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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 24

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 14 de julho de 1940 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

A igreja do bom ladrão

Nos últimos anos, a cidade de S. Paulo tem sido renovada e aformoseada. Sobre o labirinto dos vários bairros, a engenharia abriu largas e arejadas avenidas, para dar vazão à tumultuosa vida urbana. A capital está mudando de fisionomia, remoçando. Mas para isso tem sido necessário botar abaixo quarteirões inteiros de casebres, ou mesmo de residências senhoriais que nos chegaram de outros tempos, com a sua lenda e a sua saudade.

Há um ponto, porém, que por consenso geral dos paulistanos, deve ser poupado pela renovadora picareta da Prefeitura: a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, à Praça João Mendes, esquina do Largo 7 de Setembro. Convimos que a sua arquitetura é pobre e triste, o local em que se encontra é verdadeiramente ingrato, mas a esse pardieiro de taipas está ligada uma esplêndida página de outras eras.

Quem por acaso leu a história dessa igreja não pode deixar de manifestar a sua melancolia ao saber que ela já foi desapropriada e que, dentro de pouco, desaparecerá daquele pendor de colina onde, sob a forma de humílima capela, surgiu há trezentos anos erigida por criminosas mãos.

Sim, por mãos maléficas, tornadas piedosas num dia de arrependimento. Sua história pode ser lida nos livros de Azevedo Marques, Paulo Setubal, ou nas crônicas de Nuto Sant'Anna e F. Nardy Filho, antigo arquivista da Cúria Metropolitana. A primitiva capelinha foi mandada construir ali em 1732 por Sebastião Fernandes do Rego, uma figura sombria de ouros tempos, ladrão dos cunhetes reais, perseguidor dos irmãos Leme e herói de outras aventuras muito nos moldes do nosso século XVIII. Porém, sem esperança de alcançar a liberdade, resolveu em última instância recorrer ao céu. Fez a promessa. Construiria uma capela a São Vicente Ferrer, santo de sua especial devoção.

Conseguida a graça, pois a sua liberdade só poderia ser fruto de milagre, cumpriu o voto. A capela surgiu no Pelourinho, diante da Cadeia. Mas não foi provisionada. O visitador dom Francisco Pinheiro não gostou, mandou fechá-la. E ali ficou o humilde templo, ao abandono, abrigo de animais sem dono e de passarinhos boêmios.

Anos depois, a Irmandade da Santa Casa mandou reformá-la, mas a sua sorte nem por isso melhorou. E de casa velha chegaria certamente a tapera se não tivesse ocorrido um desaguizado na clerezia da capital da Província e que também é assaz encontradiço nas crônicas de antanho.

A Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, ereta na Igreja de São Bento, ali vicejou durante muitos anos, como flor de sonho e de penumbra. Em 1783, porém, surgiu uma desinteligência entre o provedor e o abade do mosteiro. A desavença foi longe, tão longe, que, de um dia para outro a Irmandade se viu extinta e despejada. Nesse dia, o provedor, em desespero de causa, se dirigiu à Casa da Câmara, relatando o ocorrido, num angustioso pedido de amparo.

Na seção de 17 de agosto daquele ano (conta F. Nardy Filho) foi lido um apelo da provedoria da Irmandade, no qual, depois da meticulosa exposição dos motivos, pedia a capelinha "de São Vicente Ferreira" para nela se instalar a Irmandade. A permissão foi concedida e a capelinha, melhorada e aumentada, passou a ser a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.

O que aí está referido já bastaria, só por si, para que se invocasse em seu favor a complacência dos poderes municipais, justamente animados do recomendável desejo de alindar a capital. Mas a página mais importante desse templo começou ali por mil oitocentos e oitenta e tantos, quando Antonio Bento, escolhido para provedor dessa Irmandade, levou consigo todo o anseio de liberdade da alma paulistana.

Foi dali que ele lançou um apelo ao governo imperial em favor da libertação dos escravos. A resposta, assaz cortês, não produziu o que esperavam os peticionários. Então, Antonio Bento, que era um combativo, começou a agir por conta própria, criando no templo uma escola para os primeiros cidadãos brasileiros saídos da Lei do Ventre Livre. Nessas escola, cujas portas abriram para o Pelourinho, serviram como mestres, entre muitos outros, o cônego Pedroso, Muniz de Sousa, Bueno de Andrada e Americo de Campos Sobrinho. O culto foi, pouco a pouco, se impregnando da ideia de emancipação do elemento serviu. A tal ponto que, nas novenas de maio, o povo cantava entre as rezas:

"Paes vossos míseros filhos

São iguais perante a lei..."

Ali, nos fundos da igreja, com frente para a Rua do Quartel, instalou-se a tipografia da Redempção, jornal que muito fez pela causa da liberdade. No consistório, sempre cheio de homens e mulheres de todas as classes sociais, Antonio Bento dirigia a campanha política e a "ação direta" dos seus famosos "caifazes".

Foi nesse salão, cheirando vagamente a incenso, que se concertaram os grandes lances da campanha abolicionista; a propaganda nas fazendas, a fuga dos cativos, a conversão dos fazendeiros mais acessíveis, o rapto de pretos entregues à ferocidade dos capitães de mato.

Disse Hyppolito da Silva que Antonio Bento continuou à sombra do manto de Nossa Senhora dos Remédios a obra iniciada por Luiz ama nas reuniões secretas da Maçonaria. Foi essa igreja o amparo dos negros sofredores. Os que padeciam nas senzalas do interior faziam votos a Nossa Senhora dos Remédios. Os que conseguiam a liberdade, pela fuga ou pela violência, vinham trazer os ferros, numa piedosa oferenda, à abençoada igreja.

O corpo da igreja, pouco a pouco, se transformou em museu de engenhos de tortura. As missas dominicais terminavam em comícios. E Bueno de Andrada conta a história de uma procissão abolicionista em cuja frente ia um negro arrebatado a diabólicos suplícios. O povo de São Paulo, ao vê-lo, não pôde conter as lágrimas. Só o mártir não se comoveu: tinha enlouquecido.

A igreja, iniciada há trezentos anos pelo piedoso ladrão, encheu a nossa terra durante muitos anos. Todos os que se interessam pela história, religiosos ou não, olham com infinita simpatia a igreja de taipa, perdida no "luzo" da cidade de ouro e ferro. Quando passo pela sua porta, descubro-me com emoção; sou devoto de Santo Antonio Bento. Não. A Igreja de Nossa Senhora dos Remédios não pode desaparecer. Ela é como uma arrecada antiga no retrato de uma moça formosa; acentua a sua beleza. Deve ser conservada, mesmo que seja dentro de uma redoma. Lembra coisas mortas. Páginas de sombra e de glória. É a Igreja de Nossa Senhora da Abolição.

- Quase todos os países conservam essas preciosas velharias; os governos dão-lhes prerrogativas de monumentos nacionais. Façam o mesmo com ela. Arrasem o quarteirão que a oculta. Reformem-na. Cerquem-na de grades fundidas com os ferros dos cativos. Mas não a tirem dali. Velhinha e feia, ela guarda nas suas taipas, como num sacrário rude, o que temos de melhor: a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios não enfeia a cidade. Ao contrário, será uma pincelada azul na praça cor de pedra.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria


Foto: igreja N. Sra. dos Remédios e o pátio da Cadeia em 1862, por Militão Augusto de Azevedo

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