agrícola organizada.

Por sentimentalismo, por humanitarismo, Pedro II era abolicionista. A solução do problema se lhe apresenta, entretanto, com toda as características de um lento suicídio do Trono. Através da Lei do Ventre Livre, e até a abolição, o que o Trono fez foi destruir a base econômica da classe dos latifundiários escravocratas, que o apoiava.

Depois da crise de 1864, o país é lançado à guerra do Paraguai. E o grande problema da organização livre da produção fica adiado.

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Dir-se-á: e anteriormente? Por que não se previra e não se cuidara, antes da Maioridade do Príncipe, na Regência e no Primeiro Império, da questão do trabalho livre no país?

Parece um contra-senso indicar que antes, no Primeiro Império, ainda mesmo nos pródromos da Independência, o país vira grandes homens do tempo empenhados na extinção do trabalho escravo. Outro não era pensamento do gênio político de José Bonifácio, que organizou o projeto de lei contra a escravatura. Examinando essa atitude, Joaquim Nabuco dirá de José Bonifácio que o seu ostracismo derivou das idéias que ele mantinha contra a escravidão ("O Abolicionismo").

O interesse pela colonização aparece-nos em d. João VI, tentando a organização de colônias de estrangeiros; em Pedro I, quando pedia "a entrada de braços úteis e a distribuição de terras incultas". Diogo Feijó encarou de face também a extinção do tráfico. A lei de 7 de novembro de 1831, "declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores de escravos", foi assinada por Feijó. E também aí, como Nabuco o suspeitava de José Bonifácio, talvez por essa lei tenha o severíssimo e formidável ministro da Justiça adquirido tantos ódios e aberto caminho ao ostracismo e à desgraça em que caiu. Mas a lei de 1831 nunca foi cumprida, donde então se justificarem as objurgatórias que o nosso governo teve de ouvir no Parlamento inglês, antes do "bill" Aberdeen.

Lord Brougham e Peel traduziram por mais de uma vez a condenação ao não cumprimento da lei. Traduziram, é verdade, "o imperialismo inglês" da época, em luta contra a escravatura, mas defendiam a previsão de Feijó, que em 1831 decretara a extinção do tráfico, a qual, vinte anos depois, necessitou ser novamente assinada por Eusébio de Queiroz, diante do cruzeiro inglês que apresava os navios negreiros viajando sob a bandeira nacional...

O pensamento republicano dos revolucionários de antes da independência e dos que se levantaram no Primeiro Império não se conciliava com a escravidão. Nabuco exumou, em sua obra já citada, o manifesto dos revolucionários de Pernambuco em 1817. Nele se vê a identidade entre o ideal republicano e a abolição, já naquele afastado período da história. Mesmo agindo contra os senhores rurais, os revolucionários de 1817 confessavam a sua vergonha diante da escravidão e, embora advogassem uma supressão lenta, diziam bem claro considerar ilegítima a "propriedade" de escravos.

Acoimados de abolicionistas, eis como recebiam a insinuação e a rebatiam: "Patriotas pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor e escravos. O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em sentimentos generosos, não pode jamais acreditar que os homens, por mais ou menos tostados, degenerassem do original tipo de igualdade..."

Por tudo isto, antes do Segundo Reinado, pode-se afirmar que o interesse pela abolição da escravatura foi enorme, nos que foram governo ou nos que pretendiam sê-lo. O Segundo Império, porém, deixou-se levar protelando a extinção da propriedade do escravo como esteio da produção. Retardou as soluções o mais possível. Não viu as tendências revolucionárias da transição econômica. Declarou o Ventre Livre, mas não tinha a simpatia pelo elemento humano de cor negra que José Bonifácio manifestava em seu projeto de lei, ao prever o ensino profissional para os libertos e a entrega de pequenas sesmarias aos escravos libertados, a fim de lhes ser dado também um amparo econômico.

Os que legislavam no Império de Pedro II eram os condes e marqueses, os barões e senadores vitalícios... E embora o sentimentalismo intelectual do imperador desejasse a abolição, ele não via o aspecto econômico do problema. Ao decretar-se a abolição, o negro é solto ao léu das circunstâncias, para que se arrume. Aliás, a única preocupação de ensino profissional que aparece nos cuidados do imperante é a de ministrar noções de ofícios aos cegos e aos surdo-mudos...

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Um dos últimos retratos de D. Pedro II, deposto pelo movimento de 15 de novembro
Foto publicada com a matéria

Vimos que antes do Segundo Império se cuidara da extinção do tráfico e da organização do trabalho agrícola livre. Vimos que o governo imperial teve de adotar a proibição do tráfico, e que se fosse respeitada a lei semelhante de Feijó, em 1831, teria ficado inteiramente resolvido o problema da escravidão negra. Entretanto, nos últimos anos antes da extinção do vergonhoso comércio, avultara enormemente a importação. De 1841 a 1851 entraram 325.000 escravos. O comércio negreiro crescera, e ao imperador se impunha uma medida complementar. A guerra do Paraguai, como vimos, cobriu a repercussão da crise agrícola.

Em plena guerra, o regime parlamentar imperial sofre um colapso tremendo, quando se abre a chamada "questão Caxias". O comandante brasileiro era conservador, e o gabinete liberal de Zacharias encontra-se diante de um dilema proposto pelo Imperador ao Conselho de Estado. Como Caxias acreditava ter o gabinete lhe retirado a força moral, demitia-se do comando; entretanto, o imperador queria saber se devia dar a demissão do generalíssimo no Paraguai, ou a do gabinete. Qual seria o menor mal, dadas as condições especialíssimas da situação, perguntava o imperador: a demissão do general ou a do ministério?

A crise, surgida em fevereiro, só tem solução em julho, quando o imperador encontra, afinal, um meio de sacrificar o ministério a Caxias. É o chamado "golpe de Estado" de 1868. Cai Zacharias, e sobem os conservadores com Itaborahy... Recebendo no Senado o ministério conservador, Nabuco de Araújo, líder liberal, pronuncia o seu famoso "discurso de sorites", no qual se faz a primeira grande crítica da insanidade das instituições do Império. O discurso é de 17 de julho de 1868, e pela primeira vez no país um senador e conselheiro de Estado tacha de "ilegítimo" o uso, pelo imperador, da atribuição constitucional da escolha de seus ministros.

É uma curta peça o "discurso de sorites", mas desde as suas primeiras palavras, no seu segundo período, Nabuco de Araújo dizia: "... tenho apreensões de um governo absoluto: são de um governo absoluto de direito, porque não é possível neste país que está na América, mas de um governo absoluto de fato". A substituição dos liberais pelos conservadores, na emergência, é julgada pelo eminente homem público "uma fatalidade para as nossas instituições". E perguntava: "Ora, dizei-me: não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo - o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa fez a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema representativo do nosso país!".

Escrevendo na biografia de seu pai sobre a significação do discurso de 17 de julho, diz Joaquim Nabuco acertadamente: "com ele começa a fase final do Império".

Daí a dois anos, era publicado o primeiro manifesto republicano, e em 1873 reunia-se a Convenção de Itu.

Se ao lado da desorganização econômica que lavrou desde a extinção do tráfico necessitamos colocar, como causa do enfraquecimento do Império, a sua inanidade política, onde, ao contrário do que queria Nabuco, falando perante o imperador, o "rei reinava e governava", merecendo a definição de "Poder irresponsável" - é porque estes dois aspectos, o econômico e o político, concorrem para abrir a clareira da propaganda republicana. O manifesto dos republicanos em 1870 ampliará a acusação, dizendo que o rei reinava, governava e administrava.

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O "mal-estar generalizado", que Vicente Licínio Cardoso denuncia na vida econômica do fim do Império, é um recorte verdadeiro da nossa situação de inferioridade, que iria, primeiro, provocar a transformação do regime político. Diz esse historiador, no seu estudo à margem do Segundo Império: "Certo, houve progresso, houve aumento valioso das energias econômicas do país. Apenas esse aumento não foi o que deveria ter sido. O confronto com a evolução do Canadá, da Argentina, da Austrália, não nos é de modo algum favorável. Os dados estatísticos de Rio Branco, na obra de Lavasseur (1889), são verdadeiros: mostram, de fato, grande aumento, quando confrontados com os de 1840 ou 1822. Mas exigem pontos de referência. E, sem eles, as estatísticas tornam-se geralmente perigosas". E cita o único escritor da época que estudou a situação em sua verdade insofismável (Carvalho Moura, Estudos Econômicos, 1885).

"Em um período de 38 anos (1844-1882), não pudemos nem ao menos aumentar a nossa exportação na razão de 85%, ao passo que a nossa população cresceu em uma razão de 125%, segundo os cálculos mais possíveis, e as exigências do Estado se elevaram na razão de 514,99% no mesmo período". E noutro lugar: "Em Pernambuco, a província mais adiantada do Norte, sob o ponto de vista agrícola, uma quarta parte, pelo menos, de seus produtos, estava onerada de compromissos muito superiores à totalidade de todos os seus haveres".

E Licínio Cardoso detalha: "Demais, tão crítica fora a situação comercial no Recife, em 1882, que o governo imperial fora obrigado a suprimir os impostos provinciais de consumo". A crise era geral. Os dados são impressionantes. "Os capitais empregados no Norte do Império em terras, engenhos, escravos, maquinismos agrícolas e instrumentos de trabalho, acham-se onerados com um débito médio nunca inferior a 60% de sua totalidade". "Nas províncias de S. Paulo, Minas e Espírito Santo, existiam 773 fazendas de café, das quais 726 se achavam hipotecadas pela quantia primitiva de 42.000 contos..."

O 36º gabinete do Segundo Império, formado a 7 de junho de 1889, sob a presidência do visconde de Ouro Preto (Affonso Celso de Assis Figueiredo), quando se apresenta a Câmara com o seu programa de governo, aponta a maré montante da propaganda republicana, afirmando ser necessário "não desprezar essa torrente de idéias falsas e imprudentes, cumprindo enfraquecê-la, inutilizá-la, não deixando que se avolume".

Não queria empregar os meios de violência ou repressão para vencer a propaganda, mas fazer a "demonstração prática de que o atual sistema de governo tem elasticidade bastante para admitir a consagração dos princípios mais adiantados, satisfazer todas as exigências da razão pública esclarecida, consolidar a liberdade e realizar a prosperidade e grandeza da pátria". Apresentara já Ouro Preto ao imperador a sua definição do momento brasileiro: "Necessidade urgente e imprescindível de reformas liberais". Tão longe vai a enumeração das reformas apresentada à Câmara, que um deputado, o sr. Pedro Luiz, aparteia, dizendo: "É o começo da República". Ao que Ouro Preto responde: "Não: é a inutilização da República".

A moção de desconfiança apresentada pelo deputado sr. Gomes de Castro, a 11 de junho, dizia: "A Câmara dos Deputados, informada do programa do gabinete, recusa-lhe a sua confiança". A 17 de junho é lido o decreto que dissolve a Câmara, convocando outra para 20 de novembro do mesmo ano. Cinco dias antes dessa data, seria proclamada a República.

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Procuramos dar aqui uma visão exata de certos aspectos culminantes das grandes causas que nos trouxeram a República. O desejo expresso pelo Trono em várias "falas", durante muitos anos, para apressar-se o abolicionismo, ignorava a crescente desorganização do trabalho, agravada pela lei do Ventre Livre, que produziu a "reação conservadora". Assim, os proprietários de terras e de escravos se mostravam incapacitados para compreender a "evolução agrícola de Antonio Prado" (que troca a escravidão pela imigração). Mesmo de Antonio Prado, fora tardia a iniciativa na apresentação do projeto de lei de abril de 1888, o mês anterior à abolição, estipulando "a abolição imediata, mas sob a condição de trabalharem os libertos nas propriedades em que se achem, pelo prazo de dois anos e mediante retribuição pecuniária".

A decretação pura e simples da abolição servira para precipitar a República. Nos Pensamentos Brasileiros, em 1924, Vicente Licínio Cardoso comenta, desta forma, o fim da monarquia diante do fator que para isso representou a abolição da escravatura:

"Na vida dos fenômenos, a estabilidade se funda e se concretiza, as mais das vezes, pelo embate de forças antagônicas. O escravo é o sustentáculo da nobreza; a magnificência do trono depende, de outro lado, da humildade do elemento servil. E, por isso, a abolição dos escravos, no Brasil, trazia em si mesma a própria alforria dos senhores de terras. A subserviência ao rei é o reflexo apenas da escravidão do homem da gleba ao senhor da terra. Escravo é também quem escraviza. Bem pensado, portanto, a lei de 13 de maio contém o próprio decreto da extinção da realeza".

Escudado nos dados de Tobias Monteiro (Pesquisas e Depoimentos para a História), o mesmo historiador denunciara o inócuo ato da abolição, quando a emancipação, em realidade, estava mais próxima do que se pensava. De um milhão e meio em 1873, dez anos depois, em 1883, havia apenas um milhão e duzentos mil. E em 1888 apenas havia meio milhão de escravos... Mas a abolição era liberal, e o Trono, movido pelos abolicionistas, lançou-se a esse remendo de seu desmoronamento. Obteve apenas enfraquecer-se mais...

Se bem que o manifesto de 1870 prudentemente não falasse na abolição da escravatura, em 1872 o manifesto paulista insinuava:

"Sendo certo que o Partido Republicano não pode ser indiferente a uma questão altamente social, cuja solução afeta todos os interesses, é mister, entretanto, ponderar que ele não tem, nem terá, a responsabilidade de tal solução, pois que antes de ser governo, estará ela definida por um dos partidos monárquicos".

Quando se discutia a questão do elemento servil, sob o gabinete Dantas, os deputados republicanos, por intermédio de Campos Salles, já eram mais peremptórios: "... a bandeira da República não pode cobrir o reduto da escravidão".

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Os republicanos aproveitaram a ruína do regime monárquico, precipitada pelo abolicionismo, mas não há dúvida que o Império era insubsistente, por si, na debilidade de sua estrutura econômica. A propaganda da República vinha de dantes da independência, reatava as tradições liberais e democráticas que a monarquia não podia viver porque seu conteúdo era conservador, escravocrata, reacionário. Essas forças, na palavra de um escritor moderno, "sempre foram tão poderosas que acabaram fazendo do regime monárquico um bem exclusivo delas, um bem de classe, e, decretada a abolição, era natural que a coroa não apresentasse mais nenhum interesse para a classe dos ex-senhores".

Contudo, não seria pelo desapontamento de tais despeitados que a República ia ser proclamada. O movimento republicano, desde a guerra do Paraguai, ganhara influência no Exército. O apostolado de Benjamin Constant se fizera no seio das classes armadas. A questão militar ia decidir o mais.

Entretanto, um fundo de sadio idealismo, de integração do Brasil no concerto da América, um pensamento democrático generoso, percorre e vivifica a obra da propaganda. É o único patrimônio político brasileiro que palpita em mais de um século de história, desde a colônia ao fim do Segundo Império. É ele que faz heróis em todos os movimentos políticos da vida nacional. Pela sua força criadora, esse idealismo republicano, eloqüentemente democrático, precisa e deve ser preservado através do presente e do futuro, alargando-se, espraiando-se de acordo com as condições dos tempos novos, atendo-se à natureza complexa dos problemas sociais e das soluções adequadas e progressistas que lhes cabem.


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A Constituição

Quinze meses depois de proclamada a República, era assinada a Constituição de 24 de fevereiro. O governo provisório extinguia-se, dessa forma, sem sobrepassar os objetivos da revolução de 1889, embora pela imprensa não faltasse quem fizesse oposição à demora dos trabalhos da Constituinte.

O clichê que publicamos aqui é um trabalho alegórico publicado na Revista Illustrada, de março de 1891, glorificando o Congresso e a Constituição. Nele se vêem os constituintes, em torno do seu presidente, Prudente de Moraes, e sobre as páginas da Constituição, em pedestais, o presidente, marechal Manoel Deodoro da Fonseca, e o vice-presidente, Floriano Peixoto.

A legenda da "Revista Illustrada" dizia: "O Brasil gloria-se de haver discutido e promulgado uma Constituição adiantada, com o concurso dos seus filhos mais diletos, terminando essa grande obra pela eleição de dois dos principais fatores do dia 15 de novembro, para as supremas magistraturas da pátria livre. Honra à América! Viva a República!" (N.E.: na época, a palavra "fatores" era mais usada no sentido de "realizadores", como neste caso).

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