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DIA DE ANCHIETA
O jesuíta e os tamoios

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Anchieta e a Confederação dos Tamoios

Oliveira Ribeiro Neto

Foi uma festa quando nos conveses das naus pequeninas de enormes velas, depois de dias e dias infindos de travessia, os primeiros colonizadores viram de longe a primeira asa anunciadora de terra, a primeira palma a acenar-lhes como uma esperança verde. Ali estava a morada querida, a Canaã dourada dos seus sonhos de grandeza, com os seus canaviais e os seus moinhos pitorescos, encostada ao contraforte da Serra do Mar, a prometer-lhes paz, fartura e descanso.

22 de janeiro de 1532. Tamiurú, o vilarejo praieiro, fremiu num vai-e-vem rouco de inúbias, quando, na linha azul-cobalto do céu, apareceu a armada de cinco cascos luzidos, de cinco velas enfunadas cor de luar. Cigarras chiavam ébrias de sol e de liberdade, nas moitas de cidreiras. Na praia morna, homens de bronze banhados de luz olhavam atônitos a civilização que lhes chegava nos veleiros abençoados sob a cruz rubra de Cristo.

Aos olhos dos selvagens um séqüito deslumbrante desembarcou então, vestido de panos estranhos - veludos macios, estamenhas pardas, bombazinas coloridas, paramentado de plumas reluzentes de armas -. Era Martim Afonso, o guerreiro navegante. Eram os seus quatrocentos colonos portugueses, que D. João III mandava para a primeira cidade do Brasil. Era Baltazar Gonçalves, o capitão da Rosa, o iniciador das gentes mamelucas nas aventuras do bandeirismo; eram Diogo Leite e Pero Lobo Pinheiro, capitães da frota; Garcia Rodrigues e sua mulher Izabel Velho, rodeados da prole numerosa; Estevão Ribeiro Bayão e sua mulher Madalena Feijó de Madureira; eram os jovens João do Prado, Henrique da Cunha, Salvador Pires, corações povoados de sonhos, almas delirantes de ambição; era o velho João Pires "o gago", cansado e trôpego, cabeça aureolada de neve mas esbraseada ainda na idéia fixa da riqueza que esperava obter; eram os outros fidalgos, de pequena nobreza, de fortuna decadente; era a burguesia, era a plebe, era a aventura. Era a certeza, no coração dos moços e na ilusão dos velhos, de encontrar ali a cidade lendária dos templos de ouro.

Alguém, da mesma raça branca, entre os tupiniquins da praia e os tupinambás da serra, os esperava de braços abertos, com claridades de festa nos olhos cansados, levando a Martim Afonso o apoio de 300 arcos, que contiveram a ameaça primeira dos tamoios, prestes a se atirarem, numa fúria de destruição, contra o branco desprevenido: - João Ramalho, um náufrago infeliz ou um degredado "de mil crimes infames", um herói, um excomungado ou um santo. Brilharam-lhe mais os olhos claros ao brilho das armaduras guerreiras. Abriram-se-lhe os lábios num sorriso comovido, ao esforço da língua emperrada que pronunciava novamente as palavras que aprendeu no berço. Curvou-se-lhe a cabeça, ante a lembrança da pátria que ficara além do mar.

As mamelucas esguias, adornadas de penas, ofereciam aos recém-vindos com a polpa de púrpura dos lábios uvaias louras e cheirosas, úmidas de orvalho.


João Ramalho e o filho
    Detalhe de pintura a óleo de Wasth Rodrigues, Museu Paulista, S.Paulo/SP
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

João Ramalho compreendeu que ali, ante os seus olhos, desenhava-se a alvorada de uma raça. E o patriarca, com as mãos trêmulas e calejadas, abençoou os homens que vieram de longe - que seriam os pais dos netos dos caciques, os avós dos bandeirantes do futuro, e ligariam para sempre, num laço de alma e de sangue, duas terras que o mar unia e desunia, as duas pátrias que o destino generoso lhe deu.

Estava fundada São Vicente, a "Célula Mater" da nacionalidade, o berço primitivo das bandeiras. Mas era preciso ir adiante, era preciso subir, vencer a Serra do Mar, atalaia verde do nosso destino de povo livre. Cá em cima ficavam os campos de Piratininga, onde se aninhava o gentio guaianá, de alma doce e inteligente, terreno esplêndido para a sementeira das idéias cristãs. Foi então que os espinhos agressivos da mata fechada rasgaram pela primeira vez a roupeta negra e a pele branca dos jesuítas que nos trouxeram a fé e que benzeram com o sangue das feridas recém-abertas a terra selvagem, dando à serra o primeiro contato com a civilização.

A essa época João Ramalho já havia fundado a sua vila de Santo André da Borda do Campo, mas, entrosado e entroncado na vida indígena, em vez de converter-se tornara-se convertido. Os doces irmãos de Santo Inácio de Loiola traziam na alma, para depositar no coração do gentio, a imagem de Jesus. E a brutalidade da floresta, a altura dos penhascos que lhes feriam as mãos e os joelhos que subiam, o peso do cansaço, para eles era nada, como nada foi ante o esplendor da fé que o conduzia, a correnteza do rio enorme que São Cristovão atravessou sob a carga sagrada de Jesus Menino. Era preciso avançar levando para diante a cruz do Redentor. Entre essas almas de luz com roupeta de treva, pálido e frágil como um adolescente, aureolado de santo, segue José de Anchieta, que para tudo tem olhos comovidos e um sorriso de amor.

Depois foram os campos de Piratininga, a primeira taipa batida, a primeira igreja, a primeira cruz. E o destino, prevendo o que seria mais tarde a cidade nascente, deu-lhe o nome dum santo guerreiro - São Paulo, que traz nas mãos uma espada para afirmar com a força a grandeza do seu exemplo.

Como a semente pequenina que se vai transformar depois na árvore gigantesca, boa e acolhedora, assim foi a casa de São Paulo, minúscula, coberta de sapé, no cimo do planalto, entre os ribeiros do Tamanduateí e Anhangabaú. José de Anchieta, antevendo que a cabana - que media quatorze palmos de comprimento por dez ou doze de largura - se transformaria na metrópole mundial de hoje, relembra, no pitoresco de sua linguagem de poeta, que "Jesus se colocara em mais estreito lugar e se dignara nascer em uma pobre manjedoura, entre dois brutos animais".

Nessa casa de tão reduzidas proporções tiveram os missionários a igreja, a escola, o dormitório, a enfermaria, o refeitório, a cozinha e a despensa, até que dois anos depois se inaugurou a igreja nova, com o colégio e o templo, em torno da qual já se abrigavam as cabanas dos indígenas.

Duas vezes por dia a voz de um sino convocava à Igreja o gentio converso. À hora dourada das matinas ou na hora roxa e dolorosa dos crepúsculos, as garças rosadas, pousadas à beira das lagoas, levantavam as cabeças de longos pescoços elegantes, ouvindo o tropel das índias que corriam aos chamados dos sinos. Esta levava nas mãos bronzeadas um punhado de boninas vermelhas para depor aos pés brancos de Cristo; aquela outra carregava, na concha de uma folha, favos louros de mel para o Deus-Menino. De joelhos, diante do lenho alçado, as mãos cruzadas sobre o peito, comprimindo as cruzes toscas de madeira dos colares de miçangas, elas deixavam que sua alma se levantasse aos céus juntamente com os cantos que entoavam na sua língua, exalçando as glórias do Deus dos brancos que as viera procurar na profundidade das selvas.

Quanto aos homens, já era mais difícil de atrair: mordidos pelas cobras venenosas ou ardendo em febres, eles se chegavam à batina dos apóstolos que os curavam, prometendo-lhes seguir a lei de Deus. Milhares de anos na liberdade e nos vícios das matas, entretanto, chamavam-nos outra vez ao mesmo caminho do erro e da depravação.

Escrevendo ao Padre Geral, a 1º de junho de 1560, fala Anchieta sobre a dificuldade da catequese: "Se escrever a Vossa Paternidade que haja muitos dos brasileiros convertidos, enganar-se-á a sua esperança". Adoeceu um dos catecúmenos em uma das aldeias nos arrabaldes, continua o catequista augusto - "e fomos lá para lhe dar algum remédio, principalmente para sua alma; dizíamos-lhe que olhasse para sua alma, e que deixando os costumes passados, se preparasse para o batismo; respondeu que o deixássemos sarar primeiro, e esta resposta somente nos dava, a tudo que lhe dizíamos nós". E assim dizendo tapava o íncola os ouvidos do corpo e do coração. Um outro, moribundo, escondia os olhos com as mãos para morrer longe da Igreja e sob o olhar de Tupã.

Mas, para compensar essas impenitências, algumas cenas ocorridas entre catecúmenas, se não lhes bastasse a grande fé, encorajariam os heróicos jesuítas a prosseguir na obra formidável de colonização que haviam encetado. Uma índia cristã recusava-se a entregar novamente o corpo ao amante perverso e polígamo. Este, "enraivecido, brandindo a faca, decepou-lhe as madeixas lustrosas; arrancando à fogueira um tição, queimou-lhe os seios, o ventre, as coxas invioláveis como portas de bronze. Em vão. Mais forte que a dor, mais pura que o fogo, a crença deu à mulher bravia um halo de mártir. No adito do templo, sob a mão protetora de Anchieta, o que era carne babujada pela concupiscência tornou-se flor intangível, e outra vez o sátiro, desfechando ameaças de morte contra o apóstolo, recaiu na floresta insondável" (N.A.: - Celso Vieira - Anchieta).

Referindo-se à luta que teve pela castidade, muitas vezes triunfante, diz Anchieta: "Vêem-se em muitos, máxime nas mulheres, assim livres como escravas, mui manifestos sinais de virtude, principalmente em fugir e detestar a luxúria, e que como seja comum ruína do gênero humano, nesta gente parece que teve não só imperioso senhorio, mas também tirania a mais cruel, que como seja verdade é para espantar e digno de grande dor, quantas vitórias e triunfos alcançam delas; sofrem as escravas que seus senhores as maltratem com bofetadas, punhaladas, açoites por não consentirem no pecado"... Admirável é a história que bem caberia no martirológio das primeiras virgens cristãs, daquela índia jovem e escravizada, a cujos encantos se atira a bestialidade do dono, e que o recebe e garras em riste como um jaguar acuado:

"Por que foges ao teu Senhor?" - pergunta ele espantado.

E ela responde: "Pertenço a Deus; Deus, o meu Senhor, a quem te convém falar se queres alguma coisa de mim".

Demônios de olhos luxuriosos e de instintos sempre acesos, rondavam os colonos, portugueses e mamelucos, as redes em que dormia a castidade do gentio catequizado. Belas e provocantes eram as índias, com os corpos inteiramente nus ao sol tropical, tranças tecidas de penas de cores, colo palpitando sob os colares de contas, toucadas das flores rosadas das paineiras ou de ouro vivo dos ipês.

Pero Vaz de Caminha, na carta célebre que dirigiu a Dom Manoel o Venturoso, referindo-se à raça indígena, assim se exprime nestes trechos que transcrevemos para que não percam o sabor da naturalidade: "A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura; nem estimam nenhuma coisa cobrir... Os cabelos seus são corredios. Andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas... e tão limpas que de as muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha". "Uma daquelas moças era tão bem feita e tão redonda... e tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha por não terem as suas como ela".

..."Andavam entre eles - continua Vaz Caminha - 4 ou 5 mulheres moças assim nuas, que não pareciam mal... e com tanta inocência descobertas, que não havia ali nenhuma vergonha. Os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos, que não podem ser mais..." Por aqui se vê, como bem notou o historiador Torres de Oliveira na sua brilhante conferência sobre Anchieta e a Pacificação dos Índios, que o escrivão da armada cabralina não se limitou, como Pero Lopes de Souza, o escrivão da esquadra de Martim Afonso, a encomiar a bondade do clima e a fertilidade da terra. Muito o impressionou a parte estética dos primitivos povoadores e, principalmente, a das povoadoras de nossas selvas.

Pois eram essas mesmas índias, de carnadura de jambo perfumado a manacá - no dizer de Pero Vaz de Caminha puras e inocentes - que iam oferecer o seu amor e a sua lascívia aos alunos cristãos, cingindo-os na cadeia macia dos seus braços, fazendo-os voltar à floresta e à barbárie, onde podiam amar livremente, como os animais, sobre o tapete fofo das avencas. Os mestiços descendentes de João Ramalho faziam de Santo André da Borda do Campo uma nova Sodoma, concitando os índios ao canibalismo e à revolta e aconselhando-os ao mais franco deboche.

"Uns certos cristãos nascidos de pai português e de mãe brasílica, que estão distantes de nós nove milhas, em uma povoação de portugueses, não cessam juntamente com seu pai, de empregar contínuos esforços para derribarem a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, trabalhamos para edificar"... - denuncia Anchieta, em carta de maio a setembro de 1554. E continua: "Este (Ramalho), atravessou por quase cinqüenta anos esta região, tendo por manceba uma mulher brasílica da qual procriou alguns filhos. São de tal modo depravados que nos perseguiram com o maior ódio, esforçando-se em fazer-nos mal por todos os meios e modos, mas especialmente trabalhando por tornar nula a doutrina com que instruímos e preparamos os índios e movendo contra nós o ódio deles". Nada os fazia temer, nos seus propósitos. Ameaçado um dos mestiços com a Inquisição, responde arrogantemente: "Acabarei com as Inquisições a flechadas!"

O ódio dos mamelucos ramalhistas aos jesuítas, que só diminuiu em 1560, era devido apenas a uma questão de interesses daqueles, caçadores de índios, que desde 1517 exploravam o tráfico, vendendo os escravos vermelhos no porto de Tamiurú. Com a consciência ofuscada pelo brilho do ouro, eles incitavam os índios contra os colonizadores portugueses, atribuindo a estes todas as desgraças de que de fato eram culpados os próprios detratores usando contra os íncolas de tiranias, obrigando-os a viver como escravos toda vida, "apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os". Conseguiram assim os mamelucos, com a perfídia e a mentira, a fuga para o mato de inúmeros conversos, e que se revoltassem contra a colônia várias tribos catequizadas.

Além dos ramalhistas estavam os tapuias de olhos fitos na destruição de São Paulo, sentindo apetite devorador ante a fazenda paulista. Em serranias longínquas, os chefes faziam soar a inúbia das malquerenças - e a turba de índios bárbaros caía de dentes aguçados sobre Piratininga, a presa opima - gaviões caracarás de garras aduncas, avançando sobre o ninho farto. Eram os carijós pelo Sul e por outros lados os tamoios, ferozes e tremendos, de cuja vizinhança fugira o próprio guerreiro Martim Afonso, com toda a sua tropa, em 1532.

Nos meados de 1562, milhares de índios de nações tapuias marcharam sobre Piratininga, conduzidos pelos catecúmenos fugitivos, conhecedores dos caminhos e dos costumes da vila. Já então, induzido pelo Padre Manoel da Nóbrega, Mem de Sá ordenara a junção da Vila de Santo André à de São Paulo. "Dão os inimigos de improviso sobre a Vila de Piratininga, com tão grande estrondo de gritos, assovios, bater de pés e arcos (como costumão) que parecia se vinha o mundo abaixo e se arruinavam os montes vizinhos" (N.A.: - Padre Simão de Vasconcelos).

Enquanto na Igreja do Colégio as mulheres e as crianças rezavam, as flechas que choviam sobre Piratininga escureciam o clarão sinistro da aurora que se anunciava sangrenta. De um lado era Jagoanhara, gigante de ferro, com o tacape emplumado querendo esmagar a civilização que nascia; de outro era o valor de Tibiriçá, o cacique recém-convertido, auxiliado pelo genro, João Ramalho, de arcabuz em punho, como "capitão geral da gente que tinha de ir à guerra".

Uma flecha certeira vara o coração ruim de Jagoanhara, "o cão selvagem"; e os canibais, desanimados com a morte do chefe, fogem de novo para as brenhas de onde tinham vindo, levando na alma ainda maior rancor contra os paulistas, que mais uma vez os tinham recebido como homens.

Mas não era apenas Piratininga a presa visada. "Na Capitania de São Vicente - diz Simão de Vasconcelos - especialmente na parte marítima, tudo eram assaltos e cativeiros, feitos pelos Tamoios, os quais, não contentes com isso, tratavam já de acometer toda a terra e apoderar-se dela".

Que força estranha, além da inveja da grandeza paulista e da cobiça pelo celeiro inesgotável, acometia contra São Paulo a fúria dos tamoios confederados? Eram interesses de fora, de conquistadores de outra raça, que se queriam ver livres da galhardia portuguesa.

O reduto do "Caim da América", Villegaignon, cavaleiro de Malta e vice-almirante da Bretanha, que, renegando o catolicismo pelo calvinismo, desfraldara sobre as ilhas da Guanabara o pavilhão da França Antártica, fora abatido em 1560 por Mem de Sá, que o atacara de rijo por terra e mar, com a sua frota composta de um bergantim português e de canoas ligeiras, e com as tropas de índios e mamelucos a que se haviam juntado os reforços enviados pelos jesuítas de São Vicente, tendo à frente o prestígio de Manoel da Nóbrega e de José de Anchieta, auxiliados por Fernão Luiz, Gaspar Lourenço e outros paulistas cujos nomes a História não guardou.

E depois de dois dias de combate, quando os portugueses, que, aliados ao gentio, não passavam de 280 homens, já desanimavam, da vitória, aconteceu o milagre que Nóbrega narrou, estupefato, ao Cardeal D. Henrique: "A segunda maravilha de Nosso Senhor foi que depois de combatida dois dias, e não tendo já os nossos pólvora, mais do que a que tinham nas câmaras para atirar... mostrou então Nosso Senhor a sua misericórdia, e deu tão grande medo nos franceses e nos índios, que com eles estavam, que se acolheram da fortaleza e fugiram todos". E a isto acrescentou Anchieta... "é de crer que mais fugiram com espanto que lhes pôs o Senhor do que com forças humanas".

De que forma conseguiram os franceses a aliança dos tamoios, se os portugueses, europeus e brancos como eles, não a conseguiram jamais? É que à severidade dos costumes que os portugueses queriam implantar entre os índios antepunham-se as facilidade e encantos que os franceses lhes ofereciam.

Realmente os franceses primavam pela habilidade em explorar a ingenuidade dessa gente, à qual obsequiavam por toda as formas, ensinando-lhes o manejo das armas de fogo, repartindo com os selvagens aquilo que possuíam, adotando-lhes os costumes, "comendo, bebendo, bailando e cantando com eles, tingindo-se com suas tintas pretas e vermelhas, ornando-se com as penas dos pássaros, andando desnudos, por vezes só com umas calcinhas, matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando nomes novos como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana".

O assalto ao forte de Coligny não conseguira submeter os índios rebeldes. De São Vicente a Bertioga, e na margem do Paraíba, já não tinham descanso os colonos paulistas pois ali agiam os tamoios confederados, que lhes queimavam os engenhos e as plantações, raptando-lhes as mulheres e os filhos, aquelas para amantes, estes para escravos ou para a carnificina. Tendo vencido em campo aberto a mosquetaria lusitana, haviam eles resolvido extinguir para sempre o poder de Portugal na Capitania de São Vicente, exterminando os jesuítas e saqueando-lhes as florescentes povoações.

Em 1563 já não podia o padre Manoel da Nóbrega contar, para a defesa da colônia, com a amizade de Tibiriçá, que falecera em dezembro de 1562, "com tanto senso e madureza", na expressão de Anchieta - "que não parecia homem do Brasil". Não o ajudaria também a bravura de João Ramalho, que se retraíra, sentido com a extinção do seu burgo de Santo André.

No entretanto, os preparativos guerreiros dos tamoios eram evidentes. Urgia um gesto valoroso, e extremo. Foi assim que Nóbrega, num prodígio de altruísmo, resolveu dirigir-se pessoalmente aos índios confederados, levando como intérprete o irmão Joseph de Anchieta, "grande língua brasílica". Eram duas vidas preciosas que se expunham, para salvar centenas de vidas e o futuro radiante de uma pátria.

Partiram de São Vicente para a Bertioga em canoa, na Páscoa de 1564, acompanhados por Antônio Luiz, cuja vida não tinha mais encantos desde que os índios lhe furtaram o amor da esposa e o carinho dos filhos. Aí chegados, esperaram cinco dias pelos navios de José Adorno, o genovês fidalgo que os conduziria aos rochedos de Iperoig, na praia situada entre as atuais cidades de Ubatuba e São Sebastião. E nessa viagem rápida, mas de conseqüências inestimáveis, estiveram quase a ir a pique, em tremenda tempestade que os levou à ilha de São Sebastião, que Anchieta informa "despoblada e llena de muchos tigres".

No dia seguinte, domingo, entre alas de canoas dos indígenas desconfiados contra alguma traição dos "perós", chegaram os nossos embaixadores da paz a Iperoig.

Sabendo os tamoios que era de bondade e de doçura a visita dos missionários, logo lhes abriram os corações, fascinados pela suavidade do olhar e pela meiguice da fala de Anchieta. Dos navios em que os embaixadores jesuítas haviam chegado, um voltou para São Vicente, conduzindo como reféns doze mancebos tamoios; o outro tomou rumo para o Rio de Janeiro, levando a bordo cinco dos principais das aldeias, para combinarem as tréguas com os chefes da tribo, aliados dos franceses da Guanabara.

Ali ficaram, como fiadores da paz, os dois santos fundadores de São Paulo. Mas ao verem sumir-se no mar azul as velas brancas dos navios, não se lhes marejaram os olhos de lágrimas, por se sentirem abandonados à sanha dos canibais. Animava-os a certeza de que Deus velava por eles e havia de guardar São Paulo para a grandeza do seu futuro.

Na casa de Caoquira, onde se instalaram, encontraram os padres todo conforto possível e todo desvelo, que lhes dispensou uma índia ali moradora, outrora escrava em São Vicente. Durante o dia, quando não tratavam da negociação da paz, tinham Nóbrega e Anchieta, diante de si, o campo infindo da catequese.

Corriam para ouvir-lhes as lições as crianças tamoias; e os guerreiros ouviam atentamente as lições do Divino Rabi da Galiléia. É o assunto destes versos do Visconde de Araguaia, Domingos José Gonçalves de Magalhães, fragmentos do poema Confederação dos Tamoios:

...Anchieta, sempre atento a doutriná-los,
... Contava-lhes de Cristo a santa vida,
Seu infinito amor aos homens todos,
E o tremendo, sublime sacrifício
Do seu sangue na Cruz, para salvar-nos;
E jamais dessa morte ele falava
Sem que os olhos de lágrimas se enchessem.
Como de Antão, nos ermos, a virtude,
Os corações das feras abrandava,
Assim de Anchieta as vozes comoviam
Os peitos desses homens da Natura,
Aos mistérios de Deus, tão bem dispostos.
Para melhor ouvi-lo, pouco a pouco
Erguendo-se da terra, se formavam
Em torno ao padre, em círculo compacto.
E quando o eremita, respirando,
Faz a alguma pausa em seu discurso,
Questões sobre questões lhe dirigiam
Ora Pindobuçu, ora Caoquira,
Sobre os pontos sublimes que os tocavam.
.........................................................
Só Aimberé, em silêncio, tudo ouvia,
Nas máximas cristãs já meio instruto.
E no fim perguntava ao missionário:
- "Não conhecem acaso os portugueses
Essa pia doutrina que nos pregas?
Como pois, contra nós, em guerra assídua,
Sem medo do seu Deus, cruéis se mostram?
Ou, só porque de Deus ao Filho adoram,
Lhes foi dado o poder de peseguir-nos?
Mas se do céu as leis desobedecem,
Que Deus é esse então que os deixa impunes,
E vem por tua boca ameaçar-nos?"
- "Livres fez Deus aos homens, respondia
O conspícuo varão; de livre impulso
Quer Deus que os homens seus preceitos cumpram,
Sem o que nenhum mérito teriam.
Nem todas essas árvores, regadas
Pelas águas do céu, dão frutos doces,
Mas vós, que os bons colheis para nutrir-vos,
Não destruís os troncos dos acerbos;
Nem o veneno da mandioca impede
Que a arte a converta em salutar sustento.
A grandeza de Deus dá vida a tudo,
E tudo serve a Deus por modos vários!
Ele tudo conhece, e a nenhum deixa
Sem prêmio ou sem castigo, noutra vida!"

Rapidamente correu entre os tamoios a notícia da chegada dos missionários a Iperoig. E começaram então a chegar inúmeras pirogas, coloridas e enfeitadas de penas, das que se haviam aprestado para o ataque decisivo, exterminador da colônia paulista. Eram mais de duzentas canoas, comportando cada uma 30 ou mais guerreiros, portanto perto de 6.000 combatentes, afora "as suas armas e vitualhas". E por terra, como narra Simão de Vasconcelos, "eram todos os arcos que habitavam as ribeiras do Rio Paraíba, com pacto feito que dessem todos juntos, sem cessar até acabar com a Capitania e senhorearem a terra". E era contra esse espírito que Nóbrega e Anchieta iam lutar.

A 23 de maio chegaram duas pirogas, uma trazendo o cacique Pindobuçú, que logo se revelou um grande amigo dos padres; outra conduzindo um irmão de Caoquira, que expulsou da casa os santos da paz, mas que não lhes causou outro mal a não ser o furto da campainha da missa.

A 27 de maio chegaram mais dez canoas do Rio de Janeiro, vindo entre os selvagens o chefe Aimberé, "amigo dos franceses e sogro de um deles". Mostrando-se pouco interessado nas pazes, só as aceitava sob condições desarrazoadas, como a entrega, para serem mortos e comidos, de três dos principais índios de São Vicente, aliados dos cristãos. E ao receber a resposta de que não era admissível essa fórmula, respondeu Aimberé que então as pazes não seriam feitas.

Com a intervenção do paciente e poderoso Pindobuçú, resolveu Aimberé ir a São Vicente confabular sobre as condições com os regedores da Capitania. Nessa vila foi o aliado dos franceses recebido com tanta festa que se esqueceu das condições que ia impor e se tornou defensor ardoroso da idéia da paz.

E tão profundamente repercutiu entre os tamoios a conversão desse chefe, que a 21 de junho, quando Manoel da Nóbrega voltou a São Vicente para orientar as negociações, deixando Anchieta como refém em Iperoig, acompanharam-no voluntariamente 21 canoas, levando mais de 400 índios, entre os quais o chefe Cunhambebe - não o hediondo antropófago descrito pelo grande Rocha Pombo, aquele que segundo Hans Staden comia diariamente um prisioneiro, pois esse Cunhambebe terrível morrera em 1554. Era outro Cunhambebe o companheiro de Nóbrega, não sendo de admirar a igualdade do nome, sabendo-se que Cunhambebe quer dizer "o gago", e qualificava qualquer índio que sofresse de gagueira.

A estada dos dois missionários em Iperoig não fora nada tranqüila. A chegada de Aimberé, a que nos referimos, enchera-os dos maiores e mais justos sobressaltos, pois se não fosse a intervenção de Pindobuçú e de um francês luterano, aquele terrível inimigo dos portugueses teria devorado José Adorno e ocupado o seu navio recém-chegado a Iperoig.

A morte espreitava os catequistas em cada recanto da praia ou atrás de cada moita, num silvo agudo de flecha ou num golpe certeiro de durindana. Um dia quase sucumbiram os dois às flechadas dos tamoios. Passeavam eles na praia, conversando sobre a forma de acabarem os costumes canibalescos daqueles índios, quando viram uma piroga que se aproximava. Desconfiados, resolveram transpor o riacho e atravessar o monte que os separava da taba de Pindobuçu. Corria Anchieta, mais moço e ágil; mas Nóbrega, velho e com as pernas cobertas de chagas, mal se arrastava, apoiado a um bordão. Não fora a espessura da folhagem dum bosque onde se esconderam, e teriam sido mortos pelos trinta adolescentes que os flechavam e lhes queriam beber o sangue de brancos.

Anchieta e Nóbrega na Cabana de Pindobuçu, tela de Benedito Calixto, acervo Museu Paulista
Imagem: História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, S.Paulo/SP, 1997

Chegados à taba de Pindobuçu, souberam logo que este estava ausente. Abrigados numa cabana, de joelhos esperaram a morte que se aproximava com os passos dos seus perseguidores. Mas a misericórdia dos Céus os salvou - pois a suavidade das suas palavras e dos seus atos fez parar na porta o bando que os perseguia, e pôs na boca do chefe Grão-Mar esta palavras: "Antes, eu os mataria de bom grado, mas ouvindo-os meu coração se enfraqueceu. Agora, mesmo que venham todos contra eles, ninguém os há de matar porque eu os defenderei!"

Alta noite, cautelosamente, um outro cacique tamoio veio buscar os jesuítas: Cunhambebe, que lhes oferecia a sua oca e o seu braço.

Mas a defesa não tinha de ser unicamente contra a fúria dos homens selvagens; para a pureza da alma dos dois jesuítas, principalmente do jovem Anchieta, maior tinha de ser a resistência contra a sedução das mulheres indígenas. À noite, quando todos cercavam a fogueira crepitante, o desejo mordia a carne do moço jesuíta ao sentir roçar-lhe a batina virgem os corpos nús e tentadores, de curvas macias, como ânforas de barro vermelho cheias de volúpia e de perfume, que tivessem olhos lânguidos de olheiras profundas e bocas vermelhas como pitangas maduras. Mandadas pelos tamoios para tentarem os jesuítas, querendo assim tirar-lhes a força da castidade que os aproximava de Deus, achegavam-se às suas redes as mais belas moças da tribo, oferecidas pelos próprios pais ou pelos próprios irmãos.

Anchieta fechava os olhos fazendo o sinal da cruz e elevava a Jesus sua alma num canto de fé: "Senhor, ficai-vos comigo que se faz tarde e a noite da tentação vem sobre mim!".

Multiplicaram-se-lhe os desejos quando o seu companheiro de heroísmo voltou para São Vicente, pois a ofensiva sensual das índias redobrou ao seu redor. Ajoelhado na choça, enfraquecido pelo jejum, cingido em áspero cilício, Anchieta em pleno vigor da mocidade rasgava as espáduas com o azorrague, mortificando a carne sem forças para fugir às tentações. É então que ele promete à Virgem Santa cantar-lhe as glórias e a bem-aventurança, para se ver livre das seduções que não o abandonam.

Quando as últimas estrelas luzem no céu desbotado, como brasas faiscando ainda num borralho de cinza, Anchieta levanta-se da rede em que se debateu toda a noite em sonhos de pecado. Sente, no vento perfumado que lhe vem brincar nos cabelos, as carícias femininas que não pode ter; e na amargura dos lábios febris a necessidade de uns lábios de mel; "Senhor, Senhor, ficai-vos comigo, que se faz tarde e a noite da tentação vem sobre mim!".

Em passos vacilantes caminha para a praia branca. E aí, de alma elevada, cercado de aves canoras que lhe pousam nos ombros, traça na areia, com o seu bordão, o poema sublime, em mais de seis mil versos latinos, exaltando a Virgem Santa, Árvore da Vida, Mar Profundo, Luz Claríssima, Porta do Paraíso, Rosa nascida entre espinhos.

E quem o visse, enlevado e contrito, envolto na roupeta negra, teria a impressão de que a sua alma e as suas mãos eram lírios brancos espalhando lírios de neve sobre a areia.

Durante a estada forçada entre os tamoios, junto do amor à Virgem pura e à humanidade - como o perfume num roseiral esplêndido -, surgiu no coração de Anchieta o amor de pai. Em um mês o missionário foi todo desvelos e carinhos para a criança índia que ele arrancou da terra onde a sepultara viva a barbárie da tribo. Mas apenas o seu amor não podia alimentar o filho do seu espírito; e o piá morreu de fome, entre as mãos desacostumadas de Anchieta, que entoava ingenuamente uma canção indígena para adormecê-lo.

Constantemente continuavam a chegar a Iperoig barcas pejadas de ameaças contra o Catequista. Cercavam-no os selvagens de pilhérias e de perfídias, até que um dia o valor da durindana de pau ferro de Pindobuçú, amigo incondicional de Anchieta, fez calar para sempre a basófia dos tamoios da Guanabara.

O último tamoio, alegoria simbolizando o fim da Confederação dos Tamoios
Tela de Roberto Amoedo, acervo do Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Enquanto isso, em São Vicente, Nóbrega via terminadas as negociações da paz entre as autoridades da Colônia e os representantes dos tamoios. Trouxe a boa nova, a Anchieta, o próprio Cunhambebe. E a 14 de setembro, depois de cinco longos meses de torturas entre as rochas de Iperoig, voltou o santo varão, o apóstolo da paz, para junto dos seus, levando a alegria da vitória dos seus ideais e a certeza da salvação da gente de São Paulo.

"Feitas as pazes, os tamoyos daly por deante entraram na Capitania sem fazer mal algum".

E hoje, quatro séculos depois que isto se deu, aqui estamos nós, os descendentes daqueles mesmos portugueses, índios e mamelucos, os discípulos daqueles mesmos jesuítas da alvorada de São Paulo, a comemorar os feitos de Nóbrega e Anchieta, que com certeza lá de cima, envoltos na roupeta da garoa, olham comovidos para a terra que eles viram nascer.

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