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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (19)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Toda nua

Maria dos Anjos vai contando a novidade. Começou a espalhar a notícia mesmo à beira da linha Forte Augusto, para a comadre Benedita e depois para o compadre Chico do Mangue, que amarrava a canoa, recém-chegado do outro lado, de onde trouxera dois sacos cheios de caranguejos.

Depois o sucedido foi narrado pelas travessas da Bacia, Vila Santista, Rua Almirante Tamandaré acima...

De um lado e outro da linha do 15, todos ficaram sabendo, e em pouco o escândalo já andava, cochichado, pela Rua Senador Dantas afora.

Naquele mundinho proletário que é o Macuco, nas adjacências da Bacia, funcionava Maria dos Anjos, a Central Telegráfica. Nela se abeberavam as agências menores, difusoras de todas as notícias de sensação, dramas íntimos ou crimes violentos, dignos ou não de edições extraordinárias dos jornais da tarde e da noite. Ouvidos e boca de todas as mulheres bisbilhoteiras e de todos os homens ávidos de vida alheia, constituíam a grande rede das agências difusoras.

- Sabe? O Praxedes, aquele que fez mar à Graciema, se alembra? Pois o Praxedes saiu da cadeia faiz pôco tempo e já diz-que tá amigado, aí num chalé da Rua Particulá 45, com... sabe com quem? - Aqui a delícia da informação obrigava a uma pequena pausa, onde os olhos da transmissora fuzilavam - Amigado sabe com quem? Magine só...

***

Praxedes recuperou a caderneta da Estiva e voltou a trabalhar no cais. Está ajudando um embarque de algodão no Santos Maru da Osaka Shosen Kaisha. No chalé que alugou na Rua Particular 45, Lú cantarola no quintal, estendendo roupa no coradouro de grama. Já vive com o Praxedes há duas semanas. O homem é louco por ela. Tanto insistiu e prometeu, que ela acabou deixando a pensão da polaca. Gosta um pouco daquele bruto, mas não tanto que o suporte por longo tempo. Não vê! E aquela vida nova, que pau! Não nasceu para o trabalho - gosta é do luxo, e de ficar o dia inteiro de papo para o ar. Na pensão, tinha um quarto todo enfeitado com papel de seda, com um abat-jour vermelho também de seda.

Levantava-se às dez horas, e se quisesse pagar mais quinhentos réis, tomava o café mesmo na cama. Depois ia fazer as unhas, tomar banho se fosse sábado. Às vezes, mesmo numa quinta-feira, dava-se ao luxo; madama, manda perpará um banho morno! Assinava o vale e pronto: banho morno, quinta-feira! Um vidão de desperdício!

De noite bebia cerveja e licor - liquer-r - para amenizar o "trabalho". Ria com um marinheiro alemão, bebia cachaça com algum estivador, levava para o quarto um inglês bêbado ou um mulato do morro do Fontana. Às vezes, dormia com o Praxedes Lloyd.

Começava a ter saudades daquela vida de luxo e de ócio. Luxo, sim! Tinha três vestidos de cetim, um de organdi, dois de seda, aquele novo de tafetá e o outro, enfeitado com lamê!

E chambre fino, cheio de flores grandes e pássaros pintados. A fazenda era seda japonesa, toda preta, e as flores e os pássaros eram coloridos: azuis, vermelhos, roxos... Uma beleza! Comprado de contrabando, de um russo.

O Praxedes gostava que ela pusesse o penhoar em cima do corpo nu. Depois, se estava bêbado, começava a dar tiros com a boca: pum-pum-pum-pum nos pássaros coloridos, fingindo espingarda, com um braço estendido, outro encolhido, e um olho fechado.

Dizia que estava caçando nhambus, e a jogava na cama e lhe arrancava o chambre com tanta fúria, que ela precisava gritar: cuidado, bruto! vai rasgar o penhoar!

Estende ao sol a calça de zuarte do amigo. Praxedes ganha pouco, não dá nem para comprar os seus romances de 2$000.

Gosta de coisas finas, em leitura. Livros de bandalheira, só comprava para mostrar as figuras ou para ler alguns pedaços, quando o freguês andava frio, e queria parar nas cervejas da pensão.

O que mais aprecia, é um livro como aquele romance da Editora Feminil: "Magalô, ou a virgem dos olhos azuis".

Ou então os dramas fortes, que manda comprar na estação da Inglesa: "Josefina, a mulher de gelo" - com sub-título - "romance de uma grande artista das capitais européias, escrito por ela própria".

Estende na grama a camisa de meia, preta e branca, do Praxedes. Que trabalhão, tirar manchas de graxa do navio!

Qual! Não dá para esta vida! Gosta do luxo, vestidos de cetim, sapatos de verniz... E de estar a uma mesa tapeando os bobos dos homens; eu sô filha de chinesa com turco - não parece, não? Pois é - nasci no meio de uma floresta africana. Até parece mentira, não? Pura verdade! Verdade como estarmos a gente aqui na pensão da madama Polsasky.

Uma vez, tinha bebido demais, e o gajo não quis acreditar que ela fosse nascida na Austrália, à beira do mar Vermelho. Que burro! Teimava que na Austrália não tem mar Vermelho nenhum, só tem canguru e carneiro. Então, ela deu com uma garrafa na cabeça do teimoso, o melado correu, vermelho, outras mulheres gritaram, veio a polícia da zona, quis levá-la presa. Não vê! Pediu p'ra ir se arrumar no quarto, e o soldado ficou na porta, esperando. Quando ela o mandou entrar, dizendo que já estava de chapéu p'ra falar com o delegado, o polícia deu com ela deitada na cama, toda nua, sorrindo para ele, de braços abertos. O soldado não pôde nem tirar as perneiras, de tão nervoso. Foi preciso ela mesma tirar. Ninguém foi preso: só o soldado, que ela prendeu a noite toda nos seus braços.

O tempo agora está firme. Levanta os olhos. Em cima de uma escada, pregando uma latada de maracujá, está o seu vizinho, um negrão forte.

Ela sempre gostou de homem grande e forte: por isto, preferia os marinheiros da Suécia e da Estônia, quando fazia a vida.

O preto bate com o martelo, e o seu chalé parece que vem abaixo com as batidas. Que punho!

Lú põe a mão nas cadeiras e provoca: isto aí é uva, moço?

O preto vira-se, cumprimenta: boa tarde, dona. Não, isto é maracujá. Quero se enrama por aqui.

- Ah! maracujá é fruta? (Lú está cansada de comer maracujá).

- Pois não havéra de ?

- Descurpe, mais é que nóis sômo estrangero, eu e o meu marido - cheguemo do Paraguai esta semana, sabe?

- Lá não falam espanhor, dona?

- Em arguns lugares; noutros, cumo... cumo... (Procura na memória, depressa... Baía Blanca é Argentina, não é? Tampico é no México. Nunca esteve com marinheiro paraguaio, foi o diabo falar no Paraguai! Mas o preto não deve saber;) cumo Tampico, onde a gente morava, se fala o portugueis...

- O seu marido também é de lá?

- É. Cumo é o nome do sinhor, hein?

- Me chamo Agenô, seu criado. Agenô Viana da Anunciação.

- Amém!

- Que que a sinhora disse?

- Nada! É um costume paraguaio.

- Bem, se dá licença, eu vô descê. na hora do grude, é servida?

- Obrigado. Apareça p'ra conversá cum meu marido, sim?

Lú sorri um sorriso de tentação, como o fez para o soldado, na cama, uma vez.

E sente que os olhos do homem lhe tiram as vestes, e que, na imaginação dele, ela está despida, toda nua, como o ficou para o soldado da zona, certa noite, para não ser presa.


Bonde 19 na confluência das avenidas Senador Dantas e Rodrigues Alves, cerca de 1940

Imagem enviada a Novo Milênio por Ary O. Céllio