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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (14)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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4 x 3

Três dias antes do julgamento, Praxedes foi levado para fora do xadrez, a uma sala onde havia uma mesa com um pano de feltro verde, três cadeiras e um advogado.

O advogado fez Praxedes sentar numa das cadeiras, e sentou-se ele próprio na beira da mesa; eu sou o dr. Guedes. Fui nomeado pelo meritíssimo juiz criminal seu advogado ad-hoc.

- Ah!

- Conte-me a sua história toda, sem mentir. Diga sem susto, que um advogado sabe esquecer tudo que convém ao cliente ser esquecido. Vá falando: o que for contra você, esteja certo que não ouvirei.

Praxedes contou tudo, e foi até preciso explicar o que era caçada de nhambu. Depois, prometeu seguir à risca as instruções do mocinho de cabelos crespos.

***

Quando voltou ao xadrez, estava admirado: magine, professô: o doutô me disse que eu podia prestado fiança - arranjava uns 300$, e me defendia lá fora!

- Qual é o teu artigo?

- Deixa vê... é centena do macaco... ah! 267!

- Pois então podia prestar fiança.

Praxedes desconfiou: Cabelêra, tu não sabia?

Cabeleira estava fazendo tricô na beira do colchão: sabia o quê?

- fingindo, hein? Tu sabia qual era o meu artigo, tu podia me avisá, e me dexô aqui mofando quase sessenta dia!

Torceu um braço do outro: confessa, seu peste! tu sabia?

- Ai, ai, ai! Sabia, sim! Me larga, Praxedes! Ai, me quebra o osso! Vinheram uns home le procurá - você tava durmindo lá no fundo - eu disse que você tinha ido p'ra S. Paulo, que era comunista! Ai, me quebra o osso! Foi porque gostava de você, Praxedes! Me larga! Não queria que você me abandonasse! Ai, ai!

Praxedes jogou-o contra a porta, Cabeleira bateu ns grades e caiu, com estrondo. O cabo da guarda correu, correu o carcereiro: quem foi que bateu nele?

Antes que alguém respondesse ao soldado, a vozinha fina do Cabeleira explicou: não foi ninguém; eu escorreguei.

Levou a mão à testa, onde os cabelos se empastavam de sangue.

O carcereiro se assustou: quanto sangue! Vamo levar ele ao seu delegado, p'ra ver se manda fazer curativo na Santa Casa.

Levaram o Cabeleira. Praxedes sentiu o rosto quente, como se tivesse levado bofetada de mulher.

***

O carcereiro abre a porta do xadrez 3 e chama: José Praxedes Lloyd!

É para o julgamento, afinal!

O Bemtevi vai ficar para a próxima sessão: o advogado dele disse que os jurados estavam muito bravos, convinha pedir adiamento, para pegar gente mais camarada, senão era arriscado.

O marinheiro Mardick já foi solto, o professor e o Cabeleira cumprem pena imposta pelo juiz, Anastácio morreu, muitos presos foram já soltos, outros removidos para os xadrezes 4 e 5, alguns, condenados, já estão na Penitenciária de São Paulo.

O Espírito de Porco começou a por sangue pela boca, e está morrendo no "Pavilhão" da Santa Casa. Em compensação entraram outros, no lugar dos que saíram. O equilíbrio se mantém: estão 133 encarcerados, no xadrez que comporta 30 ou 40.

Os loucos são os únicos que não saem, só de pés juntos. Mas entram novos, sempre, e o número deles é de quase a metade do total dos homens.

O professor aperta a mão de Praxedes: felicidades... e que não volte mais!

O juiz Bemtevi se lembra de que o mulato achou que a mulher branca, sardenta, de perna de pau e dente de ouro, devia dormir com o marido ao menos uma vez por semana, e isto ainda o comove: conte c'um amigo p'ro que for de percisão!

Maneco Cabeleira está com os olhos fundos, bistrados pela noite de vigília. Mas conseguiu acabar o tricô: é um suéter para o Praxedes.

Praxedes recusa, joga a malha no chão, diz que não recebe presente de veado.

Mas Bemtevi o aconselha: diz-queazá, negá lembrança de preso no dia do júri. Você pode condenado, lá!

O mulato é supersticioso, e está cansado daquelas grades. Quer ver o azul do céu sem barras de ferro trançadas na frente. Veste o suéter e espicha uns dedos inteiriçados para o Cabeleira: obrigado, Maneco!

Maneco pega-lhe a mão, cheio de alegria, e não diz nada, fitando o amigo.

O carcereiro apressa: vamo, seu! O júri está esperando!

Praxedes sai. Dois soldados o escoltam, levam-no por corredores, sobem uma velha escada de madeira.

Cabeleira se atira no chão, soluçando.

***

Ali está José Praxedes Lloyd no banco dos réus, que afinal é uma simples cadeira, igual a todas as cadeiras!

Ali está o doutorzinho de cabelos crespos, que dirá aos jurados o que Praxedes por vontade diria de viva voz.

E o juiz, que não tem batina e usa gravata vermelha; e o promotor, o tal implicante, que fala e diz coisas feias contra Praxedes.

É por ele que o mulato sabe que Graciema voltou ao delegado para dizer que se tinha entregue por livre vontade, e que Praxedes nunca lhe prometera casamento.

O promotor envenena a coisa: tal declaração é apenas um rasgo de generosidade da moça, é um gesto sublime para salvar não o homem que a maculou, mas o pai do filhinho que vai ter!

Praxedes fica sabendo que vai ser pai.

O promotor ergue a voz em tremuras de comoção: há muita vez mais honra naquela que a sociedade diz desonrada, que no infame causador do mal. Este é um exemplo, senhores juízes de fato! Eu vos aponto, de um lado, esta menor - Graciema - seduzida, abandonada, quase mãe, pedindo clemência, à custa da sua desonra, para o homem vil que a perdeu, mas em quem ela só quer ver o pai do seu filhinho!

De outro lado, o réu, homem sem moral, bebericador das cantinas e botequins do porto, prometendo casamento à namorada, recusando-se a casar com ela depois, depois de lhe haver arrancado o único dote de moça pobre: a virgindade do corpo!

A sociedade considera Graciema desonrada! Onde está a honra de José Praxedes Lloyd?

Praxedes tem ímpetos de se levantar e dizer para o promotor: vá perguntá p'ra... e dizer, inteirinho, o nome feio que lhe acode à idéia. Mas o seu advogado disse que ele ficasse quieto, senão ere peior.

Decerto, o mocinho de cabelos crespos vai xingar bastante o promotor, quando falar!

O promotor acabou a acusação. Tem a palavra a defesa. É agora!

Mas qual! Praxedes se desilude: esta gente não sabe discutí! Vão que tão de combinação p'ra me meterem o pau. Onde já se viu isto? Um promotô dizê tanta coisa feia do réu, e o advogado dele ainda chamá o promotô de vossa excelença! Devia chamá ele logo de filho da puta, isto sim! Estes mocinho nunca viram home discutí no cais. Estão cum pomada, cum nobre colega p'ra cá, vossa excelença p'ra lá... Isto é pó de arroiz, não é discussão!

Pronto, no pau! Antes eu mesmo falasse: nada de água de chêro p'ro promotô - puteava ele logo. E se o juiz se metesse, puteava o juiz também. Home é home. Briga é briga!

O mocinho de cabelos cacheados vai explicando para os jurados que ninguém deve ser mais realista do que o rei. Se Graciema contou que se entregara "exponte sua", o crime já não existia. Não é culpa alguém aceitar o que legítimo dono oferece! Aos dezessete anos, uma mulher, sobretudo uma moça humilde, habitando casas coletivas, vendo cenas fortes nos quartos dos vizinhos, já conhece toda a malícia e todos os perigos do amor. Foi Graciema a culpada, Praxedes o seduzido!

Praxedes se reconcilia mentalmente com o seu advogado: agora, sim, falando dereito! Teve vontade de soprar: foi ela que piô de nhambu p'ra mim! - Mas ficou quieto.

***

Absolvido, por 4 votos, Praxedes olha o céu por uma janela do Fórum: o azul não tem mais grades na frente.


Hospital da Santa Casa, com a Igreja São Francisco de Paula, na confluência da Av. São Francisco com a Praça dos Andradas, em foto de 1915, quando terminava de ser construído o pavilhão para Tuberculosos (Hospital de Isolamento) na encosta do morro

Foto: álbum Exploração do Littoral - 1ª secção - Cidade de Santos á fronteira do Estado do Rio de Janeiro, da Commissão Geographica e Geologica do Estado de S. Paulo, impresso por Typographia Brazil de Rothschild Co., S. Paulo, 1915.

 Acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio (SHEC) de Santos