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DIA DE ANCHIETA
Anchieta e a literatura luso-brasileira

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Nos alvores da historiografia e da poesia luso-brasileiras

Tito Lívio Ferreira

No vasto e movimentado panorama histórico-social da formação lusíada no Estado do Brasil, província portuguesa ultramarina, o Professor Dr. Antônio Soares Amora divide a História da Literatura Brasileira em dois períodos: Era Lusobrasileira (se o mestre me dá licença, sem hífen) e Era Nacional. Assim, escreve Soares Amora, "não é difícil compreender que houve duas épocas histórico-literárias na Era Luso-brasileira de nossa literatura:

"1ª Época - correspondente aos séculos XVI e XVII, o que quer dizer, ao Quinhentismo e ao Seiscentismo português, pode-se limitar pelos anos de 1549 e 1724. 1549 é o ano das primeiras cartas informativas do Brasil, do Padre Manoel da Nóbrega, escritas da Bahia (documentos que se podem considerar a primeira manifestação de atividade literária no Brasil); 1724 é o ano da fundação da Academia dos Esquecidos (Bahia), primeiro índice do acentuado desenvolvimento setecentista de nossa cultura espiritual brasileira;

"2ª Época - correspondente ao século XVIII, ou ao Setecentismo português, pode-se limitar pelos anos de 1724 e 1808. 1724, ano da fundação da Academia Brasílica dos Esquecidos; 1808, início do processo de nossa autonomia política, o que quer dizer, da Era Nacional de sua literatura" [1].

O ponto de partida da literatura luso-brasileira - Assim, o Professor Dr. Antônio Soares Amora coloca o Padre Manoel da Nóbrega, com as suas primeiras cartas informativas, escritas da Bahia, em 1549, como ponto de partida da literatura luso-brasileira.

Nesse caso, "a publicação, a partir do século XIX, de boa parte dos inéditos da literatura jesuítica tem possibilitado à crítica e a certo público o conhecimento lento mas progressivo de seu conteúdo. Na maioria, a produção dos jesuítas vale como precioso documento para o estudo da antropologia e da etnografia indígenas, da história política e social do Brasil dos primeiros séculos, e para o estudo dos métodos catequistas e educacionais que a Ordem de Loyola, com exclusividade, aplicou no Brasil. É o caso das Cartas do Padre Manoel da Nóbrega (Portugal, 1517 - Rio, 1570); das Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões, do Teatro e da Poesia, do Padre Anchieta (Tenerife, 1534 - Espírito Santo, 1597), literariamente os mais bem dotados dos nossos primeiros jesuítas; dos Tratados da Terra e Gente do Brasil, do Padre Fernão Cardim (Portugal, 1548 - Bahia, 1625); das Notícias Curiosas e Necessárias das Coisas do Brasil (Lisboa, 1668), do Padre Simão de Vasconcelos (1597-1771)" [2].

As Cartas do Brasil (1549-1560) - As Cartas do Brasil (1549-1560) do Padre Manoel da Nóbrega aparecem reunidas em volume, primeira edição, em 1886, por Vale Cabral, que justifica e encarece o valor do autor e da obra: "O Padre Manoel da Nóbrega, um dos primeiros civilizadores desta terra, representa papel muito importante na sociedade brasileira e exerceu tanta influência que seu nome será lembrado".

Depois de fazer breve resumo da vida do grande jesuíta, continua: "Em todos os lugares que percorreu, tão bons serviços prestou que ligou seu nome à história geral do país. Seu merecimento é bastante conhecido. Todo o mundo sabe o que fez em prol da terra que se lhe rasgava aos olhos; e o movimento que imprimiu ao Brasil entre dois povos, o civilizado e o inculto, o invasor e o indígena, foi de certo superior ao de Anchieta, ainda que este falasse correntemente a língua dos índios, o que não alcançou Nóbrega, provavelmente pelo defeito natural que tinha. Mas apesar de gago, com a sua palavra soube conquistar portugueses e brasis (brasilíndios). Tinha o coração generoso, era verdadeiro amigo da Humanidade. Desbastou a terra, ganhou-lhe amor; não temia o encontro de milhares de índios falando-lhes com toda a energia e desassombro por meio de intérpretes, tanto que contando a Tomé de Sousa que o Bispo fugindo dos gentios, 'tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse comido deles', acrescenta: 'e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e metendo-me nas ocasiões mais que ele, me foi negado'" [3]. E continua citando trechos das cartas nobreguenses, lidas com atenção e interesse.

O ritual da "santidade" - Na primeira Informação das Terras do Brasil, agosto (?) de 1549, Manoel da Nóbrega descreve o ritual da "santidade": "Somente entre eles (brasilíndios) se fazem umas cerimônias da maneira seguinte. De certos em certos anos vêm uns feiticeiros de longes terras, fingindo trazer santidade. E ao tempo de sua vinda lhes mandam alimpar os caminhos e vão-nos receber com danças e festas, segundo o seu costume, e antes que cheguem ao lugar, andam as mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos, e umas e outras, e pedindo perdão delas.

"Em chegando o feiticeiro com muita festa ao lugar, entra numa casa escura, e põe uma cabaça que traz, em figura humana, em parte mais conveniente para os seus enganos, e, mudando a sua própria voz como de menino, e, junto da cabaça, lhes diz que não curem de trabalhar, não vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e que nunca lhes faltará que comer, e que por si virá a casa; e que as aguilhadas (estacas) irão cavar, as flechas irão ao mato par caça para o seu senhor, e que hão de matar muitos dos seus contrários e cativarão muitos para os seus comeres. E promete-lhes larga vida, e que as velhas se hão de tornar moças, e as filhas que as dêem a quem quiserem; e outras coisas semelhantes lhes diz e promete com que os engana. De maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas as quais crêem.

"E acabando de falar o feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que parecem endemoninhadas, como de certo o são, deitando-se em terra e escumando pelas bocas; e nisto lhes persuade o feiticeiro, que então lhes entra a santidade, e quem isto não faz, têm-lho a mal. E depois lhe oferecem muitas coisas" [4].

Nóbrega descreve o quadro assistido poucos meses após a sua chegada à Bahia, no ano de 1549, isto é, quatro anos antes e Anchieta chegar a Salvador, em 13 de julho de 1553.

"Esta página (de Nóbrega), escreve Afrânio Peixoto, merece a meditação de quantos se interessam pelos fenômenos da psicologia religiosa; no fim há uma cena de histeria coletiva, que vai de um lado ao profetismo das sibilas e pitonisas, de outro ao baixo espiritismo contemporâneo" [5].

A primeira obra literária escrita no Brasil - Ao publicar a segunda edição das Cartas do Brasil (1549-1560), em 1931, a Academia Brasileira de Letras anexa-lhe o Diálogo Sobre a Conversão do Gentio, de autoria também de Manoel da Nóbrega, a primeira obra literária escrita no Brasil, província portuguesa ultramarina, em 1557. Nóbrega explica ali, de maneira suave, a doutrina cristã aos catecúmenos. E desenvolve o assunto com naturalidade e fluência.

Nóbrega parte da verificação pessimista, dá as razões dela, para concluir com verdadeiro otimismo e aberta simpatia para com os brasilíndios. Ele fizera o curso de Humanidade e Filosofia na Universidade de Salamanca. Foi receber o grau de doutor em Direito, Filosofia e Teologia na Universidade de Coimbra. "Nóbrega, bom canonista e teólogo, cita Santo Agostinho, doutor da graça, que é implícita no Diálogo, mas dissimula-a com arte suma dentro do gênero literário que adotou, colocando-a ao nível dum intérprete e dum ferreiro. Usa imagens familiares aos interlocutores, tiradas dos respectivos ofícios, o pitoresco e até o bom humor popular da época, de que é a mais alta expressão Gil Vicente seu contemporâneo, e que ele na adolescência poderia ter conhecido. E há reminiscências desse humanismo nas breves narrativas das suas peregrinações peninsulares, utilizadas por Antônio Franco".

A essas considerações, o Padre Serafim Leite, S. J. junta seu juízo crítico: "Sob o ponto de vista estritamente literário, nenhuma produção do século XVI, escrita no Brasil, possui o vigor concentrado desta, de fundo sério, de ética social e religiosa, sem assomos de mau gosto ou leviandade. Tudo bem proporcionado com transições dialogais expressas com naturalidade. E sem retórica" [6].

A poesia anchietana - José de Anchieta freqüenta o vergel humanístico do Real Colégio de Coimbra, de 1548 a 1553, isto é, dos catorze aos dezenove anos de idade, quando seus superiores o mandam para o Brasil, com a saúde abalada. Às margens do Mondego, na Lusa-Atenas, aperfeiçoa o seu latim, no convívio diuturno com os clássicos da Antiguidade. A velha Roma de Augusto povoa-lhe a imaginação de adolescente místico, de estudante incansável, de alma solitária a preparar-se para os altos vôos intelectuais, palpitantes de sensibilidade humana.

Em São Paulo de Piratininga, no ano de 1554, começa a sua prosa latina a espraiar-se nas quadrimestres, "por comissão do Padre Manoel da Nóbrega". Vez por outra, recorre à língua portuguesa ou à castelhana. Sua inspiração poética vai desabrochar e florir em 1563, na praia de Iperoig, após a partida imperativa de Manoel da Nóbrega, chefe da embaixada de paz, de regresso a São Vicente.

Nóbrega fora, como ele, refém entre os tamoios. O mestre deixa o discípulo em meio às tentações femininas. Os tamoios "ofereciam-lhes suas filhas e irmãs por mulheres como costumavam aos mais cristãos, quando tratavam com eles (jesuítas) as pazes. Porém, entendendo o modo de vida continente, que os padres guardavam, ficaram espantados. Quase incrédulos nisto, lhes chegavam a perguntar pelos pensamentos e desejos, dizendo: 'Nem quando vedes mulheres formosas não as desejais?' A isto respondeu Nóbrega, mostrando-lhes umas disciplinas, e dizendo-lhes: 'Quando vêem semelhantes pensamentos acudimos-lhe com este remédio'. Ficaram (os tamoios) com esta resposta muito espantados e tinham para si que os padres falavam com Deus e que Ele lhes descobria tudo quanto se passava" [7]. E assim Anchieta narra o fato.

Na praia de Iperoig, em meio às tentações da carne, Anchieta sente a sua alma solitária e triste, dobrar-se, inquieta e angustiada, sobre o areal deserto batido pela canção plangente das ondas atlânticas. A ausência de Nóbrega, seu pai espiritual, faz-lhe o coração pequenino face ao silêncio e à imensidão oceânica. Cercado de gente ignara e cruel, seu espírito de esteta se curva sobre si mesmo, ensimesmando-se. E ele pressente subir, no fundo escuro do horizonte marinho, a maré montante da angústia humana.

Se o Cântico Espiritual de São João da Cruz nasce no cárcere de Toledo; se o Canto General de Pablo Neruda brota num ambiente de luxo, em hotel de primeira classe e com todo o conforto de hoje; o Poema à Virgem de Anchieta soergue-se, de sua inteligência e seu talento, na solidão, no desconforto, no desalento, na melancolia infinita, da praia infinita sob o céu infinito.

Nesse clima de angústia e isolamento, de tentação e santidade, ele diria como Teixeira de Pascoais:

"Cantei, porque me perdi nas trevas" [8]

Como São João da Cruz, o místico extravasante de renúncias e nadas, Anchieta é o cantor das criaturas humanas, santificadas na pessoa divina da Virgem Maria. E diria como o poeta do Cântico Espiritual:

"Y todos quantos vagan
De ti van mil gracias referiendo;
Y todos más me llagan
Y déjame muriendo
Um no sé qué quedan balbuciendo" [9]

Estava iniciada a grande aventura poética de Anchieta. "Poetas e sacerdotes, diz Novalis, foram ao princípio uma mesma coisa, e só depois se separando. Mas o verdadeiro poeta é sempre sacerdote, como o verdadeiro sacerdote não deixa de ser sacerdote".

Nóbrega também era sensível à poesia. Preferia, porém, a prosa para se dirigir aos Reis, informa Anchieta, seu primeiro biógrafo. E a prosa nobreguense tem a energia da naturalidade, assim como a poesia anchietana realça a piedade, a beleza e o misticismo de sua arte poética palpitante de humildade ingênua e suave lirismo.

Na luta aberta e permanente contra as tentações femininas, entre os tamoios, "sozinho, sem sacramentos, rodeado de perigos e seduções, nada fiando de si, redobra as orações, multiplica os jejuns e disciplinas, cinge-se de áspero cilício (as mesmas disciplinas usadas por Nóbrega), e ocupa as horas de lazer, compondo aquele admirável poema, no qual celebra as glórias da Virgem Maria, com mais de 6.000 versos latinos" [10]. E nesses instantes seculares, arranca dessa agonia fecunda e ascendente, dessa luta espiritual no sentido grego da palavra agonia, estes versos:

"Siempre anda battallando
la carne con la razón.
Pero, vence la pasión...
Asi, miserable ando
Sin paz ni consolación..."

Bailam-lhe na lembrança os dias tormentosos de Iperoig, quando Nóbrega exibe os cilícios tintos de sangue. Com essas disciplinas ambos mortificam a miserável carne em luta com a razão e a consciência, firmes, seguras e torturadas.

O historiógrafo e o poeta - Assim, no alvorecer da literatura luso-brasileira, aberto no espigão luminoso do século XVI, surgem o historiógrafo Manoel da Nóbrega e o poeta José de Anchieta. Nóbrega, o primeiro historiógrafo luso-brasileiro, escreve páginas de história e de etnografia, na sua prosa viva e disciplinada. Anchieta, o primeiro poeta luso-brasileiro, deixa em sua obra poética, densa de lirismo, a angústia do seu espírito inquieto, de sua alma solitária, de sua inquietude criadora.

Se a Nóbrega admira-se, a Anchieta ama-se. Ambos são dignos, por suas virtudes, pelos seus trabalhos, pelos seus sacrifícios, pelas suas renúncias, pelo seu grande e insuperável amor a nossa terra e a nossa gente, pela suprema humanização de seu amor a Cristo, Nosso Senhor e à Virgem Medianeira.

Por tudo isso, ama-se, admira-se e respeita-se a Nóbrega e a Anchieta, o mestre e o discípulo, unidos numa perfeita unidade, "corde et spirito uno", na obra gigantesca e heróica de semear, nas almas, o Luso-cristianismo, onde se vinculam a civilização grega, o espírito jurídico romano e a teologia judeocristã. E com o Luso-cristianismo alicerçaram, moral, espiritual, religiosa e intelectualmente, o Estado do Brasil, província portuguesa ultramarina. E com essa base jurídico-moral foi estruturado o Reino do Brasil, o Império Brasileiro, a República, enfim a Pátria Brasileira.


Notas:

[1] [2] Cf. Antônio Soares Amora, História da Literatura Brasileira, pgs. 7, 19, 4ª edição revista, 1963.

[3] Cf. Padre Manoel da Nóbrega, Cartas do Brasil (1549-1560). Prefácio de Vale Cabral, 1ª edição, 1886. 2ª edição. Academia Brasileira de Letras, pgs. 16, 17 - Rio, 1931.

[4] Cf. Padre Manoel da Nóbrega, Cartas do Brasil (1549-1560). Opera Omnia. edição do Padre Serafim Leite, pgs. 63, 64. Coimbra, 1955.

[5] Cf. ob. cit. nota ao pé da página 64.

[6] Cf. Padre Manoel da Nóbrega, Diálogo Sobre a Conversão do Gentio, edição do Padre Serafim Leite, p. 49. Lisboa, 1954.

[7] Cf. Padre Manoel da Nóbrega, ob. cit. Vida de Nóbrega de Antônio Franco. Ed. da Academia Brasileira de Letras, p. 48, Rio. 1931.

[8] Cf. Teixeira de Pascoais, Verbo Escuro, 2ª edição, página 7, Rio, 1923.

[9] Cf. São João da Cruz, Cântico Espiritual, Vida y Obras, Z.A.C, 910, Madri, 1946.

[10] Cf. Luiz Gonzaga Cabral, S. J., Os Jesuítas no Brasil, p. 115. Rio, 1925.

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