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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 23

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 24 de maio de 1939 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Palavras descruzadas

(O repórter no país da gramática)

A língua inglesa, a cada edição do Webster, enriquece-se de milhares de palavras procedentes de todos os recantos do globo, postas em uso pelas necessidades do momento. Nós mesmos já temos contribuído com algumas delas, entre as quais a "valorização", no tempo em que a chamada "valorização do café" enchia os comentários dos jornais e as revistas especializadas em finanças.

O súdito de sua majestade que não compreendia a significação daquele vocábulo exótico, com uma minhoca voando sobre a penúltima letra, consultava o dicionário e imediatamente se tornava senhor da matéria, podendo empregá-lo logo depois com justeza e dentro das normas da sua língua.

Como se depreende deste exemplo encontrado à mão, a língua inglesa é uma língua corrente e atual não porque a tenham promovido a língua viva, mas porque ela está em permanente renovação, de modo a manter-se como o instrumento mais adequado á enunciação dos pensamentos entre os homens de diferentes nações. Do lado de cá do Atlântico, então, sem mesmo a preocupação do dicionário, essa língua absorve as locuções úteis que emergem da fervura norte-americana. A ocupação do Texas proporcionou-lhe copiosas palavras castelhanas que, quando necessário, recebem o "to" e se transformam em verbos: "to vamose", por exemplo, que é o modesto "vamos!" dos latino-americanos.

O mesmo se dá com outros idiomas: em menor escala com o português que, por diversos motivos, se mostra ainda cheio de impenetrabilidade. A vasta e harmoniosa língua que só por si fornece boa parte da nomenclatura náutica de quase todas as outras línguas, que enriquece o inglês, o francês, o holandês, o japonês e o chinês e tantos outros idiomas, mostra-se excessivamente ciosa do seu vocabulário.

Esse rigor em exportar sem importar vai a tal ponto que, não raro, somos levados a utilizar palavras tidas a princípio como estrangeiras, entre cautelosas aspas, mas que logo a seguir verificamos serem nossas, chegadas até nós de torna-viagem. Basta para reconhecê-las tirar-lhes a poeira do caminho: "mascote", "fetichismo", ainda outras.

Aqui mesmo no Brasil, onde tão vivo não devera ser o espírito da língua, mostramos idêntica reserva na adoção de vozes alheias. Para citarmos um fato mais próximo, estude-se a nossa impermeabilidade relativamente ao idioma italiano. Após meio século de imigração peninsular, ainda não admitimos na linguagem corrente meia dúzia de termos dessa importação.

Um deles, porém, pela facilidade da elocução e pitoresco da pronúncia, "pegou" profundamente, já lançou raízes e com certeza integrar-se-á para sempre nos nossos hábitos. É o "ciáo". É o "até logo" mais curto, de todas as línguas.

Outra palavra é "salame", que não empregamos no seu exato sentido. Há ainda algumas expressões parecidas com as nossas que algumas vezse ouvimos por aí mas são logo corrigidas: "Eu vou 'com' o trem das 4", ou então: "Queria ir com o trem das 4, 'em vez' só fui com o das 5"...

Ora, se a língua fechou de tal forma a porta da rua, como é que ela, bem ou mal, pode corresponder às necessidades que se vão criando com a incessante transformação da vida? No entanto, pode-se perfeitamente falar em português sobre o corredor polonês ou a Exposição de Nova York. As palavras estão aí mesmo, ao nosso alcance.

Tal felicidade, no entanto, não tem a língua guarani. Há anos recebi um jornal popular de Assunção do Paraguai. Chamava-se Juan Pueblo, expressão que, com certeza, corresponde ao nosso "Zé Povo". Era todo escrito em guarani, a língua familiar dos nossos vizinhos. "Todo" é o modo de dizer, porque em cada frase havia pelo menos uma palavra que os aborígenes desconheceram: trem, correio aéreo, telefone, bonde etc. Uma mistura. Mistura tão grande como a que fazem alguns sírios quando os ouvimos falar a sua língua em nossas ruas, entremeando-a de expressões locais, para eles intraduzíveis, ou então de frases que na nossa língua são mais curtas ou eufônicas do que na sua...

O fato de estarmos em dia com as sutilezas da época tem diversas explicações. Em primeiro lugar o prodigioso consumo de aspas que se observa em alguns autores, notadamente naqueles que, pelos assuntos em que se especializaram, são levados a tratar de atualidades na arte, na moda, no cinema, na vida enfim.

Aí está o poeta Guilherme de Almeida que, ele próprio, já chamou as suas crônicas de "hospedaria de imigrantes", tal o número de termos estrangeiros a que dá pouso, na esperança de que arranjem "emprego", ou melhor, "colocação" na língua. E isto em 1939, muitos anos depois de extinta aquela famosa "agência de colocação de pronomes"...

Mas voltemos ao ponto em que estávamos. O citado processo das aspas é ainda o mais comum: utilizamo-lo na esperança de que com o tempo elas venham a desaparecer, contra as tendências da língua, como tem acontecido em gare, garagem, estúdio e quejandas. No entanto, há mais de meio século conservamos as aspas numa palavra misteriosa - "pince-nez" (N. E.: tipo de óculos sem hastes, equilibrado sobre o nariz) - que parece da língua francesa, mas que o dicionário da Academia Francesa não registra.

A fonte mais abundante e idônea de expressões novas está no povo. Infelizmente, nem sempre essas vozes são aproveitadas; nascem, prestam o seu serviço e morrem sem que os dicionaristas cheguem a tempo de fixá-las.

Durante os primeiros séculos da nacionalidade, a maior contribuição veio do ameríndio, conservando-se intacta nos topônimos ou entrando para a língua, como tapera, capim, tijuco etc. etc. A seguir, desaguou no álveo (N. R.: leito, leito de rio) da língua o afluente africano, cujos termos se encontram ainda intactos nas designações de tantos pitéus, ou assimilados, como em "ojeriza" e outros. Depois, foram as pequenas povoações esparsas pelo território imenso que, com ditos e dichotes do seu colorido linguajar, contribuíram para a opulência do idioma. Citemos ao acaso esse adorável "despistar", tão útil para a profissão política, que ainda está impregnado da vida de Sorocaba dos primórdios do século XIX, quando ali se davam famosas feiras de animais.

As expressões que surgem por aí afora entram para o jornalismo e circulam pelo país. Os cancioneiros se aproveitam delas para os seus sambas. O rádio as espalha e torna ainda mais populares. Mas quando ainda não havia rádio tínhamos as assembleias. Ao cabo dos debates sempre ficava alguma coisa, ainda mesmo que fosse uma palavra a mais para a gíria. Naquele tempo, pai-da-pátria era "paredro". Está aí uma palavra portuguesa, com qualquer coisa de erudito, que Portugal desconhece. O próprio Ruy Barbosa, purista como poucos, fez-se responsável por expressões que, justificadas em determinado momento, para aí ficaram, como "o suco", "à beça" etc.

Outros, de caso pensado, também se propuseram colaborar na linguagem criando palavras. Raul Bopp é responsável pelo misterioso "mussangulá" (N. E.: um estado de espírito contemplativo do caboclo, em que ele fica aberto à magia e à preguiça, pensando em coisa sem nexo) e Guilherme de Almeida - com um sorriso perverso - lançou o seu "kwy" (N. E.: palavra sem sentido definido, lida como "que vi", usando as três letras que entram e saem do alfabeto português e encontrada no título do evento "O +Spam...toso baile KWY". da Sociedade Pró Arte Moderna-SPAM, realizado em 21/10/1933 no hotel paulistano Esplanada), que fez época. Raul Bopp e Guilherme de Almeida não pertencem ao número de fazedores de neologismos com o conspícuo intuito de substituir palavras estrangeiras já consagradas pelo uso.

Houve tempo em que os neologismos estavam em moda. Mas deles ficaram poucos, o suficiente para assinalar a sua passagem: cardápio por "menu", vesperal por "matinèe", lucivelo por "abat-jour", cinesíforo por "chauffeur" (N.E.: atualmente "chofer" = motorista) e outros. O público parece ter antipatia por vocabulosos de gabinete.

Mais uma vez, retrocedamos "da capo". Extintas as câmaras, a linguagem brasileira muito perdeu com isso. A obra de difusão dos jornais não é tão vasta como se poderia pretender. Esses periódicos, com algumas exceções, só circulam nas regiões em que são publicados. Daí, a dificuldade de generalizar o uso de fórmulas gramaticais garimpadas nos pontos mais remotos de nossa terra.

É verdade que há livros literários, mas esses ainda circulam em ambientes muito restritos, justamente entre os leitores que, por se julgarem exceções, se defendem com unhas e dentes das expressões menos eruditas, as quais, seja dito de passagem, são as mais saborosas.

Falamos, acima, da contribuição dos cancioneiros. Os troveiros (N. E.: trovadores) que num remoto passado aprimoraram a língua com seus rimances (N. E.: pequenos cantos épicos - forma antiga de romance ou xácara), hoje moram nos morros do Rio de Janeiro e nas cantinas do Nordeste e daí despejam sobre o Brasil a primavera emocional das suas canções e emboladas. O rádio é o grande vulgarizador desses ritmos e, ao mesmo tempo, dessas composições poéticas cheias de uma ingênua, de uma comovente beleza. Não raro, nas conversas, já ouvimos um pouco do "lero-lero" que as ondas de Hertz espalham pelos oito milhões de quilômetros quadrados desta imensa pátria.

Continuando a enumerar as fontes de "enriquecimento" da língua, não se deve esquecer também o contingente de expressões estrangeiras trazidas para a nossa linguagem falada ou escrita pelos maus tradutores. Os jornais estão cheios de "reproches", vernáculo que dormia nos dicionários até há bem pouco tempo. A cada passo lemos que o Brasil se encontra em má posição "frente" às ditaduras, ou que o problema da siderurgia foi "planteado" pelo sr. ministro. Abundam igualmente os "renomados" técnicos. E daí por diante.

Completando essa obra, observa-se a frequência com que as leituras apressadas enchem o palavreado das conversas. Pouca gente leu Freud, mas dá gosto ouvir no intervalo dos cinemas: - ela é uma "recalcada", cheia de "complexos" e com "traumas" desconcertantes!

São palavras em voga.

Mas, felizmente, a moda dura pouco.

Em cada estação do ano pode-se assistir ao aparecimento, esplendor e decadência de certas palavras que se tornam irritantemente encontradiças em qualquer palmo de prosa. De prosa ou de verso. Nos últimos tempos tem havido um "espetacular" desfile de palavras em voga. Depois da "arrancada" gloriosa, veio o apoio "irrestrito" deste "dinâmico" parque industrial cuja "finalidade" é a eficiência" do seu "maquinário", e por aí adiante.

Ao mesmo tempo, o sentido dos adjetivos revelou umas certas perturbações: falou-se em "vozinha bem feita", em "arquitetura gostosa" e em "saudade bonitinha". Por outro lado, há uma certa literatura de anúncios que se apresenta com palavras e frases de um sabor estranho, talvez devidas a traduções apressadas de "loyaltys" norte-americanos. Aí deve haver o que muita gente chamaria: a "mística" da compra e venda. Nada mais difícil do que essas traduções, valha a verdade, pois tivemos tanto medo de transformar o idioma em bazar, que estamos em vias de transformá-lo em belchior, onde há muito de tudo, mas pouca coisa de uso corrente.

Nada como no tempo das câmaras: o idioma recebia da boca dos "paredros" expressões fortes como "carcomido", "avacalhado", "encrenca" etc., e logo as incorporava à linguagem parlamentar. Não precisava esperar que Carmen Miranda as divulgasse pelo rádio, no seu último samba!

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Imagem: reprodução parcial da pagina 9 do jornal paulistano Folha da Manhã de 21 de outubro de 1933, com referência ao "baile KWY"

 

Imagem: reprodução parcial da pagina 9 do jornal paulistano Folha da Manhã de 5 de outubro de 1933, com referência ao "baile KWY"

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