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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 40

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 12 de novembro de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Sar Peladan

Há escritores de vida tão atribulada que poderiam servir de protagonista para novelas dramáticas. Outros, no entanto, levando existência relativamente pacata, conseguiriam fornecer temas para romances assaz vivos, mas de escola diferente: são os aventureiros de espírito. Neste último caso está Joseph-Aimé Peladan (N.E.: também conhecido como Joséphin Péladan, nasceu em 28/3/1858 em Lyon ou Lião, na França, e faleceu em 27/6/1918 em Neuilly-sur-Seine).

Quem se reporta às suas biografias, notadamente à escrita pelo seu contemporâneo René-Georges Aubrun (E. Sansort, Paris, 1904), pode contar, se quiser, uma história cheia de curiosos lances. Para relatar as suas nobres e silenciosas façanhas, será bom ler primeiro os contos dos irmãos Grimm, cheios de magos, de fadas e de encantamentos. E, se possível, molhar a pena em tinta azul.

Nasceu Peladan na brumosa cidade de Lião, no ano de 1859, mas os pais eram do Sul, onde tudo nasce, espontaneamente, por maravilha do sol provençal; os homens limitam-se a sonhar e a criar insetos. Sei de dois ilustres vizinhos que assim procediam. Fabre criava formigas, Mistral criava cigarras. O sábio, para estudar-lhes a vida privada, o poeta para enriquecer as harmonias da tarde...

Peladan nasceu lionês como o sr. Herriot, que tinha barriga, barba folgazã e fumava cachimbo. No entanto, por uma circunstância cuja explicação se encontra na sua própria obra, o nosso homem, embora nascido nas brumas de Lião, não era lionês, era caldeu, daquela geração que chamava de filhos aos gregos da idade áurea. Sentia-se oriental, por dentro e por fora.

Por isso, com o decorrer dos anos, ele deveria apresentar-se aos seus contemporâneos como um homem alto, magro, seco. As sobrancelhas, as pestanas, o bigode, a viçosa barba, eram negros e profundos. Da sua fisionomia só apareciam as maçãs do rosto, tisnadas, e os grandes olhos negros, cheios de luminosidade, perdidos na contemplação do que devia estar para atrás das colinas.

Mas tudo isso desaparecia debaixo da cabeleira absalônica, que dava à sua cabeça o dobro do volume. Vivia pois, dentro de uma aura de sombra, encanto de mulheres e curiosidade risonha dos boulevards. E, para completar a excêntrica figura, envergava, habitualmente, um manto de seda preta, de muitas voltas, que o tornava único na estranha fauna literária daquela colorida Paris da segunda parte do século.

Tinha de quem puxar. O pai já apresentava traços pilosos. Encantamento a que o nome rebarbativo dos Peladan [...] nas páginas que Peladan filho deveria dedicar-lhe, por época de sua morte, no Último Bourbon. O provençal fora sempre jornalista, correspondera-se com Chateaubriand, Lamartine e Lacordaire. Em Lião, criara a primeira Semana Religiosa que se deu nas províncias, e a França Literaria, periódico que alcançou popularidade. (N.E.: algumas palavras ilegíveis no original).

No seu salão da Rue Sainte Heléne, o velho Peladan recebia a nata da intelectualidade lionesa. Entre aqueles homens bem vestidos e bem falantes, o filho via todas as semanas o cardeal Ronal, exegeta e tradicionalista, Blanc de Saint Bonnet, metafísico perturbador de serenidades, Vitor de Laprade, pagão e místico, Xavier Bastide, autor de Mandragora, Josephin Soulary, precursor de Heredia, autor de sonetos perfeitos, de quem o jovem adotará o prenome, mudando o seu Joseph-Aimé para Josephin, bem mais eufônico.

Mas a flor daquelas reuniões era o dr. Adrien Peladan, irmão mais velho do futuro escritor. Era um homem excepcional. Aos 12 anos, escrevera uma Historia poética das flores. Mas não devia chegar à velhice. Uma vez, estando em Leipzig, teve de recorrer à estricnina; o farmacêutico Weimar Schwab enganou-se na dose e ele morreu.

Foi esse homem de grande cultura que dirigiu, já em Nimes, para onde a família se havia mudado, a educação filosófica de Josephin. Iniciou-o desde logo naquela corrente muito em voga e à qual se dava o nome de Ocultismo. Conduziu-o a reuniões em que tomavam parte Firmin Boissier, o visconde de Lepusse e um grupo de tolosinos hermetistas. Ali comentava-se o Oriente e o Zohar. Aprofundava-se Hahnemann e Mesmer. Procurava-se ligar a ciência moderna à sabedoria antiga. Passavam de mão em mão os estudos de Fabre d'Olivet, Stanislas de Guaita, Lacuria e Elifas Levi.

Em 1881, com 22 anos, Peladan partiu para a Itália. Foi seu companheiro de viagem o erudito Marignan. Na Península, conheceu a obra de Rafael, Miguel Angelo, Leonardo da Vinci. Sentiu como que uma revelação, palavra que para ele devia ser mais significativa que para o comum dos mortais. Ali concebeu a ideia de uma estética tradicional, da qual seria o renovador e o apóstolo. Chegando a Paris, no ano seguinte, travou relações com Arséne Houssaye, que lhe propôs escrever a História de Marion de l'Orme. Meteu mãos ao trabalho.

Peladan, meses antes, havia estreado nas letras com um opúsculo sobre Rembrandt, largamente apreciado; graças a ele, entrou para a redação do Artista, que era o jornal dos moços. Pelas suas colunas, na qualidade de crítico, escreveu sobre Barbey d'Aurevilly, Leonardo da Vinci e, principalmente, sobre o Salão de 1893, estudos que lhe proporcionaram renome nacional. Só então conheceu pessoalmente a Jules Barbey d'Aurevilly. Começaram, então, a aparecer suas obras.

São inconfundíveis. É católico. Católico revolucionário. Seus livros descrevem os vícios da época, para combatê-los. Em quase todas as páginas, proclama: "a raça latina deve ser católica; se não for católica, desaparecerá". E o seu entusiasmo foi tal que não pode parar no ponto conveniente da desabalada corrida; em certo declive, ultrapassou as linhas estabelecidas e transpôs o umbral, isto é, precipitou-se na heresia.

Merodack (protagonista do Vicio Supremo, sua obra capital) foi apresentado como Super-homem. O Super-homem, para ele, era o indivíduo cujas faculdades e qualidades superiores - pensamento, caridade e vontade - alcançaram a um prodigioso desenvolvimento. Para chegar a Super-homem, seu protagonista cultiva a vontade, aperfeiçoa a personalidade, utilizando para isso métodos práticos e racionais. Purifica-se, concentra-se, absorvendo o físico no anímico.

Peladan envereda por esse caminho e, dentro de pouco, cria o teatro Rosa Cruz. A obra divide-se em duas. No Anfiteatro das Ciências Mortas, há a pura especulação histórica e científica, para fortalecimento dos princípios. Na Decadência estética, critica as obras da época, comparando-as às mais belas produções dos séculos passados, esforçando-se por chegar a conclusões pessoais. um desses opúsculos chama-se A renascença francesa e seu Savonarola. Refere-se a Emilio Zola.

Em 1888, Peladan faz uma viagem a Beyreut, em companhia de William Ritter, autor da Egipciaca e das Almas Brancas. Ali conheceu Parsifal. Foi essa a sua segunda revelação. Voltou da Alemanha "confundindo germano com gênero humano". Em sua alma passam para segundo plano as "logie" de Rafael, os mundos harmoniosos da Capela Sistina e as ruínas do Cenáculo em Santa Maria delle Grazzie...

Naquela cidadezinha da Baviera, as velhas lendas escandinavas ou célticas ressuscitaram a seus olhos; aprendeu "a mais sobre-humana música que jamais foi concedida à voz dos homens". Ao mesmo tempo, concebeu o teatro futuro e a instauração de três ordens: a Rosa Cruz Católica, a do Templo e a do Santo Graal. Foi o primeiro a proclamar o literário esplendor do poema wagneriano; foi o primeiro que ousou nomear, junto de nomes muito ilustres, a sua sede de desconhecido, invocando o oitavo trágico depois de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Corneille, Racine e Goethe. Opôs Wagner a Zola, como outros haviam oposto Nietzsche a Wagner.

Em 1892, inaugurou, em Paris, o primeiro salão Rosa Cruz. O público invadiu o recinto e tomou partido. Uns curiosos e compreensivos, outros malévolos e escarninhos. Ao mesmo tempo, organizou representações e concertos. Foi exumar músicas sacras que a indiferença eclesiástica e a timidez dos diretores de orquestra haviam esquecido na poeira dos arquivos. Fez executar a missa do Papa Marcelo, cantada "a capela" por quarenta vozes. Muitos artistas de renome colaboraram na iniciativa de Peladan. Foi nesse período que ele deu a conhecer aos parisienses a sua deliciosa pastoral caldaica intitulada O filho das estrelas.

No ano seguinte, o salão apresentou maior número de quadros. Mas o principal deles foi o retrato do próprio Peladan, por Marcel Desboutins. A propósito, diz o biógrafo: "É preciso recuar até os esplendores da renascença veneziana para encontrar uma tal aristocracia de modelo e de execução. Esse trabalho não ficará apenas como obra-prima da iconografia contemporânea; será igualada, sem dúvida, aos mais prestigiosos Ticianos".

Por essa ocasião, foi também representada no Dôme Centrale mais uma peça inédita de Peladan: a tragédia Babilonia. Grandes artistas tomaram parte no desempenho. O êxito foi enorme. A expressão mais comum entre os espectadores era a de que aquela noite evocava o fastígio dos tempos clássicos.

Daí por diante, o filósofo passou a assinar-se Sar Peladan. Esse título oriental caiu em paris como uma bomba, foi um escândalo de que ainda hoje se encontram vestígios nos anais literários. Houve quem procurasse espionar-lhe a vida privada. Chegou-se mesmo a descobrir que ele, portas a dentro, envergava vistosos trajes orientais. Vociferou-se contra semelhante fantasia. No entanto, já naquele tempo,não era uma novidade. Como se sabe, Balzac, Barbey d'Aurevilly, muitos outros escritores antes de Peladan, haviam adotado esse traje interior, para as horas de trabalho. Pierre Loti envergava um bournou para sentar-se à mesa em que escrevia e sabe-se de alguns parlamentares que foram para o hemiciclo da Câmara ostentando a túnica negra dos muçulmanos.

O salão Rosa Cruz entrou em declínio e quatro anos depois morreu. Mas a obra de Peladan não cessou. O Anfiteatro das Ciências Mortas continuou a ser enriquecido. Em 1891 já havia aparecido o opúsculo intitulado Como tornar-se Mago. A crítica, que não o leu, comentou-o como se se tratasse de um formulário de receitas de feitiçaria, à maneira do nosso venerando Livro de São Cipriano... Poucos compreenderam que ali estava a figura prodigiosa do Mago como pode ser visto nos baixos-relevos da Caldéia.

Peladan apresentava o Mago como o "Eu" que se cultiva, já não à maneira céltica, elegante, voluptuosa e um pouco triste de Maurice Barrés, mas no que diz respeito á vontade e ao desígnio de tornar-se supra terrestre. Era um verdadeiro tratado de auto disciplina, para desenvolvimento de qualidades anímicas e poderes.

A esse livro seguiu-se outro: Como tornar-se Fada. Nova celeuma. No entanto, era dirigido à mulher de costumes severos. "Sede uma estátua a um quadro e um poema, vivendo num ritmo pacífico e doce. Sede tão bela quanto possível, mas que a vossa beleza irradie ideal". O livro mostrava ainda a vanidade da desordem amorosa; o homem e a mulher são recíprocos carrascos; a paixão deve transformar-se em caridade; o amor persiste mas, sublimado, etéreo, servirá ao harmonioso desenvolvimento da personalidade espiritual. O Mago e a Fada não devem sofrer por causa de desejos inferiores, há uma aristie (a palavra é sua) sentimental que coordena e, quando preciso, cobre com leve nuvem de incenso purificador os movimentos físicos e os possíveis desfalecimentos.

Como se vê, por essa altura, Peladan entrou filosoficamente pelo terreno literário de Perrault e Lebrun. E a cada manual que saía a lume, o mundo vinha abaixo...

O quarto opúsculo do Anfiteatro das Ciências Mortas foi dedicado à Política. A essa ciência Peladan propõe seus métodos tradicionais e, partindo de pontos de vista sempre idênticos, chega a conclusões concordantes. Essa obra - diz o biógrafo - resume, unificando-as, três figuras de épocas distintas: Aristóteles, Spinosa e Fabre d'Olivet.

Proclama Peladan: "A política tem a mesma definição da ética coletiva". No terreno internacional, o filósofo se manifesta pacifista: "As relações entre os povos deveriam ser idênticas às de província a província do mesmo Estado". No terreno social, perde a serenidade etérea e ataca a burguesia: "A burguesia, estúpida e cínica, será bem mais difícil de educar do que o povo. Este, que é um meninão, pode ser elevado pelos seus nobres sentimentos. Mas o burguês maneja um bloco de ideias estabelecidas e tacanhas, as do seu jornal. Repele o gesto heroico como um ultraje à sua mediocridade. Nesse homem, o artista encontra o inimigo verdadeiramente hereditário". E Peladan refere-se com igual amargura à aristocracia, morta desde 1780, e aos homens da Igreja: "Ils la feraient mourir si elle n'etait eternelle!".

Sua obra, além dos méritos aceitos pela críica, tem outro: o inesperado. Num tempo em que se falava de Dante como o poeta-santo, ele procura provar que "a Divina Comédia não passa de uma Divina Diatribe". Quando muitos julgavam François Rabelais um saboroso clássico, com todas as marcas do seu século, amigo do grotesco e do impudico, ele esmerilha a sua obra, encontra A chave de Rabelais e abre portas secretas, apresentando o mago de Meudon como um grande místico, filiado ao mais alto pensamento da Renascença.

Quando o mundo se debruçava sobre a Virgem de Orléans, ei-lo que compulsa os dois processos, cobertos pela poeira de quinhentos anos, e apresenta a seu modo o Segredo de Joana d'Arc: uma conspiração de mulheres no tempo em que só a França contava cerca de 200 conventos de clarissas, entre as quais uma princesa pretendente ao trono. Observa que nesses venerandos documentos a palavra mensageiro confunde-se com a palavra anjo e conclui que anjo quer dizer mensageiro, mas nem todo mensageiro é anjo... Seus argumentos são mágicos: fazem o leitor arregalar os olhos.

Ali por 1898, Peladan toma o caminho do Oriente. Seu velho sonho se realiza. É a terceira revelação. O caldeu da Provença foi conhecer sua verdadeira pátria, de passado e de glória. O biógrafo chama a atenção dos leitores para o fato dele usar um nome caldeu e apresentar os traços característicos da raça que celebrou. Ele próprio denuncia os liames secretos que o unem ao Oriente.

Escreve: "A aurora me mostrará essa terra sagrada onde nasceram os pensamentos que abeberaram minha alma e de onde vem o puro fermento de minha vida espiritual. Ad Magistrorum Magistros. Eu vou aos mestres de meus mestres, aqueles que instruíram Platão e puderam tratar os gregos como filhos. Embalde nasci nas névoas lionesas. Não vou ao Egito, volto ao Egito. Esta viagem - eu bem o sinto - é um regresso".

Passando por Atenas, fala das condições da renascença helênica diante de uma nobre assembleia e propõe a Mounet Soully para a Ordem do Salvador. Na Palestina, faz uma descoberta sensacional que, em qualquer época, teria sacudido o mundo cristão: descobre o autêntico túmulo de Jesus, na mesquita de Omar.

Regressando a Paris, publica novos livros: A Terra da Esfinge e A Terra de Cristo. Anuncia outros: Orfeu, Moisés, Dante e os Papas. Ao mesmo tempo, enriquece o Anfiteatro das Ciências Mortas com O Oculto Católico. O último volume aparecido nesse Anfiteatro é o Tratado das Antinomias. Nesse trabalho, procura aquilatar a justa importância de Descartes, Kant, Haeckel. Todo método tirado das ciências é falso; o único método foi transmitido em Delfos, é o "Conhece-te a ti mesmo".

Mas a sua obra atingiu a maior importância quando, num prodigioso esforço de identificação com os tempos áureos, restituiu ao mundo os dois trabalhos desaparecidos da trilogia de Ésquilo. Em Oedipo, o grande Paul Mounet realizou uma de suas mais belas criações. A propósito, o sr. Emilio Bournoul, antigo diretor da Escola de Atenas, escreveu a Peladan:

"Não nego que abordei a leitura com um certo receio: nós tínhamos o Prometeu Acorrentado completo, mas das outras duas peças não nos restava nada, e me parecia assustadora a ideia da sua recomposição. Li, pois, a sua dupla tragédia enquadrando a obra de Ésquilo. Pois bem! As minhas apreensões se dissiparam. Encontro nas suas obras o caráter grego tão completo quanto se possa desejar. A obra de Ésquilo tinha, certamente, alguma coisa de metafísico, direi de esotérico; o que resta da mesma o prova sobejamente. Os grandes espíritos daquela época eram, seguramente, iniciados nas ciências secretas, conservadas nos templos e transmitidas pelas iniciações. Os poetas dramáticos deixam muitas vezes transparecer alguma coisa nos seus escritos. O senhor, por conseguinte, teve o direito de fazer a mesma coisa numa trilogia onde não há mais do que deuses, que se passa num mundo sobre-humano, nos confins da terra, nos cumes do grande Cáucaso, cumes que foram os condutores dos mitos da Ásia Central até o Ocidente. E, além disso, esses deuses são Titans, as mais velhas concepções da religião grega".

E mais adiante: "Nada encontrei na sua composição que não esteja conforme com a tradição e com usos do teatro grego do tempo de Péricles". E, para terminar: "A sua tentativa é atrevida, talvez mais atrevida que a do sr. Leconte de Liale, que não teve mais do que traduzir e que reduziu uma trilogia completa do mesmo autor, ele a realizou com êxito. O público deu bom acolhimento a Erinnyes. Porque não acolherá o Prometeu, cujo intuito é muito mais alto?"

O teatro de Peladan teve sempre o cunho da grandiosidade. Seja completando a obra de Ésquilo, seja em Oedipo ou em Semiramis. Esta última peça foi representada, já neste século (N. E.: século XX), em Nimes, ao ar livre, nas ruínas do Coliseu Romano. Devia ter sido um espetáculo inesquecível. No cenário do Meio Dia (N. E.: região francesa do Midi), sob o dossel de um céu de cobalto, entre velhos burgos, olivais e vinhedos, tendo diante de si um público entusiasta de provençais, os maiores artistas da França ressuscitaram horas que pareciam mortas, evocadas por aquele excêntrico mago que, para o povo, devia ter o diabo no corpo.

Ora, foi Voltaire, se não me engano, quem disse: para fazer arte, é preciso ter o diabo no corpo... E Peladan, nos seus grandes momentos, com a capa, a barba, a cabeleira de crisântemo de sombra, era o próprio Diabo em carne e osso!

Idêntico êxito alcançou Oedipo quando, em 1903, foi representada, do mesmo modo, em Orange. Paul Mounet, naquele dia memorável, alcançou o cimo da sua glória.

Peladan, no meio da vitória do realismo, em 1880, abriu uma brecha; na sua obra foi acompanhado por Schuré, autor de obras que ainda hoje são lidas, Mazel, autor do Hereziarca e do Fim dos Deuses, Jean Moreas, tantos outros. Pois esse homem, durante quarenta anos, viveu a vida dos parisienses. Quando passava pelos boulevards, uns o cumprimentavam, ouros sorriam da sua figura estranha. Ele, porém, não tomava conhecimento das admirações e das mofas.

Teve bons companheiros. Nas mesas dos velhos cafés, entre Catule Mendés e Jean Richepin, outros dois barbudos, passou horas de encantamento. De uma delas sabemos nós, foi quando um poeta, vendo-os assim, em tão franca camaradagem, tomou do lápis e traçou-lhes a caricatura, uma caricatura que ficou para sempre, mais duradoura do que o mármore da mesa do café em que foi traçada, porque esse poeta improvisado em desenhista chamava-se Paul Verlaine. De outra vez, um desenhista, improvisado em poeta, pintou-o envolto nas roupagens gregas e a caricatura correu mundo, porque o desenhista chama-se Caran d'Ache.

Os grandes críticos discutiram-no. Maurice Barrés, no Voltaire, escreveu: "Admiro de seis em seis meses a desordem lírica e a vigorosa insolência do sr. Peladan". Jean Lorrain, no Evenement: "Não foi preciso apresentar o sr. Peladan ao público no prefácio do Vício Supremo, um livro único, extraordinário, difuso, confuso, beirando muitas vezes a obra prima e muitas vezes o ridículo, uma obra louca, profunda, genial e cheia de buracos; Balzac e Eugenio Sue misturados de mágica, de magia, alguns escreveram de galimatias".

O sr. Jules Bois, na Actualité: "Admiro profundamente o sr. Peladan por ter concebido uma obra magistral, embora atormentada, com duas únicas personagens. Mas admiro-o muito mais por ter criado com sua personalidade misteriosa e vibrante o romance lírico, que é o mundo adequado aos seus élans psíquicos e à sua forma". No mesmo tom falaram Theodor de Wyzena, Paul Flat, Edmond Picard, tantos outros.

O próprio Anatole France também tomou da pena, na Vie Literaire, e quis falar bem do escritor mas, segundo parece, não conseguiu inteiramente o seu propósito. Começou assim: "O senso comum não é para o artista senão um mérito secundário, e o sr. Josephin Peladan é um artista. Ele é absurdo, se assim o quereis; é louco, quanto vos agrade. No entanto, tem muito talento. Escritor de raça, dono da frase, ele tem movimento e cor. Quando lhe passam as manias ruidosas, quando a gente lhe perdoa o frenesi de fabricar verbos, encontra aqui e ali, no seu livro, páginas de uma poesia magnífica".

Aquela figura inconfundível por mais de quarenta anos teve grande voga em Paris, o que vale dizer no mundo. Encheu as revistas. Foi discutida nos salões, nos cafés, por toda parte. Sua obra, vasta, colorida, alarmante, foi glosada em todos os tons. Mas - e esta foi a sua única e imensa derrota - não conseguiu opor um dique às tendências realistas da arte na segunda metade do século XIX. A Origem e estética da tragédia e a Introdução à história dos pintores de todas as escolas acabaram, no fim do século, por ser obras apenas curiosas. Talvez, um dia, cheguem a ser marcos num caminho. Quem poderá predizer?

Em 1914, veio a guerra. Peladan sentiu que a sua época se tinha feito de areia e lhe fugia debaixo dos pés. A geração que surgia mostrava-se avessa à sua religião de beleza, onde ele por conta própria havia canonizado frei Angélico. O mundo se mostrava inadequado a sentimentos tão finos, àquela meditação a que Vitor Hugo chamava de "conversar com Deus".

O Mago não insistiu. Sem ruído, sem mesmo despedir-se do seu Paris que tantas vezes o aclamara, que tantas vezes escarnecera do seu sonho, retirou-se para Neuilly-sur-Seine e ali, entre os seus fantasmas, passou o pouco que lhe restava da vida. Em 1918, com dignidade e doçura, cerrou os olhos cansados, cansados de ver o que os outros não viam, cansados de ver este mundo que - para falar verdade - não era o seu.

O retrato definitivo de Peladan, aquele com que o mago comparece diante da posteridade, é um crayon, assinado por Elie Brasillier. Achei curioso o seu nome, pois começa por Brasil; fui ao Dicionário dos Pintores e Desenhistas, mas nada encontrei com referência ao misterioso artista.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O escritor romeno Alexandru Bogdan-Pitest (E) e Joséphin Péladan (D), durante a última visita a Bucareste, cerca de 1888

Foto: Ioan Spirescu, em Wikipedia (consulta em 1/7/2012)

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