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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (07)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Que há de ser, agora?

Graciema anda de barriga. O irmão o disse, depois a madrinha - dona Hermenegilda - também notou, a vizinhança percebeu, e na bacia do Macuco a incansável Maria dos Anjos conta o caso para quem quiser ouvir e mesmo pra quem não quiser.

Já o transmitiu às suas freguesas de ovos e de roupa lavada dos palacetes da Avenida Bartolomeu de Gusmão, e às suas comadres da Avenida Rei Alberto, até os últimos casebres encostados ao ferry-boat.

- Xi! Conheço uma moça, não vô dizê o nome, coitada, mais que história triste! O bandido do estivadô tá na cadeia, e ela com uma barriga de quatro meis! Coitadinha da Graciema! Moça que teve seus estudo, bem falante como moça rica! O pai é carroceiro da União dos Transportes, é o seu Silva, um portugueis. Moram lá na Rua Padre Anchieta, nº 425. E o bandido do home não qué casá c'o a coitada! Ela é tão bonitinha! Que judiaria! Deus que me perdoe, porque também era home, porém home é bicho ruim, memo! A Graciema... Estes ovos são fresquinho, sim, dona! São ovo de quintar, pode .

Maria dos Anjos fecha a mão em canudo, encosta-a na casca de um ovo que segura contra a luz: pode espiá, dona: fresquinho!

A freguesa olha e concorda: é, não se vê pinto, ainda. Eu li qualquer coisa nos jornais. Então, o estivador fez mal à mocinha e não quer casar?

- É uma peste! Também, p'ra Graciema casá com aquela bisca, é meió que fique ansim memo. Graças a Deus, dona, tive uma filha mais já tá no céu. Moça pobre, aqui em baixo, só serve p'ra sê desgraçada. Se não casa logo, cai na vida, porque os homes não arrespeitam mêmo quem percisa trabalhá p'ra vivê - tudo em cima da operária, des o padrão e o gerente, o engraxadô das máquina ou o varredô do armazém. As coitadinhas resestem, resestem, mais um dia, p'ra não perdê o emprego ou acreditando em argum, acabam caindo. Não vê a Graciema? Já tem dois estivadô dando em cima dela. Nem arrespeitam a barriga dela, de quatro meis! Urubu, dona, tem mais vergonha p'ra se chegá na carniça!

Maria dos Anjos cospe, para exprimir melhor o nojo que lhe desperta a lembrança da carniça e a lembrança dos homens. Depois recebe os 2$400 da dúzia de ovos de quintal, e vai contar a história da mocinha enganada em outra casa de família rica. É bom, porque sempre a dona fica com pena da Graciema e dos pobres, e não regateia tanto o preço dos ovos.

***

No chalé da Rua Anchieta 425, Graciema passa umas roupas a ferro. De quando em quando sopra com força o ferro de engomar para reavivar as brasas.

É um vestido de baile para a filha do gerente da Santos Coffea Co. Pediu muito capricho, sobretudo na gola, de organdi transparente, que é para usar acolchetada ao vestido.

Dá um trabalho! Principalmente ao passar o ferro beirando aquelas preguinhas miúdas da orla, com muito jeito, segurando bem o tecido, esticado, porque a cada momento ele tende a se enroscar, com o calor. Mas está ficando uma beleza! A moça vai ver como Graciema capricha!

Passa o paninho molhado em água de goma, para que fique bem armada a gola branca de organdi.

A moça disse que ia ao baile do XV com o noivo, um norte-americano da Armour. Graciema nunca foi a um baile - o pai não deixava - mas um dia teve noivo.

Molha o dedo na saliva e experimenta o calor do ferro: está bem quente.

Uma idéia chama outra. A moça daquele vestido vai ao baile, tem um noivo, casará, terá filhos. Graciema lembra-se de coisas, seus olhos se perdem, longínquos, sem nada fixar, na parede que está defronte, caiada de verde. O mato do Paquetá, atrás do cemitério, era verde assim...

Os lábios de Graciema se mexem, ela diz, baixinho, perguntando a si mesma: que há de ser, agora?

Seus braços se imobilizam sobre o punho do ferro, seu pensamento vai voando à cadeia onde está José Praxedes Lloyd, pai do filho que vai ter.

Fica assim até que o cheiro de pano queimado lhe sobe ao nariz. Olha a gola de organdi branco, para a qual a noiva do americano pediu muito capricho: está toda enroscada e preta, fumegando sob o ferro esquecido.

Os lábios de Graciema se movem, e ela repete baixinho, perguntando a si mesma: que há de ser, agora?


Bonde passa defronte a grupo de palacetes na praia do Gonzaga, por volta de 1920

Foto: coleção Allen Morrison, de New York/EUA, enviada por Arsenio Fornaro, de New Jersey/EUA